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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

o quebra-nozes, de alexandre dumas


Eu já tinha assistido ao espetáculo de balé com a companhia Cisne Negro, mas nunca havia lido a versão adaptada por Alexandre Dumas. 

Essa versão de O quebra-nozes, escrita em 1844, é uma adaptação da obra de E.T.A. Hoffmann e serviu de base para o famoso balé de Tchaikovsky. A narrativa começa com um homem que chega a uma festa de Natal e se oferece para contar uma história às crianças. A partir daí, somos levados ao universo de dois irmãos: Marie (ou Clara, na adaptação do balé) e Fritz, que esperam ansiosamente pelos presentes de Natal. Eles são ricos, criados com conforto e cercados de brinquedos. Mas o momento mais aguardado é sempre a chegada do padrinho Drosselmeyer, inventor excêntrico que traz presentes únicos e quase mágicos.

Os brinquedos, porém, não são acessíveis. Ficam guardados em armários altos, protegidos por vidro, quase como obras de arte, e não objetos feitos para brincar.

É Marie quem rompe essa barreira. Literalmente. Ao quebrar o vidro para alcançar o Quebra-Nozes, ela atravessa não só o obstáculo físico que a separava dos presentes, mas também o limite entre o mundo real e o imaginário.

O que torna esse gesto ainda mais simbólico é o afeto imediato que ela desenvolve pelo boneco. O Quebra-Nozes não é o mais bonito, nem o mais novo. Está torto, tem dentes grandes e depois acaba quebrado. Ainda assim, é ele que Marie escolhe. Ela o protege, cuida, se emociona. Chega a desalojar uma boneca de sua cama para que o boneco possa repousar. Seu carinho vem de um vínculo mais profundo.

Na mesma noite em que o vidro do armário se rompe, começa a transformação. Os brinquedos ganham vida, o Quebra-Nozes se ergue como líder de um exército e enfrenta uma batalha contra o temido Rei dos Camundongos e suas tropas. Marie participa ativamente da defesa, chegando a jogar seu sapatinho para salvá-lo. No dia seguinte, ela chega a adoecer.

É então que a história se desdobra em outras camadas. Dentro da narrativa que o misterioso contador compartilha com as crianças na festa, Drosselmeyer surge como narrador de outra história: a da princesa Pirlipat, amaldiçoada pela Rainha dos Camundongos e transformada em uma criatura grotesca. Para curá-la, era preciso encontrar uma noz especial e alguém capaz de quebrá-la com os dentes. Quem cumpre essa missão é o próprio sobrinho de Drosselmeyer. Ao fazê-lo, ele mesmo acaba enfeitiçado e se transforma no Quebra-Nozes.

A guerra contra o Rei dos Camundongos, portanto, é consequência direta dessa antiga maldição.

O que se segue é uma viagem pelo Reino dos Doces, pela Terra da Neve e por outros recantos encantados que só existem no mundo dos sonhos. E o padrinho surge como o elo entre esses mundos.

Leitura rápida, cheia de simbologias, que dá vontade de revisitar o balé, a música e o próprio olhar de encantamento, tão natural nas crianças e tão facilmente esquecido por nós, adultos.

domingo, 29 de dezembro de 2024

último natal em paris


"E os animais, Alice? Você vê os cavalos e os cachorros? Eu odeio pensar que estejam sofrendo, mas ouço relatos dos mais terríveis sobre cavalos se afogando na lama grossa. É verdade? Os campos estão muito vazios aqui. É quase possível esquecer quantas belas criaturas corriam livremente por esta terra. Todos se foram, exceto os que eram velhos e mancos demais para ser úteis. Eu me pergunto o que aconteceu com os amados cavalos de Will, Hamlet e Shylock. Nem gosto de pensar."

Lá se foi o tempo em que a troca de cartas era a principal forma de manter contato com amigos ou familiares distantes. Hoje temos videochamadas, áudios, mensagens instantâneas. Até mesmo o e-mail, que já foi tão usado, parece obsoleto. Com isso, perdemos um pouco dos detalhes e da emoção que as antigas missivas carregavam.

É justamente isso que o livro Último Natal em Paris, de Hazel Gaynor e Heather Webb, recupera. Confesso que, nas primeiras páginas, ainda não tinha me convencido, mas logo meu interesse despertou. Comprei sem ler muito sobre ele; apenas vi que falava de Natal e da Primeira Guerra Mundial.

O que temos aqui é uma história quase inteiramente contada por meio de cartas — trocas entre amigos, irmãos, pais e, principalmente, entre Thomas Harding e Evie Elliott, que protagonizam a narrativa.

O ponto de partida é a viagem de Thomas, já idoso, saindo da Inglaterra em direção a Paris. É a cidade que, por muitos anos, simbolizou o sonho adiado dele com Evie. Sempre diziam que, quando a guerra terminasse, iriam juntos para lá. Agora, com a saúde frágil e acompanhado por sua cuidadora, ele leva consigo um pacote de cartas que marcaram os anos em que esteve a serviço militar.

Essas cartas começam no dia em que ele parte com seu melhor amigo, Will, para a primeira missão, em 1914. A partir daí, inicia-se a troca de mensagens com Evie, irmã de Will. É por meio delas que acompanhamos o nascimento do afeto entre os dois, além de conhecermos um pouco da vida nas trincheiras, das transformações sociais e dos impactos da guerra no cotidiano.

Mas não lemos apenas as cartas entre Thomas e Evie. Há também bilhetes, telegramas e mensagens trocadas entre outros personagens, o que enriquece o enredo e amplia a perspectiva da época.

Um ponto particularmente interessante é a presença dos animais ao longo da narrativa. Evie começa a desenhar pássaros e vai aperfeiçoando seus traços com o tempo. Os pássaros tornam-se símbolo de liberdade, em contraste com o confinamento da guerra. Já os animais usados para alimentação aparecem de forma triste e realista, como na falta que fazem na ceia de Natal. E os ratos, como sempre, como horripilantes. 

"As analogias com pássaros são bastante úteis, sabe? A carriça insufla seu pequeno peito para ter coragem e força, a cotovia dá sorte, e que tal o pavão, com seu imponente peito turquesa e sua bela cauda de penas coloridas? Você é como um pássaro. Uma águia, destinada a voar alto, mas sem nunca perder a visão aguçada. Você não é uma mulher de gaiola, é? Um dia, você não poderá conter o fogo que tem dentro de si e sairá por aí, irrefreável. Sua coluna é o início perfeito."

"Em outras notícias, temos uma infestação de ratos. Eu os ouço correr por trás das paredes e pela chaminé. Estremeço ao ouvir o arranhar das horríveis patinhas deles. Mills colocou armadilhas, e posso dizer que não há nada mais desagradável do que o paf e o crac que elas fazem ao serem acionadas. É de revirar o estômago. Tanto assim que estou em busca de um bom caçador de ratos. Não gosto muito de gatos, mas deve ser preferível a esse som terrível."

Há ainda uma cena marcante envolvendo cavalos. Descobrimos como também foram convocados para o esforço de guerra e acompanhamos a angústia do irmão de Evie, preocupado com seus animais.

"Falando em casa, seus cavalos foram levados para algum lugar? Will se preocupa com Shylock e Hamlet. Vimos as cargas partir – centenas deles, ou milhares, na verdade. Fomos informados de que estão confiscando todos os cavalos e os enviando ao front. Seu irmão cometerá traição se levarem os cavalos dele. Você sabe como ele os ama. Se forem para a batalha… Bem, não vamos falar disso. Faça o que puder."

Último Natal em Paris é emocionante. Para quem gosta de histórias de amor em tempos de guerra, é uma ótima escolha, cheia de emoção, memórias e reflexões sobre o poder das cartas.

"Você conhece minha paixão por Shakespeare, é claro. Você sabia que ele usou imagens de pássaros em sua obra mais do que qualquer outro? O poema mais obscuro dele é o complemento ao texto de outro escritor e se chama (agora, pois incialmente foi publicado sem título) “A Fênix e a Tartaruga”. Fala de um par de pássaros, uma fênix e uma pomba (a pomba-tartaruga), cujo amor cria uma união tão perfeita que desafia o sentido concreto e a lógica terrena e supera qualquer obstáculo. Mostrarei para você quando eu voltar. Tenho uma cópia entre minhas coisas da escola."


domingo, 22 de dezembro de 2024

casamento em dezembro


"Sentiu uma dor bem lá no fundo. Por um momento, imaginou uma vida diferente. Uma vida equilibrada e variada. Em vez de voltar para casa morta de exaustão, sem nada a oferecer, voltar para casa para alguém que se importava com ela."

Casamento em dezembro, da britânica Sarah Morgan, reúne tudo o que se espera de um romance natalino: paisagens cobertas de neve, lareira acesa, família reunida em uma cabana e reconciliações.

Maggie tem duas filhas e vive para a família, em uma casa no interior da Inglaterra, cercada por campos verdes e paisagens tranquilas. Sua época favorita do ano é o Natal, com tudo o que ele representa. Ela decora a casa com cuidado, prepara inúmeros pratos e guarda com carinho os enfeites que as meninas fizeram quando ainda eram crianças.

Mas, desta vez, tudo será diferente.

Seu casamento está praticamente acabado, embora ela e o marido ainda não tenham contado a ninguém. E, para completar, Maggie recebe uma ligação inesperada da filha caçula, Rosie, dizendo que decidiu se casar na véspera de Natal. Com um noivo que a família nem conhece. A notícia vira o centro da apreensão. Para piorar, a cerimônia será do outro lado do oceano, no Colorado, Estados Unidos.

Rosie sempre foi a filha mais frágil, com problemas de saúde desde pequena. Isso fez com que Katie, a mais velha, crescesse com um senso enorme de responsabilidade e acabasse escolhendo a medicina como profissão. Ela também estará presente neste Natal atípico, embora chegue esgotada, emocionalmente distante e pouco disposta a comemorar qualquer coisa. Sua principal motivação, na verdade, é tentar convencer a irmã a desistir da ideia repentina de casamento.

A narrativa alterna os pontos de vista entre as três mulheres. Vemos Maggie tentando manter a tradição, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar; Katie lidando com um trauma recente e fechada para qualquer tipo de emoção; e Rosie, determinada a mostrar que sua decisão é legítima e que Dan é, sim, o amor da sua vida.

Como era de esperar, a história às vezes se apoia em clichês. Algumas falas soam ensaiadas e certas atitudes são um tanto exageradas.

Ainda assim, Casamento em dezembro tem seus momentos. Pode ser uma boa pedida para quem busca uma leitura leve, com clima natalino e final feliz.

"Algumas pessoas tinham grandes sonhos e objetivos, mas Maggie apreciava as coisas pequenas. Os primeiros brotos na macieira, o raspar suave do lápis no papel enquanto Katie fazia o dever de casa na mesa da cozinha, o cheiro de roupa recém-lavada, a alegria da primeira xícara de café do dia e o puro prazer de um livro que a transportava para outra vida e outro lugar."

sábado, 21 de dezembro de 2024

dia de folga


“Esse era o problema dos dias de folga. Eles eram tão raros, e você esperava tanto por eles, mas, quando chegavam, seu corpo estava tão acostumado a se mover constantemente que era quase impossível relaxar.”

Dia de folga, de John Boyne, autor de O Menino do Pijama Listrado, se passa na véspera de Natal. Hawke, jovem soldado inglês, ganha uma trégua no meio do caos da Primeira Guerra Mundial. Essa folga, porém, não o tranquiliza. Enquanto o corpo está em constante movimento para se defender e revidar os ataques, a mente também se mantém ocupada. Ou seja, não há tempo para pensar no que se deixou para trás e nas consequências de suas escolhas. É justamente nesse breve momento de silêncio e contemplação que tudo se torna ainda mais pesado.

Hawke abre o presente enviado pela mãe: um par de meias quentes, limpas, feitas de lã. Considera um pequeno milagre tê-las recebido sem que fossem confiscadas. Ao colocá-las, percebe que não são tão confortáveis quanto as antigas, aquelas que já moldavam seus pés sujos, feridos, cheios de calos.

A metáfora é inevitável. O que era para aquecer e proteger se torna lembrança do que ficou para trás. O amor da mãe. A infância. As histórias com a babá. A morte do pai. A irmã, agora noiva. O irmão mais novo, querendo parecer mais velho para se alistar. O Natal sem mesa posta.

É nesse rebuliço interno que ele se vê caminhando floresta adentro, esperando encontrar o inimigo, fugindo de si, sentindo-se um desertor.

“A floresta está logo ali, e Hawke decide caminhar até ela. Coloca o capacete, pega o rifle. Caso os alemães que mataram Westman ainda estejam por perto. A rotina de guerra se impõe, até mesmo na trégua.”

Como num ciclo vicioso, ele retorna, sem ainda entender por onde andou. E é ali, no meio da lama, das ordens e das bombas, que se sente aliviado.

Em poucas páginas, Boyne nos oferece um conto sobre o que a guerra faz com o tempo, com a memória e com o corpo. Dia de folga reforça o quanto até uma trégua pode machucar. Porque parar, mesmo que por instantes, é lembrar. E lembrar dói. Hawke não volta à trincheira por dever. Volta porque entende que, depois de todas as feridas, ali é o seu único local possível.

“Era véspera de Natal e não haveria folga para os ímpios. Ele pegou seu rifle mais uma vez e ajeitou o capacete na cabeça. Precisava chegar à escada número cinco. Não havia tempo a perder. Bombas explodiam no céu sobre sua cabeça, um dos maiores shows de fogos no planeta. Melhor estar aqui do que numa floresta sozinho, ele pensou, quando pôs sua bota no degrau e começou a subir, sem hesitar enquanto se jogava para cima, ficava de pé e começava a atacar. É uma bela visão, ele pensou, enquanto o campo se acendia à sua frente como se fosse a entrada para outro mundo. A gente não vê esse tipo de coisa em casa.” 

sábado, 2 de novembro de 2024

o amigo


“A inocência é algo que nós, humanos, atravessamos e deixamos para trás, incapazes de retornar a ela. Mas os animais vivem e morrem nesse estado, e testemunhar a inocência violada em razão da crueldade com um simples pato pode parecer o ato mais bárbaro do mundo.”

Por vários momentos, eu me incomodei com o desenrolar da história. Mas não porque considerei a leitura ruim ou cansativa. Muito pelo contrário. Justamente por ser tão verdadeira e tão próxima das dores que não conseguimos explicar. O incômodo vinha de outro lugar. Era o incômodo de quem está sendo atingida.

A protagonista é professora de escrita criativa, e seu melhor amigo acaba de se suicidar. Ele foi seu maior confidente, sua referência intelectual, o parceiro das conversas sobre literatura e sobre a vida. Foi também um amor antigo, conforme vamos descobrindo aos poucos.

A narrativa é toda dela. O que temos, portanto, é apenas seu ponto de vista sobre as circunstâncias que o levaram à morte e suas consequências, sobretudo para ela.

O amigo morto deixa um cachorro. Um dogue alemão enorme, Apolo. A viúva do suicida, conhecida como Esposa Três, diz que nunca quis o cachorro e que, agora, sozinha, não suportaria a convivência. Apolo havia sido deixado em um canil, onde passava os dias esperando na porta, recusando-se a comer, emitindo um lamento baixo e insistente. “Não se pode explicar a morte para um cachorro”, ela diz. Aos poucos, a narradora descobre o que o amigo falou sobre ela. Sozinha, sem filhos, com horários flexíveis e afeto por animais, parecia, aos olhos dele, a única pessoa capaz de cuidar de Apolo até o fim. Ela mora em um apartamento pequeno, alugado, em um prédio que não aceita animais. Mesmo assim, e sem nunca ter tido um cachorro antes, aceita. Porque entende que não há outra escolha possível. Chama a atenção o fato de que, ao longo de todo o livro, apenas o cachorro tem nome.

Temos, portanto, dois grandes amigos deixados um ao outro, como uma última forma de cuidado mútuo, mesmo depois da partida.

A partir daí, acompanhamos a evolução da convivência entre dois seres devastados pela perda. Apolo ocupa todos os espaços da casa. A dor do cachorro é visível. Está nos olhos, na falta de apetite, no não abanar do rabo. Está no lamento noturno, no estranhamento do toque, na ausência total de alegria. A ela, sobra pouco tempo para lamentações, já que seu esforço é para compreendê-lo. Não com a limitação da nossa linguagem, eu acrescento. É na literatura e na poesia que ela se apoia para conversar com o novo amigo, por quem vê sua afeição crescer a cada dia, a ponto de se dedicar inteiramente a ele, especialmente quando ele começa a apresentar sinais de fragilidade.

A construção do livro é feita por fragmentos, memórias, divagações e muitas referências literárias, em especial às que abordam animais. Sigrid Nunez costura autores e obras com leveza. Desonra, de J. M. Coetzee, é lembrado. A narradora chega a comparar o amigo com o personagem principal desse romance sul-africano. Assim como David Lurie, ele também teve, em vários momentos, uma vida promíscua, envolvendo-se com alunas. Ao mesmo tempo, compartilhava a paixão pela literatura e pelos grandes clássicos.

Ela também cita A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e My Dog Tulip, de J. R. Ackerley, relato autobiográfico sobre o amor obsessivo e devotado entre um homem e sua cadela. Há ainda referências discretas, mas marcantes, a autores como Sidonie-Gabrielle Colette, Rainer Maria Rilke e Robert Graves.

Nunez percorre também a tradição da literatura juvenil e sentimental sobre animais, em especial cavalos e cães, mencionando obras como Beleza Negra, de Anna Sewell, contada pela perspectiva de um cavalo; Minha amiga Flicka, de Mary O'Hara; Caninos brancos e O chamado selvagem, de Jack London; O belo Joe, de Margaret Marshall Saunders; e O cão chamado Buck, que aparece em múltiplas listas de clássicos. São narrativas em que a sensibilidade e o sofrimento animal têm protagonismo, muitas vezes servindo como crítica moral ao comportamento humano.

Em determinado momento, a narradora recorda um trecho do escritor Robert Graves sobre a Batalha do Somme. Diante da cena de destruição, ele diz: “O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.” A frase reforça que a violência contra os animais nos atinge com outra frequência, talvez porque, como diz a própria narradora, sua capacidade de sofrimento nos escapa, mas também nos interpela de forma mais direta e sem defesas.

E há também a escrita. O amigo, em vida, falava do quanto andar era parte essencial do seu processo criativo. Da importância de caminhar sem rumo pelas ruas da cidade para encontrar o ritmo da frase. Para ele, escrever era também uma questão de batida. Boas frases começam com uma batida. Era a caminhada que preparava essa batida inicial.

Ele se via como um flâneur, termo francês que descreve quem caminha lentamente pela cidade, sem destino certo, apenas observando o mundo e absorvendo o que está ao redor. Mas questionava se uma mulher poderia realmente ser uma flâneuse. Não por falta de ideias, mas pelas interrupções. Porque uma mulher andando sozinha é alvo de olhares, comentários, assobios. A liberdade de andar e se perder, como ele dizia, exige também o privilégio de não precisar estar em alerta o tempo todo. E como se desmanchar no mundo, como se dissolver nos pensamentos, se é preciso estar sempre se protegendo? Queria muito dizer que ele estava errado.

Com o tempo, a narradora percebe que a artrite de Apolo está se agravando. O fim se aproxima. Quando isso acontece, ela consegue uma casa grande emprestada, longe de tudo e de todos. Da varanda, ouve o mar e observa o cachorro deitado na grama. Um enxame de borboletas brancas se move pelo gramado. Ela teme que Apolo possa matá-las com uma mordida. Mas ele não se move. As borboletas pousam sobre ele. E então ela sente o que vai acontecer.

A última frase do romance é um lamento: “Oh, meu amigo, meu amigo.” Mas não há ali um mergulho no vazio. Com Apolo, ela pôde permanecer até o fim. Diferentemente do amigo que partiu sem explicações, o cão esteve presente até o último instante. Há dor, mas foi uma despedida construída com o tempo, cuidado e amor.

“Você anda devagar, cada vez mais devagar — manquejando é o termo que estou evitando aqui. Meu medo é que um dia até cheguemos bem lá, mas você não consiga voltar.”

Ah, sim, virou filme. Ainda estou pensando se vou assistir.




Trechos

“Karenin e Tereza são dedicadas uma à outra. Ao refletir sobre esse vínculo puro e desinteressado, Tereza conclui que tal amor é, se não maior, melhor do que a coisa corrupta, carregada, eternamente decepcionante e comprometida que sempre teve com Tomas.”

“Aonde você estava indo? A nenhum lugar em particular. Sem destino, sem compromisso. Apenas passeando, as mãos nos bolsos, saboreando a rua. Era o que gostava de fazer. Se não posso andar, não posso escrever. Você trabalhava pela manhã e, em determinado momento, o qual sempre chegava, quando você parecia incapaz de escrever uma frase simples, saía e caminhava por quilômetros. Malditos eram os dias em que o mau tempo impedia isso (o que raramente acontecia, pois você não se importava com o frio ou com a chuva, apenas uma tempestade poderia frustrá-lo). Quando voltava, sentava-se novamente para trabalhar, tentando manter o ritmo estabelecido durante a caminhada. E, quanto mais tivesse tido êxito nisso, melhor seria a escrita. Porque tudo tem a ver com ritmo, você disse. Boas frases começam com uma batida. Você postou um ensaio, “Como ser um flâneur”, sobre o costume de passear e andar sem destino na cidade e o lugar que isso ocupa na cultura literária. Recebeu algumas críticas por questionar se realmente poderia haver uma flâneuse. Você não achava possível uma mulher vagar pelas ruas com o mesmo espírito e o mesmo comportamento de um homem. Uma pedestre estava sujeita a interrupções constantes: olhares, comentários, assobios, assédios. A mulher é criada para estar sempre em guarda: Esse cara não está andando muito perto dela? Será que não a está seguindo? Como, então, ela poderia relaxar o suficiente para experimentar a perda do senso do eu, a alegria do puro ser que era o ideal da verdadeira flânerie?”

“Não se pode explicar a morte para um cachorro. Ele não entendia que papai nunca mais voltaria para casa. Esperou na porta dia e noite. Por um tempo ele nem sequer comeu, e eu temia que morresse de fome. Mas a pior parte era que, de vez em quando, ele fazia aquele barulho, aquele uivo ou lamento, ou o que quer que fosse. Não alto, mas estranho, como um fantasma ou alguma outra coisa esquisita. Continuou fazendo isso. Eu tentava distraí-lo com um agrado, mas ele virava a cabeça. Uma vez até rosnou para mim. Ele fazia isso à noite. Eu acordava e não conseguia pegar no sono de novo. Eu ficava lá, ouvindo, até achar que fosse enlouquecer. Toda vez que conseguia me recompor, eu o via esperando perto da porta, ou ele começava a lamentar daquele jeito, e eu desmoronava novamente. Tive que tirá-lo de casa. E, agora que ele se foi, seria cruel trazê-lo de volta. Não consigo imaginá-lo sendo feliz outra vez naquela casa.”

“​​Na maior parte do tempo, ele me ignora. Poderia muito bem viver sozinho aqui. Faz contato visual às vezes, mas então desvia imediatamente o olhar. Seus grandes olhos castanhos são surpreendentemente humanos; eles me recordam os seus. Lembro-me de uma vez, quando tive que viajar, em que deixei meu gato com um namorado. Ele não gostava muito de gatos, mas depois me falou que foi bom ficar com ele pois, disse, Eu sentia sua falta, e tê-lo por perto era como ter uma parte de você comigo. Ter seu cachorro por perto é como ter uma parte de você comigo. A expressão dele não muda. É a expressão que imagino nos olhos de Greyfriars Bobby nos anos em que permaneceu deitado no túmulo do dono. E ainda não o vi abanar o rabo. (O rabo dele não foi cortado, apenas as orelhas — infelizmente, de maneira desigual, deixando uma menor que a outra. Ele também foi castrado.) Ele sabe que não deve subir na cama.”

“Uma digressão. Sobre o sofrimento animal, o que realmente sabemos? Há evidências de que cães e outros bichos têm maior tolerância à dor do que os seres humanos. Mas sua verdadeira capacidade de sofrimento — como o seu verdadeiro grau de inteligência — deve continuar sendo um mistério. Ackerley acreditava que estar tão envolvido emocionalmente com as pessoas e tentar agradá-las sempre tornava a vida de um cão cronicamente ansiosa e estressada. Mas eles sofriam de dor de cabeça?, ele perguntava, nem mesmo esse tipo de detalhe sobre eles é conhecido. Outra questão: Por que as pessoas muitas vezes acham o sofrimento animal mais difícil de aceitar do que o sofrimento de outros seres humanos? Veja Robert Graves, escrevendo sobre a Batalha do Somme: O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.”

sábado, 21 de setembro de 2024

mapa do coração



"Era perfeitamente possível sentir saudade de alguém que você nunca tinha conhecido, e ele era prova viva disso."

Quando se quer uma leitura rápida, os chick-lits sempre são uma boa pedida. Além de serem divertidos, esses livros costumam entreter de forma leve e agradável. "Mapa do coração", de Susan Wiggs, não se encaixa exatamente no gênero. A protagonista não é desastrada, nem se mete em confusões típicas desses romances, mas o livro está quase lá.

A história gira em torno de Camille Adams, de 36 anos, que mora com sua filha de 14, Julie. Seu marido, Jace, morreu há cinco anos, mas ela ainda não conseguiu superar a dor e a forma com que o perdeu. Elas moram em Bethany Bay, vila pitoresca localizada na baía de Chesapeake, na costa leste dos Estados Unidos. Esse cenário me remeteu a uma série que assisti com o mesmo nome, o que facilitou a visualização do lugar, que é realmente encantador. 

Camille e sua mãe têm uma loja no vilarejo, daquelas que vendem de tudo, sempre com itens bonitinhos destinados a alegrar as pessoas. Além disso, divide um estúdio de fotografia com um amigo que, sinceramente, não acrescenta nada à trama. Coitado, ele nem deveria estar lá – só é salvo pelo nome: Billy, o nome do meu cachorrinho lindo. Especialista em restaurar fotos antigas de rolos esquecidos pelo tempo, Camille acaba acidentalmente destruindo o filme de um renomado pesquisador e professor de história, o que quase arruina sua única chance de descobrir os últimos momentos de seu pai, morto na Guerra do Vietnã.

Mas é claro que nem tudo será perdido, e é óbvio que Finn será o novo amor de Camille. Contudo, ela ainda está bastante confusa. Precisa lidar com o medo de outro acidente, o que faz com que superproteja sua filha, impedindo que Julie saia, viaje ou mesmo pratique atividades que possam colocá-la minimamente em risco. Julie, por sua vez, sofre bullying na escola. O pai de Camille, Henry, está se recuperando de um câncer, o que também a deixa ainda mais apreensiva. 

No meio de tudo isso, um baú enviado da França, contendo fotos e objetos, revelará que a história de vida de Henry não é exatamente como Camille acreditava. Até então, sabia-se que a mãe de Henry, Lisette, havia morrido no parto, e seu pai fora morto após o fim da guerra. Porém, as imagens e relatos encontrados nos levam de volta à década de 1940, onde conhecemos a verdadeira história de amor de Lisette. Finn vai ajudá-los a desvendar esse mistério.

E, assim, todos viajam para o sul da França durante o verão, onde desfrutam de momentos inesquecíveis, fazem muitas descobertas, novas amizades e, mais importante, percebem que nunca é tarde para dar outro rumo à vida. Recomendo a leitura para as férias – seja na cadeira de praia, ao lado da lareira ou até mesmo durante o trajeto. Esse livro vai te ajudar a passar o tempo e, quem sabe, te inspirar a adicionar dois novos destinos ao seu roteiro de viagens, ou até considerar uma mudança mais definitiva. Tentem apenas, se possível, abstrair o excesso de clichês e diálogos melosos. Difícil, eu sei.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

a perfumista de paris



"​​Estou de volta a Agra, e o calor é opressivo. É como se o sol estivesse nos castigando por alguma ofensa de que só ele tem conhecimento. Sofremos em silêncio, esperando por seu indulto."

Que livro lindo, maravilhoso. Daqueles que nos fazem sonhar e realmente sentir todos os aromas presentes no texto. Saí sabendo um pouco mais sobre a indústria do perfume e sobre Agra, na Índia. Também foi muito gostoso revisitar alguns lugares em Paris onde estive. Sem contar a trilha sonora de jazz. Até reuni as músicas citadas em uma playlist no Spotify. Aliás, estou ouvindo enquanto escrevo este texto.

O livro fecha a trilogia Jaipur, da indiana Alka Joshi. No primeiro, "A pintora de henna", acompanhamos a trajetória de Lakshmi, que, com apenas 17 anos, foge de um casamento abusivo e de sua aldeia natal, chegando a ser considerada a melhor artista de henna de Jaipur. No segundo, "O guardião de segredos de Jaipur", temos uma passagem de tempo, e o foco é em Malik, o garotinho que ajuda Lakshmi em seu trabalho e que se tornou praticamente um filho. Agora, depois de mais alguns anos, temos a jornada de Radha, a irmã de Lakshmi. Elas só se conhecem depois da morte dos pais, quando Radha tinha apenas catorze anos. Sua vida não foi nada fácil, pois era conhecida como a menina do mau agouro, afinal, a irmã fugiu no ano em que ela nasceu. E, depois, muitas coisas ruins aconteceram com sua família. Radha também foge da aldeia e das fofoqueiras que a acusavam de tudo que dava errado por lá.

Anos mais tarde, está em Paris, casada com um francês, mãe de duas garotinhas e prestes a se tornar uma grande perfumista. Mas há problemas em todas as esferas. O marido, que ela conheceu enquanto ainda estava na Índia, não aceita seu trabalho, exigindo que ela passe mais tempo com a família; ela começa a receber queixas da escola da filha mais velha, que está agredindo as coleguinhas, e, no trabalho, sente que alguém a está boicotando.

Felizmente, surge a oportunidade de trabalhar em um grande projeto que homenageará a obra Olympia (1863), de Édouard Manet. Sua missão é reproduzir a fragrância que traduz a essência da mulher retratada na pintura, e que, de certa forma, também a representa. Essa busca a levará à Índia, especificamente até Agra, onde encontrará o aroma que faltava para sua criação. Laços do passado, que ela sempre fez questão de cortar, serão reatados, junto com uma tormenta de sentimentos. Ela também precisará de coragem e muita determinação para as decisões que terão que ser tomadas.

Tudo é contado de forma inebriante, colocando o leitor – pelo menos eu me senti assim – dentro da história. Vale cada página. Não queria mais sair do livro.


"Fecho os olhos, pensando em Olympia. Em como ela foi indecifrável. O único ingrediente que estava faltando para mim: água, chuva, névoa. O próprio véu que torna difícil vê-la com clareza. É por isso que ela nunca foi valorizada, que foi mal compreendida. No olho de minha mente, estou misturando as notas de topo, notas de corpo e notas de fundo que isolei. E então acrescento esse novo — para mim — precioso ingrediente: mitti attar. O cheiro da chuva."

sábado, 17 de agosto de 2024

a biblioteca dos sonhos secretos


"Um sonho não pode “acabar” enquanto você estiver dizendo “um dia”! Ele vai continuar para sempre sendo um lindo sonho. Mesmo não se concretizando, creio que essa também é uma forma de vida. Sonhar sem ter um plano definido não é uma coisa ruim. Isso torna seus dias alegres."

E terminei mais uma história que nos deixa a pensar nas várias possibilidades que temos. Mas que acabam se esvaziando por nossos receios, acomodação, opiniões alheias e outros empecilhos que, na grande maioria das vezes, só existem em nossa cabeça.

Com o subtítulo "uma história sobre a magia dos livros e seu poder de conectar pessoas", este livro da escritora japonesa Michiko Aoyama nos leva a conhecer cinco personagens que não sabem bem como lidar com seus problemas (eles e o mundo, não?). Podemos dizer que cada capítulo é um conto e que todos se entrelaçam de forma sutil. A narrativa, cheia de rituais, repetições e mensagens sobre a importância do agir, lembra muito a série "Antes que o café esfrie", de Toshikazu Kawaguchi, inclusive, por também ter um local que é comum a todos. Lá, uma cafeteria escondida. Aqui, uma biblioteca, nos fundos de um Centro Comunitário em um distrito de Tóquio.

Toda vez que alguém, por vários motivos, é levado até lá, eles, num primeiro momento, se deixam encantar pela mulher grande e branca, quase transparente, como alguns descrevem. E depois ficam hipnotizados quando ela pergunta o que procuram. Nesse momento, surgem pensamentos sobre os dilemas individuais pelos quais estão passando. E ela, após uma breve conversa, digita rapidamente no teclado (tatatataata, os dedos praticamente somem enquanto faz isso) e imprime uma folha com as indicações de leitura. As primeiras referentes à pesquisa dos livros que foram buscar e, por último, uma sugestão que será o grande despertar. Junto, a pessoa ganha um brinde feito por meio da feltragem de lã. Há caranguejo, gato, globo terrestre, frigideira, aviãozinho.

A primeira história é sobre Tomoka, 21 anos, vendedora de roupas femininas. Ela trabalha em uma loja de roupas num grande centro comercial. Mas não vê sentido no que faz e se sente fracassada por ter saído de uma cidade pequena e ser uma simples vendedora na capital japonesa. Chega a julgar, secretamente, outra vendedora da loja que está há anos trabalhando no estabelecimento. O que vai levá-la à biblioteca é a busca por livros que ensinam a usar o Excel, pois acredita que desta forma encontrará um trabalho melhor em escritório. Mas acaba encontrando motivação para ter uma vida mais saudável e valorizar os contatos diários. Tudo por conta de um livro infantil que lhe é indicado: Guri to Gura [Guri e Gura], texto de Rieko Nakagawa e ilustrações de Yuriko Omura, publicado por Fukuinkan Shoten.

Ryo, 35 anos. Sua história começa em uma loja de antiguidades quando ainda era aluno do ensino médio. Infelizmente, a loja fecha e ele segue alimentando o desejo de ter algo parecido. A vida o leva a trabalhar em uma fábrica de móveis como contador. Ele namora uma moça mais nova que está empenhada em ter uma loja online para vender os colares que cria. Na biblioteca, vai em busca de livros que possam ajudá-lo a retomar o sonho de ter uma empresa, mas encontra um livro sobre plantas, que vai lhe mostrar que é possível encontrar o equilíbrio entre um sonho e o que a realidade nos apresenta. Para tanto, sua inspiração será o dono de uma livraria especializada em gatos. Curioso o quanto há de gato na literatura recente japonesa. Está aí um tema a ser estudado. Aqui o livro que levou para casa: Eikoku Oritsu Engei Kyokai to Tanoshimu Shokubutsu no Fushigi [O mistério das plantas: o melhor da Sociedade Real de Horticultura Britânica], de Guy Barter, tradução de Ayako Kita, publicado por KAWADE SHOBO SHINSHA.

"Havia gatos ali… Um deles, tigrado, dormia sobre uma almofada. Parecia com o gato de feltro de lã que ganhei da bibliotecária. Havia mais dois, outro tigrado e um preto, caminhando à vontade entre as estantes."

Natsumi, 40 anos, ex-editora de revistas. Esta foi uma das passagens que mais gostei. A protagonista é casada e tem uma filha pequena. Ao retornar da licença-maternidade, ela, que era editora de uma revista, foi enviada a outro posto de trabalho, sob a alegação de que, agora sendo mãe, não daria conta da carga de trabalho do seu cargo anterior. Isso a derruba, porque ama o que fazia. Enquanto isso, também enfrenta problemas em casa, já que as tarefas não são divididas com o marido, que não teve que abdicar de nada em prol da paternidade. Mas ela sempre guardou um sonho no coração, que era editar livros. A partir da leitura que lhe é sugerida pela bibliotecária, as coisas vão começar a caminhar nesta direção: Tsuki no Tobira [A porta da lua] e Shinsoban Tsuki no Tobira [A porta da lua (nova edição)], de Yukari Ishii, publicado por Hankyu Communications (primeira edição) e CCC Media House (nova edição).

Hiroya, 30 anos, desempregado. Ele gosta de mangás e sempre almejou viver por meio de seus desenhos. Mas até então nunca encontrou alguém que o apoiasse, pelo contrário. Vive com a mãe e, apesar de se envergonhar da sua situação, não tem forças para mudar. Resultado, vive de bicos e nunca se identificou com nenhum trabalho. Vai parar na biblioteca porque a mãe pede que ele vá ao Centro Comunitário fazer algumas compras. E lá se depara com a leitura que vai lhe inspirar a seguir adiante. O primeiro passo será ele próprio trabalhar no Centro Comunitário. O livro: Visual Shinka no Kiroku Darwintachi no Mita Sekai [Registro da evolução ilustrado: o mundo visto por Darwin e seus pares], de David Quammen e Joseph Wallace, tradução de Masataka Watanabe, publicado por POPLAR.

Masao, 65 anos, aposentado. Após passar quatro décadas na mesma empresa, fica completamente desorientado com a aposentadoria. Ao contrário dele, sua esposa está sempre disposta a encontrar pessoas e a experimentar novas atividades. E é ela quem vai incentivá-lo a aprender o jogo de go, para que seu tempo livre seja mais agradável. Nesta jornada, ele lamenta o tempo que perdeu com a filha enquanto priorizava o trabalho e outras agendas. Mas, como tudo, sempre haverá a possibilidade de se redimir. E isso acontece. Além dos diálogos com a filha, gostei da reflexão que Masao faz ao se deparar com caranguejos vivos que estão à venda em um aquário, espremidos, com pouca água e se mexendo como se estivessem a enviar algum sinal. E, de fato, há. Na placa, está escrito que eles podem ser comprados para serem consumidos ou para serem adotados, o que o comove e o faz pensar sobre sua própria condição dentro do mundo corporativo. Claro que o que viveu está longe da aflição que os bichos estão passando, mas usar os animais como metáfora de nossas questões psicológicas é algo bem comum na literatura. Vou deixar o trecho completo abaixo. Ah, ao ir atrás de livros que possam ensiná-lo a jogar o go, lhe é oferecida uma obra poética com animais: Genge to Kaeru [Astrágalos e sapos], de Shimpei Kusano, publicado por Gin-no-Suzu.

"Ao lado do congelador com porta de vidro onde estavam os cortes de peixe e os mexilhões, havia uma pequena mesa com um aquário quadrado de plástico transparente. Percebi algo se movendo. Olhando bem, havia caranguejos de água doce dentro. Olhei-os com atenção, me lembrando do caranguejo de feltro que tinha recebido de brinde da bibliotecária. Devia haver uns cinquenta ou sessenta deles. Submersos em pouca quantidade de água, eles se apertavam uns contra os outros. Um deles movia as pinças ligadas ao corpo achatado como se me enviasse algum tipo de sinal. Ao erguer os olhos, levei um susto. Em uma placa de isopor estava escrito em grandes letras vermelhas “Caranguejo de água doce”, e abaixo delas, em letras pretas, um pouco menores: “Para fritura! Para ser seu animal de estimação!” Animal de estimação? Ali era o setor de alimentação. Aqueles caranguejos deveriam estar sendo vendidos como alimento. Fiquei atordoado quando lembrei que havia a opção de adotar um deles como “pet”. Ou você os devora ou os ama. Os caranguejos ali estavam em uma encruzilhada de caminhos opostos. Senti minha garganta apertar ao imaginar o destino daqueles caranguejos dentro do aquário de plástico. Quem era eu perante minha empresa? Enquanto estava dentro da caixa, todos me bajulavam como gerente-geral, mas por fim acabei devorado pela organização corporativa. Examinando os sashimis, Yoriko se virou para mim. – Qual você prefere, carapau ou cavala? Ou quem sabe caranguejos? Yoriko os observou com profundo interesse. – De jeito nenhum – afirmei com uma voz embargada. – Nem pensar, ainda estão vivos. Não vamos comê-los. – Então que tal criá-los? – perguntou Yoriko em tom de brincadeira. Hesitei. Os caranguejos estariam felizes vivendo confinados em um aquário tão apertado? Não prefeririam estar enredados no torvelinho da cadeia alimentar? Ou esse seria apenas um pensamento racional da minha mente humana?"

Vale a leitura. Certamente, cada leitor irá receber as histórias de uma forma diferente.

"Cada um encontra um significado próprio no brinde que dou de presente. O mesmo acontece com os livros. Os leitores fazem suas próprias conexões com as palavras, independentemente da intenção do autor. Assim, cada leitor obtém algo único."

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

três



"Nunca sabemos nos comunicar
com aqueles em quem não acreditamos."

Quando terminei a leitura de "Três", da francesa Valérie Perrin, o livro continuou comigo. Escrevo este texto enquanto ouço, no Spotify, uma das playlists com as referências musicais deste livro. E fico a imaginar o quanto deixei passar da história para não perceber o que estava acontecendo com um dos personagens. O romance pode ser considerado uma homenagem à música dos anos 80 e 90, especialmente ao rock e ao pop, incluindo músicas francesas, afinal, se passa todo na França, sendo que a maior parte no interior, em uma pequena cidade chamada La Comelle. Há também passagens em Paris.

Além da amizade, que veremos mais adiante, outra questão abordada é a proteção dos animais. Embora não seja o mote principal, é referenciada por meio de uma das protagonistas que administra um abrigo e é vegetariana. Tudo é colocado de uma forma bem sutil, o que achei interessante.

O enredo mostra três amigos inseparáveis, que se conhecem aos dez anos. No primeiro dia de aula daquele ano letivo, acompanhamos o momento em que aguardam o anúncio de qual sala irão ficar, se na da professora madame Bléton ou na do professor monsieur Py, considerado um carrasco. Ninguém quer ficar com ele, o que deixa todos bem apreensivos. Nina Beau, Étienne Beauclair e Adrien Bobin acabam juntos justamente com o temido professor, que prejudicará fortemente um deles. Essa passagem já dá indícios de que é Nina quem será o elo do trio. Percebendo a insegurança, ela segura na mão dos dois garotos e, juntos, entram na sala. E esta será a forma como serão vistos por muitos anos: ela no meio, Adrien à direita e Étienne à esquerda. Temos aquele estilo de sala bem comum nos anos 80, com dois lugares; Nina e Étienne sentam juntos e Adrien fica logo atrás.

Enfim, o entrosamento é imediato. Passam a fazer tudo juntos. As famílias se aproximam. Um ponto interessante é que a narrativa não começa com eles. Ela é intercalada entre os pontos de vista de cada um dos personagens. E começa com uma quarta personagem, Virgínia, que os observa de longe. Diz que os três estavam sempre juntos e próximos dela, mas nunca a enxergaram. Ela acompanhava as brincadeiras, os passeios. Por vezes, chegava a esbarrar neles e, ainda assim, não a viam. É justamente aí que vamos nos surpreender. Com o passar dos anos, eles acabam se separando, sem realizar o plano de irem juntos à Paris e de formarem uma banda musical. O reencontro será anos mais tarde, reforçando que algumas amizades são eternas.

"Hoje de manhã, Nina me olhou sem me ver. Seu olhar escorregou como as gotas de chuva na minha capa impermeável, logo antes de ela desaparecer dentro de um canil. Estava caindo uma tempestade."

Nina é vegetariana e amiga dos animais. Ela foi cuidada desde pequena pelo avô. Sua mãe a abandonou recém-nascida. Ela tem talento para o desenho, mas vai abdicar desse dom a favor de um casamento. Adrien mora com a mãe e tem pouco contato com o pai. É o mais tímido dos três. Gosta de escrever e, em Paris, se revelará um grande escritor. Étienne é o galã, mais extrovertido, bom nos esportes, mas não muito afeito aos estudos. Sua família tem dinheiro, o que o deixa em uma situação relativamente confortável. Ele tem uma irmã mais nova, Louise, que também será importante para a trama.

Como eu disse, o livro faz menção sutil à proteção dos animais. Isso se dá por meio de Nina, que sempre gostou de bichos, especialmente cachorros e gatos. É justamente num abrigo de animais abandonados que ela própria, ao fugir de um relacionamento abusivo, irá se refugiar. Tempo necessário para rever sua vida, escolhas e acolher definitivamente os animais em sua vida. Aliás, a diretora do abrigo que a recebe também precisou fugir e foi parar lá, assim como Simone, voluntária que também encontrou neste lugar o motivo para continuar vivendo após perder o filho.

Contudo, a passagem mais marcante deste traço de Nina se dá num diálogo dela com a mãe, no seu leito de morte. Sem ter muito o que dizer àquela mulher que lhe é estranha, mas que ao mesmo tempo sente-se impelida a amparar naquele momento, ela relata o que é cuidar de um abrigo e o dilema entre continuar ali, pelo amor e pelo olhar dos animais, e o fardo que isso representa.

"Cuidar de um abrigo é um sacerdócio." Sempre dá pra achar o que é gratificante e bom dentro disso. Aguentar o tranco. A gente faz pelo olhar deles. Amar os animais, mas sobretudo não ter adoração por eles, senão você morre de tristeza. Tem muitos momentos no ano em que eu fico com vontade de largar tudo. Abandonar os abandonados. Achar um emprego tranquilo, em outro lugar que seja limpo, quente, seco e silencioso. Onde não vou mais ouvir os cachorros latindo ou cheirando minha bunda quando vou passear com eles."

Todos os personagens que se aproximam dos animais foram, de algum modo, abandonados. E se identificaram com cães e gatos ali deixados. Há, de certa forma, uma aproximação por estarem na mesma situação. Para além disso, há ainda a questão de espécies companheiras e a necessidade de amor incondicional. Talvez seja por isso que, lá pelas tantas, Nina relata como é difícil deixar um cachorro partir quando adotado.

Para a filósofa e zoóloga norte-americana Donna Haraway, que, dentre outros temas, estuda as interações entre humanos, animais e máquinas, é comum, nos Estados Unidos (e aqui no Brasil e em outros vários países também), atribuir aos cachorros a capacidade de "amar incondicionalmente". De acordo com essa crença, pessoas com problemas diversos encontram consolo no "amor incondicional" de seus cachorros. Em troca, os amam como se fossem filhos. Haraway argumenta que os cães e humanos têm um vasto repertório de modos de se relacionar, e a crença no amor incondicional pode ser nociva, principalmente dentro da cultura consumista contemporânea. O amor verdadeiro e respeitoso envolve reconhecer e honrar as diferenças significativas entre as espécies, ao invés de projetar fantasias humanas nos cães. Através do exemplo de J.R. Ackerley e sua cadela Tulip, Haraway ilustra que uma relação amorosa genuína entre humanos e cães é caracterizada por um esforço contínuo de entender e atender às necessidades um do outro, reconhecendo a alteridade e a intersubjetividade presentes na relação.

Outro ponto importante é que, desde criança, Nina, de algum modo, já carregava a percepção da liberdade tirada dos animais. Isso se dá durante uma visita com o avô ao zoológico. A princípio, ela fica eufórica com o passeio, porém, ao retornar para casa, o avô pergunta do que ela mais gostou. E a resposta é esta: "— Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."

Isso porque, logo ao chegar ao zoológico, ela se envergonha ao ver os animais em cativeiro. A presença da multidão e a ausência dos pais a fazem se sentir deslocada e triste. Ela percebe a tristeza dos animais presos e, de algum modo, se identifica com o cativeiro deles. Chama-lhe a atenção a pantera negra que, diante de todos os olhares, tenta buscar a saída ou o mínimo de privacidade com seu filhote. Todos deveriam ler essa passagem, que explicita bem a angústia dos animais presos. E, assim, de forma sutil, Perrin nos fala sobre a importância de uma convivência respeitosa entre as espécies.

"Nina vê uma primeira placa trinta quilômetros antes de chegarem: “Pa… Parque de animais”. Ela dá uma pulo de alegria e diz ao avô: — Vô, já sei aonde a gente tá indo! Quanto mais se aproximam, mais fotos ela vê de animais e de carrosséis em grandes painéis coloridos. Ela se agita. Se remexe. Pierre Beau sorri, ele acertou em cheio. Na região, todos falam do parque de animais como se fosse o paraíso: carrosséis, um trenzinho que dá a volta no parque, batata frita e algodão-doce. Animais como não se vê nunca: hipopótamos, pumas, elefantes, lobos, macacos, girafas. Ao redor de Nina, famílias, risos, alguns choros, malcriações de crianças. Com um balão na mão, ela observa os outros observando os animais. Nina passa muito tempo isolada. Vê as coisas e as pessoas à distância. Ela está de mãos dadas com o avô. A mão dele é como uma ilha. No entanto, ela se sente mal. Está com dor de cabeça, a barriga pesada, uma fraqueza nas pernas. Seria por causa da multidão? Do calor? Da ausência dos pais? De seus pais? As pessoas em volta, as que têm sua idade, estão encaixadas entre um pai e uma mãe. Ela ouve: “Mamãe! Vem ver!”, “Papai! Olha!”. Ela própria nunca disse essas palavras. Dentro de fossos, atrás de barreiras de vidro ou de grades, ela acha que os animais se parecem. É como se o cativeiro os uniformizasse, lhes desse os mesmos comportamentos, os mesmos olhares. Uma pantera negra, com o filhote na boca, anda de um lado para outro dentro da jaula, buscando uma saída diante do olhar curioso e fascinado dos visitantes. Não tem nenhum canto onde possa se esconder. Nenhuma intimidade. Entregue, submissa, dissecada. Nina tem vergonha. O que diverte os outros a paralisa. É pequena demais para entender o que aquela vergonha significa. Só sente que não é igual. Que algo ruge dentro dela. Fica aliviada ao subir no trenzinho que dá a volta no parque a dois quilômetros por hora. Adormece apoiada no ombro do avô, exausta de tudo que está sentindo desde que chegou naquele lugar. — Quer ir ver os lobos antes de ir embora? — pergunta o avô, segurando sua mãozinha, a dele morna e macia. — Não, estou com medo. Ela mente. Nina nunca teve medo de nenhum animal. Fica aliviada quando entram de novo no carro e pegam a estrada. Fica aliviada de dar as costas para aquele lugar. — Gostou? — Gostei. Obrigada, vovô. — Do que você mais gostou? Das girafas ou dos leões? — Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."


Algumas músicas mencionadas no livro

Cranberries - "Zombie"
A-ha - "Take on Me", "The Sun Always Shines on TV"
Cyndi Lauper - "True Colors"
Madonna - "La Isla Bonita"
Indochine - "La vie est belle", "Un jour dans notre vie", "Tes yeux noirs", "Canary Bay", "Troisième sexe", "Karma Girls"
The Cure - "Boys Don't Cry", "Charlotte Sometimes"
Depeche Mode - "I Feel You"
Gloria Gaynor - "I Will Survive"
Donna Summer - "I Feel Love"
Eruption - "One Way Ticket"
Nirvana - "Smells Like Teen Spirit"
William Sheller - "Un Homme Heureux"
Étienne Daho - "Le Grand Sommeil", "Corps et armes", "Mythomane"
INXS - "Need You Tonight"
The Christians - "Words"
David Bowie - "Rebel Rebel"
2 Unlimited - "Let the Beat Control Your Body"
Pixies - "Where Is My Mind"
Pierre Perret - "Mon P'tit Loup"
Françoise Hardy - "Il ne dira pas"
Zazie - "Cow-boy"
Cock Robin - "The Promise You Made"

domingo, 4 de agosto de 2024

a vegetariana


"Onde já se viu gente que não come carne hoje em dia?!"



"A Vegetariana", da sul-coreana Han Kang, pode nos levar a uma falsa interpretação se considerarmos apenas o título. O livro não trata de vegetarianismo, defesa dos animais ou alimentação saudável. Publicado em 2007, o romance explora os delírios daqueles que não conseguem se adaptar aos padrões estabelecidos pela sociedade. Essa definição simplista, contudo, não captura a profundidade da narrativa de Kang, que nos deixa estarrecidos.

A vegetariana do título é Yeonghye, que, de repente, decide parar de comer carne. Até então, ela passava despercebida por todos, inclusive pelo marido, que só se casou com ela por considerá-la excessivamente comum, sem atrativos ou ambições, e que não competiria com suas próprias questões. Ele relata que não precisaria se esforçar para conquistá-la.

O romance é dividido em três partes, com narrativas sobre a protagonista feitas pelo marido, cunhado e Inhye, sua irmã mais velha. Só ouvimos sua voz nos poucos diálogos que mantém dentro do ponto de vista dos demais personagens. Há ainda algumas passagens oníricas em primeira pessoa, mas, de modo geral, sua suposta alucinação é percebida apenas através dos olhos dos outros.

O marido conta que ela passou a ser especial somente quando a viu jogando fora todas as carnes da geladeira. Até então, era apenas uma pessoa pacata e calada, sem nada que a destacasse. A decisão de parar de comer carne é acompanhada por um comportamento cada vez mais recluso.

"Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. Para ser bem franco, não me senti atraído por ela na primeira vez em que a vi. Estatura mediana. O cabelo não era nem comprido nem curto. Tinha a pele levemente amarelada, as maçãs do rosto um pouco pronunciadas. Vestia-se de forma neutra, como se tivesse algum tipo de receio de se destacar. Calçando um par de sapatos pretos bastante sem graça, ela se aproximou da mesa em que eu a esperava. Não andava nem rápido nem devagar, sem firmeza, mas também sem muita fragilidade."

Ele se constrange, sobretudo, quando precisa levá-la a eventos sociais do trabalho. Em uma dessas ocasiões, sente vergonha ao ver como julgam a esposa por seus hábitos excêntricos. Além de vegetariana, ela também não usa sutiã, por exemplo.

"A primavera chegou, e minha mulher continuou assim. Passamos a comer somente verdura pela manhã. Até parei de reclamar. Quando uma pessoa muda de forma radical, não há outro remédio senão segui-la."

O ápice é quando há um jantar na casa da irmã e o pai se revolta, enfiando goela abaixo na moça um pedaço de carne. Como ela resiste com toda sua força, ele a esbofeteia. Yeonghye, então, corta seus pulsos na frente de todos. Curioso ou triste é ver que ninguém naquele ambiente fica do lado dela: mãe, marido, irmão, irmã, cunhado. A comoção, se é que podemos assim chamar, só vem quando o sangue jorra.

Na segunda parte, a história é sob a ótica do cunhado, marido da irmã. Ele vive para sua arte, que ninguém entende. No momento da loucura da cunhada, a quem pouco prestou atenção até aquele jantar, está num período de bloqueio criativo. Mas o incidente o reanima, principalmente quando a esposa diz que a irmã tem uma mancha de nascença nas nádegas. E isso vira uma obsessão. Ele só pensa na tal mancha e não sossega até que finalmente a vê. Para tanto, usa a arte. Chama a cunhada para fazer parte de uma performance artística na qual seu corpo será todo pintado de flores. Um amigo chega a participar, mas desiste quando vê que estão indo longe demais. E, de fato, foram.

"Foi nesse instante que lhe veio a imagem de uma flor azul-esverdeada, da cor do mar, saindo do meio das nádegas de uma mulher. A possibilidade de sua cunhada, irmã mais nova de sua esposa, ainda ter a mancha mongólica na bunda o intrigou. Inexplicavelmente, ele associou a informação à ideia de homens e mulheres, com flores pintadas pelo corpo, copulando, formando em sua cabeça uma clara relação de causa e efeito."

O fim dele será melancólico, refletindo a vida medíocre que leva. Aliás, cabe ressaltar que o marido da protagonista admira secretamente a cunhada. Assim como o marido de Inhye irá desejar, sob aspectos questionáveis, Yeonghye. Será ele, mesmo que com intenções duvidosas, o único que reconhece a profundidade de sua transformação.

"Vendo-a aceitar sem resistência todo aquele processo, considerou-a um ser sagrado, nem humano nem animal, ou talvez um ser entre o vegetal, o animal e o humano, tudo ao mesmo tempo."

A terceira parte é contada por Inhye, que, apesar de ser vista como bem-sucedida, ponderada e que sabe conciliar todas suas funções, tem grandes ressentimentos. E muito diz respeito à irmã mais nova, que nunca conseguiu cuidar, de fato. Caberá a ela acompanhar o declínio físico de Yeonghye.

Ambas carregam feridas da infância marcada por um pai autoritário e violento, o que se torna evidente no depoimento de Inhye, que lamenta não ter conseguido proteger a irmã como gostaria. Ela recorda que o irmão aliviava a tensão batendo em outros meninos, enquanto ela se mantinha sempre obediente. Yeonghye, por sua vez, permanecia em silêncio. Somente mais tarde, compreende que esse silêncio era a forma que encontrou para se rebelar. Recorda da pequena Yeonghye querendo se perder na floresta.

Ao seguir as regras, Inhye cumpria o papel que lhe era destinado, mas isso a deixou exausta. Em um momento de crise, ela foge para as montanhas, onde experimenta por um instante o vislumbre da liberdade, mas retorna, principalmente por causa do filho. Agora, carrega a culpa por ter quase abandonado tudo. Esta é a parte mais intensa do romance, com explosão de sentimentos, vontades, conflitos e muita, muita dor. Mas ela precisa aguentar mais um pouco, como o marido pedia e como a irmã sugere, já nos momentos finais. Quem sabe esta não é a chance de ajudar a irmã mais nova, deixando que ela, finalmente, parta, tornando-se a árvore que acredita ser.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

O devir-vegetal

A jornada de Yeonghye pode ser compreendida por meio do conceito de "devir", discutido por Deleuze e Guattari, que implica um processo contínuo de metamorfose. Durante sua internação em um sanatório, ela foge e mais tarde é encontrada na floresta, imóvel, como se fosse uma árvore.

"Encontraram-na sem se mexer, de pé em um barranco recôndito e distante da mata, como se ela fosse uma das árvores de tronco grosso sob a chuva."

Aos poucos, para completamente de comer, aceitando apenas água. Seu corpo definha enquanto sua irmã implora para que ela coma, chegando a levar frutas e seus pratos favoritos, mas nada a faz mudar de ideia. Yeonghye afirma categoricamente que só precisa de água e de ficar de cabeça para baixo, pois, afinal, as árvores são assim. A vegetariana, neste sentido, é essa mulher vegetal, em processo de metamorfose decorrente de seus sonhos com carne, sangue, assassinato e passado traumático. Para suportar, só lhe resta vegetar, criar raízes com o que há de mais seguro: a natureza e vida que pulsa com toda a intensidade.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

Assim como Gregor Samsa, de Franz Kafka, que se transforma em um inseto em seu quarto, para o espanto de sua família, tanto no autor tcheco quanto na autora coreana, a realidade dos personagens é difícil de ser compreendida. Jamais saberemos o que realmente se passa no corpo e na mente desses personagens repletos de idiossincrasias.

"Tenho alguma coisa entalada na boca do estômago. Não sei o que é. Mas está sempre aqui. Mesmo depois de parar de usar sutiã, não deixei de sentir esse incômodo. Por mais que respire fundo, esse aperto no peito não passa. Gritos e choros se sobrepõem e ficam encravados aqui. É por causa da carne. Comi carne demais. Todas essas vidas estão entaladas aqui. Tenho certeza. Sangue e carne foram digeridos e se espalham por todos os cantos do meu corpo; os resíduos foram colocados para fora, mas as vidas insistem em obstruir o plexo solar."

Representação dos animais

Importante destacar alguns aspectos relacionados aos animais no livro. O primeiro diz respeito à própria negação da animalidade por parte de Yeonghye ao se ver como vegetal, e todo seu esforço para se transformar em árvore.

No entanto, a descrição dos sentimentos e pensamentos de Yeonghye revela um paradoxo profundo em sua relação com a carne. Por um lado, ela rejeita completamente o consumo de carne, desejando se transformar em uma forma de vida vegetal, pura e não-violenta. Por outro lado, ela sente um desejo visceral e incontrolável por carne, manifestando-se em pensamentos violentos e físicos, como a saliva acumulando em sua boca ao passar por um açougue. Ela pensa em esganar uma pomba e o gato do vizinho. E ela, efetivamente, mata com uma mordida um passarinho durante sua primeira internação. Aqui não cabe entrar em uma dicotomia entre ser isso ou aquilo. Somos complexos, como diria Edgar Morin. Somos natureza, somos cultura.

Outro ponto a ser destacado é o utilitarismo dos animais. Percebemos isso na reação extremamente exagerada de todos quando confrontados com a decisão da personagem de parar completamente com o consumo de carne e seus derivados. O pai chega a enfiar, à força, um pedaço de carne de porco na boca da filha, evidenciando da pior maneira possível a não aceitação de um cenário diferente. E o porco aqui é apenas isso: alimento. Estamos dentro de uma sociedade carnívora, que vê na carne a principal fonte de proteínas e, de algum modo, de ascensão social. Tanto que nas eleições de 2022 para presidente do Brasil, a picanha virou termômetro para avaliar o desempenho dos dois candidatos no segundo turno, conforme observamos na reportagem do Poder 360, Entenda a “guerra da picanha” travada por Lula e Bolsonaro.

Em terceiro lugar, temos o cão que a mordeu quando criança. O que vem depois foi muito difícil de ler. A narrativa de Kang rasga nossa alma. O cachorro foi brutalmente maltratado pelo pai. Dói imaginar o seu sofrimento. E dói mais ainda saber que isso é deveras comum, não só na Coreia do Sul, como no mundo inteiro. Para finalizar, ele é preparado e servido para a jovem Yeonghye. Diz-se que seu ferimento só será curado se ela comer a carne daquele que a feriu. Vale ainda ressaltar que não há estranhamento em comer cachorro. Somente agora, em 2024, foi aprovada uma lei que proíbe o consumo de carne canina, a valer a partir de 2027.

Por fim, os sonhos. São eles o estopim para o desenrolar de Yeonghye. Ela sonha com pedaços enormes de carne. Vê nas mãos sangue fresco dos pedaços que ela comeu. Em seus pesadelos vê crânios e olhos ferozes de animais, que parecem sair de dentro dela. Ao mesmo tempo, ela se vê assassinando. Seriam animais humanos? Tudo se confunde nessa animalidade da qual ela tenta fugir. E é justamente esta tensão que constitui o humano, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, que estuda a relação dos animais e dos humanos em suas obras. Nós só podemos nos afirmar como humanos ao transcender e transformar a animalidade que nos fundamenta. Essa transformação ocorre através de uma ação de negação, na qual tentamos dominar e, eventualmente, superar nossos instintos e características animais. O conflito interno de Yeonghye, portanto, não é apenas pessoal, mas carrega o significado de ser humano.

"O homem existe historicamente apenas sob esta tensão: ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade."
(GIORGIO AGAMBEN, em O Aberto)


"Era um bosque escuro. Não havia ninguém nele. Machuquei o rosto e lanhei os braços ao passar pelos arbustos. Tinha certeza de que estava acompanhada de outras pessoas. Acho que me perdi sozinha. Fiquei com muito medo. Sentia frio. Atravessei um arroio congelado e encontrei uma construção iluminada que mais parecia um celeiro. Passei por uma cortininha de palha, e então eu vi. Centenas de pedaços de carne, uns pedaços enormes, estavam pendurados em sarrafos. De alguns deles pingavam gotas de sangue vermelho ainda fresco. Abri caminho por incontáveis pedaços de carne, mas não conseguia encontrar a saída do outro lado. Meu vestido branco ficou completamente encharcado de sangue. Não faço ideia de como saí de lá."

quarta-feira, 31 de julho de 2024

desonra



"Pense em coisas tranquilas, em coisas fortes. 
Eles farejam o que a gente pensa." 

"Desonra", de J. M. Coetzee, é uma obra que, embora focada na complexa vida pessoal e social de seus personagens, oferece uma profunda reflexão sobre a relação entre humanos e animais. Situado na África do Sul pós-apartheid, o romance aborda culpa, redenção e o impacto da violência, tanto humana quanto animal. No romance, a jornada de David Lurie ao lado de sua filha Lucy revela um profundo processo de transformação pessoal, que é espelhado em sua crescente empatia pelos animais. 

Você sai da leitura e segue perdido, como os personagens. A história começa com o professor David Lurie, de cinquenta e dois anos, divorciado - duas vezes - e com uma vida tranquila e morna. Dá aulas sobre temas que não lhe interessam, o que faz com que elas sejam bem ordinárias.

Uma vez por semana tem encontro marcado com uma mulher em um quarto limpo, com toalhas e sabonetes à sua disposição. Está no que, hoje, chamamos de zona de conforto. Até que Soraya, a moça com que se encontra para o sexo casual, diz que não poderá mais encontrá-lo. Após tentativas frustradas para descobrir o motivo, ele a vê com sua família, marido e filhos, na rua. O incidente o leva a refletir sobre o envelhecimento, sua vida e até mesmo a castração, a fim de parar com os desejos.

No meio de tudo isso, uma de suas alunas se sobressai, Melanie Isaac. Após uma abordagem na universidade, ele a convida até sua casa. Outros encontros acontecem, mesmo contra a vontade da garota, que se sente, de algum modo, obrigada a ceder às investidas. Depois disso, há a denúncia de abuso sexual e ele acaba se afastando do cargo e foge para a fazenda da filha, Lucy, que também lida com suas próprias questões. Ela acabou de terminar um relacionamento e tenta se encaixar no modo de vida das pessoas ao seu redor. David mora na Cidade do Cabo. E Lucy mora em Salem, Kenton, no Cabo Leste. São quase 900 km de distância. Mas ele precisa desse refúgio para superar, ou não, a culpa. 

"Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço."

Chegando na casa da filha, tenta se adaptar à vida no interior da África do Sul. Fica apreensivo ao vê-la morando sozinha, sem vaidade e com parcos recursos. Aos poucos, porém, vai se reencontrando naquele lugar longínquo (em todos os sentidos para ele), ajuda no que é possível e até encontra um trabalho voluntário no abrigo de animais.

Lucy tem um hotel para cachorros e uma, em particular, nos é apresentada. Assim como os demais personagens da casa, também foi abandonada. Trata-se de Katy, que chegou para ficar hospedada e por lá ficou. Ao ser questionada pelo pai se não tem medo de ficar sozinha, Lucy responde que: 

"tem os cachorros. Os cachorros já são alguma coisa. Quanto mais cachorro, mais proteção. Mas seja como for, se alguém resolver entrar, não acho que estar em duas seja melhor que uma."

Mas ela conta ainda com Petrus, seu vizinho, que foi seu empregado no passado. A impressão é que há um pacto entre eles, com favores mútuos. Há Bev, que cuida do refúgio de animais na região, que David, a pedido da filha, irá ajudar. Cabe à Bev praticar a eutanásia nos animais que não podem mais ser curados e também naqueles que não poderão encontrar um lar. A palavra eutanásia não aparece, mas fica bem claro do que se trata. Mas ela não faz isso de modo frio, pelo contrário, conversa com os bichos e procura dar conforto e acolhimento em seus últimos instantes de vida.

David não sente nenhuma empatia por este trabalho e chega a repudiar Bev por sua aparência física. Em uma conversa com a filha deixa claro sua percepção, que reflete a de muitas pessoas: 

"Na criação, nós somos de uma ordem diferente dos animais. Não necessariamente superior, mas diferente. Portanto, se vamos ser bons, que seja por simples generosidade, não porque nos sentimos culpados ou temos medo de vingança." 

Dentre os animais tratados por Bev, está um bode que levou uma mordida de cachorro e que está agonizando, com feridas graves e bem infeccionadas. 

"O bode treme, solta um balido: um som feio, baixo e áspero."

Para ele, só resta descansar pelas mãos de Bev, porém, não é o que vai acontecer. Seus `proprietários`, assim como muitos, firmando a questão da posse, preferem fazer o serviço em casa. É uma das passagens que mais me marcou, pelo sofrimento do bode, por ele entender o que estava por vir, por ter sido privado, no fim, do único alívio que poderia ter. É quando David começa a entender o real propósito do trabalho de Bev: "aliviar o sofrimento dos bichos da África."

E, assim, à medida que David vai se aproximando dos animais, de Bev e da cadela Katy, sua visão sobre os animais vai mudando. Há uma sintonia que ele não esperava sentir. Percebemos isso de forma clara quando ele vê dois carneiros amarrados perto da entrada da casa. Sabe que estão lá porque foram os escolhidos para serem servidos na festa que Petrus está preparando. Mais tarde, só lhe resta se distanciar do prato que lhe é servido.

Seus temores se mostram reais e a casa é invadida por três homens e sua filha violentada, numa passagem bem trágica. Ele mesmo é ferido, mas é Lucy quem fica com as piores cicatrizes. A partir daí, o relacionamento entre eles, que já não era tão próximo, se torna ainda mais conturbado, principalmente por conta de suas acusações contra o vizinho, que a filha insiste em defender. Ele acaba voltando para sua cidade de origem e lá descobre que perdeu o pouco que ainda lhe restava, sua casa também foi roubada. O que sobra: terminar o libreto sobre a vida do poeta inglês Lord Byron, suas paixões, culpas. Sua amante casada, a filha que abandonou. E durante o processo criativo, ao pesquisar a melodia perfeita para retratar a história do romancista, percebe nuances de suas próprias escolhas. A narrativa de Coetzee é deslumbrante. É como se estivéssemos na plateia acompanhando a ópera.

Outro animal que toca David é um dos cães do canil, que anda se arrastando. Nenhum visitante se interessou em adotá-lo e seu tempo está quase no fim. Às vezes, solta o cão do compartimento, deixando-o passear pelo quintal ou cochilar aos seus pés. O cão, por sua vez, adotou nosso protagonista, demonstrando grande afeição por ele. Encanta-se pelo som do banjo quando Lurie toca e canta, enquanto escreve o libreto.

"Começou a sentir um carinho particular por um dos cachorros do canil. É um jovem macho que tem um quarto traseiro murcho que arrasta pelo chão. Ele não sabe se nasceu assim. Nenhum visitante mostrou interesse em adotá-lo. Seu período de graça está quase no fim; logo, terá de ser submetido à agulha. Às vezes, quando está lendo ou escrevendo, solta-o do compartimento e deixa que passeie, com seu jeito grotesco, pelo quintal, ou que cochile aos seus pés. Não é “dele”, de jeito nenhum; teve o cuidado de não lhe dar um nome (embora Bev Shaw refira-se a ele como Driepoot, três patas); mesmo assim, ele é sensível à generosa afeição que o cachorro lhe dedica. De forma arbitraria, incondicional, foi adotado; o cachorro é capaz de morrer por sua causa, ele sabe disso. O animal fica fascinado com o som do banjo. Quando dedilha as cordas, o cachorro se senta, inclina a cabeça, escuta. Quando cantarola um verso de Teresa, e o cantarolar começa a se encher de sentimento (é como se a sua laringe engrossasse: dá para sentir o sangue pulsando na garganta), o cachorro estala os beiços e parece a ponto de cantar também, ou de uivar."

Aliás, os cachorros de um modo geral o comovem e serão, de algum modo, sua redenção. A fim de dar um fim mais digno a eles, ele irá levá-los para serem cremados no incinerador do hospital. Mas faz isso antes que outros sacos com lixos diversos cheguem, a fim de garantir um mínimo de dignidade aos animais. Ele se questiona por que está fazendo este trabalho. Seria por Bev, com quem acaba aliviando sua tensão sexual, pelos cachorros? Ou, no fim, por ele mesmo?

"Curioso que um homem tão egoísta como ele possa estar se oferecendo para servir a cachorros mortos. Deve haver alguma outra maneira, mais produtiva, de se dar par ao mundo, ou para uma visão do mundo. Podia, por exemplo, trabalhar mais horas na clínica." 

Ao aproximar-se dos animais, ele também se reaproxima de seus problemas. Acaba procurando o pai de Melanie. No jantar, lhe é servido frango. Mas ao contrário do carneiro, aqui não há menção à repulsa por ter um animal no prato, pelo contrário. Afinal, ele não os viu em vida. No fim, não há redenção. Há a surpresa de que nem mesmo a mais bela alma poderá salvar David. Ele já desistiu de tudo. Não há nada que o faça se distanciar do presente, tão cruel, tão subversivo.

sábado, 27 de julho de 2024

literatura e animalidade



"Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão."

Logo na primeira frase de "Literatura e Animalidade", Maria Esther Maciel afirma que ainda estamos longe de entender os animais.

Este enunciado estabelece o tom de seu estudo, que desafia a percepção tradicional dos animais como meros objetos ou símbolos à disposição do entendimento humano.

A autora comenta ainda a maneira com que tratamos os animais, variando conforme a utilidade que apresentam para nós.

"Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados, eles não se deixam, paradoxalmente, capturar em sua alteridade radical."

Ao questionar o que é humano e o que é animal, Maciel aponta para as tentativas científicas de definir essa relação, frequentemente apoiadas na racionalidade e na "máquina antropológica do humanismo". Este termo critica a tendência do pensamento humanista ocidental de colocar os humanos no centro do universo, assumindo uma superioridade inerente sobre o mundo natural, incluindo os animais.

A separação entre humanos e animais, acentuada no Ocidente durante o século 18 com a ascensão do pensamento cartesiano, tratava os animais como meras máquinas sem alma. Sob essa visão, estudos científicos rigorosos, como a taxonomia de Lineu, começaram a moldar a investigação zoológica, influenciando também o surgimento dos primeiros zoológicos na Europa.

Após essa introdução, a atenção se volta para o campo do imaginário e para espaços considerados alternativos do saber humano, "nos quais a palavra animal ganha outros matizes, inclusive socioculturais". Maciel aborda a evolução na forma como se denomina obras literárias que trazem o animal. Antes, falava-se em bestiário, termo que ela critica devido às suas conotações negativas e medievais.

"Além disso, por suas origens medievais, o termo deriva da besta, palavra completamente contaminada pela carga simbólica negativa que lhe foi conferida pela tradição judaico-cristã ao longo dos tempos, afinando-se, por extensão, com a noção de bestialidade - qualidade daquilo que é brutal, grosseiro, monstruoso e maligno."

Assim, o termo bestiário esvazia o animal de anima, reforça sua dimensão negativa e marca sua exclusão da sociedade dos chamados "seres racionais".

Surge, felizmente, o termo zooliteratura, mais abrangente e que consolida tudo o que se diz sobre os animais nas diferentes práticas literárias. 

"Conjunto de diferentes práticas literárias ou obras (de um autor, de um país, de uma época) que se voltam para os animais. Nesse sentido, é bem mais aberto e menos cristalizado que o termo bestiário, uma vez que este se inscreve sobretudo na ordem do inventário, do catálogo, designando uma série específica de bichos reais e imaginários, podendo, também - de forma mais genérica -, designar uma coleção literária e/ou iconográfica de animais imaginários ou existentes de um determinado autor ou período cultural."

A autora baseia-se, sobretudo, na obra "O animal que logo sou", do filósofo francês Jacques Derrida, que utilizou o termo zooliteratura ao abordar os animais de Francis Ponge e zoopoética para falar dos animais de Franz Kafka. Ao preferir esses termos ao do bestiário, Derrida os transforma em conceitos que abrangem obras literárias focadas nos animais. 

"O termo zoopoética poderia ser empregado para designar tanto o estudo teórico de obras literárias e estéticas sobre animais quanto a produção poética específica de um autor, voltada para esse universo 'zoológico', como fez Derrida."

Dentro deste contexto, a obra de Franz Kafka, especialmente A Metamorfose (1915), é precursora na inserção de animais para além da visão antropocêntrica, inaugurando uma tradição literária que explora a interseção entre o humano e o não humano através de uma crítica profunda. Ao transformar o protagonista, Gregor Samsa, em um inseto, Kafka traz à tona a animalidade do humano por meio de uma situação surreal que ilumina as qualidades animais inerentes aos humanos. Essa abordagem kafkiana influenciou muitas obras literárias subsequentes, que, embora ainda recorram a alegorias derivadas de bestiários antigos e fábulas tradicionais, agora incorporam essa nova perspectiva, redefinindo o campo da zooliteratura ocidental.

"Trata-se, por isso, de uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade. Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no paradoxo, visto que, ao mesmo tempo que são e devem ser mantidas - graças às inegáveis diferenças que distinguem os animais humanos dos não humanos -, é impossível que o sejam mantidas de modo idêntico, já que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos." 

Maciel traz inúmeros exemplos a partir de suas análises que justificam seu enunciado e tese. Da Argentina, ela discute as obras de Jorge Luis Borges, como "Manual de zoología fantástica" e "O livro dos seres imaginários", que exploram criaturas reais e mitológicas, expandindo o imaginário animal na literatura. Do Brasil, destaca João Guimarães Rosa com "Meu tio o Iauaretê", que explora a metamorfose e a relação mística entre humanos e animais no sertão brasileiro. Também inclui Clarice Lispector, com "A paixão segundo G.H." e "O búfalo", que tratam da introspecção e da alteridade animal, e Machado de Assis, com "Ideias de canário" e outras obras que questionam a racionalidade humana em comparação com o saber animal.

Da África do Sul, ela aborda J.M. Coetzee e suas obras "Desonra" e "A vida dos animais", que exploram as questões éticas e políticas relacionadas ao tratamento dos animais na sociedade, revelando a marginalização e a violência enfrentadas por esses seres. De Portugal, Maciel menciona autores como Herberto Helder, cujas obras "Última ciência" e "Poemaco" exploram a presença dos animais na poesia, e António Osório, que, em um de seus escritos traz a comunicação das vacas por meio do olhar. Esses são apenas alguns exemplos.Vale a leitura completa para absorver tudo o que esta obra nos proporciona.