"Acho que às vezes nós sabemos aonde estamos
indo mesmo quando achamos que não sabemos."
indo mesmo quando achamos que não sabemos."
Estava num momento até que bom da vida, com o pai recuperado do alcoolismo, quando ao passar na frente da casa do seu vizinho mais hostil, ouve latidos que chamam a sua atenção. Era algo parecido com um pedido de ajuda, uma súplica. Sem pensar, ele invade a residência e se depara com o velho Howard Bowditch caído no chão ao lado da sua cadela, Radar. Apesar da rabugice do homem, logo eles se tornam amigos, especialmente por conta da pastora alemã, que rapidamente ganha o amor de Charlie.
Bowditch, mesmo com todos os cuidados recebidos, morre e deixa para o garoto um legado. A partir daí, sua vida dá uma reviravolta e ele vai parar em um universo paralelo para salvar a cachorrinha, que está bem debilitada. Adianto: ela não morre no final. É importante saber isso porque se você for como eu, deve fugir de livros ou filmes em que os animais morrem. No fundo da casa de Bowditch há um barracão que esconde um poço que leva a Empis, outro mundo repleto de seres fantásticos. Tudo com muita referência aos contos de fadas que conhecemos, como João e o Pé de Feijão, Mágico de Oz, Alice, A Pequena Sereia. Há ainda menções a autores do suspense e terror, como H.P. Lovecraft. Tudo é contado em primeira pessoa pelo Charlie mais velho, e escritor, relembrando seu passado e, especialmente, a grande aventura que envolve monstros, relógio do tempo que faz todos os seres rejuvenescerem, pessoas que ficam acinzentadas, que perdem, literalmente, os sentidos (sem boca, sem olhos, sem orelhas), castelos que se movem, jogos mortais (bem no estilo da série coreana Round 6). E, claro, princesas e muita magia. Nesta terra, é visto por seus habitantes como o príncipe que vai salvá-los da maldição e de Elden, o grande vilão. Quem leu (ou assistiu a adaptação para as telas) de "História sem fim", do alemão Michael Ende, também fará algumas analogias, sobretudo em relação ao jovem herói. Gostei muito da reflexão de Charlie sobre o quão crível é sua história ao comparar, por exemplo, uma pessoa do início do século passado aterrisando em uma grande cidade, com helicópteros, cinema 3D, smartphones e outras tecnologias que fazem parte do nosso dia a dia. É tudo relativo, afinal. Pensando bem, a história é bonitinha, sim. Vale a leitura! Aliás, posso dizer que é o segundo livro fofo de SK que leio. O outro foi Joyland, que recomendo.
"E a magia, você pergunta? O relógio de sol? Os soldados noturnos? Os prédios que às vezes pareciam mudar de forma? Eles consideravam normal. Se você acha isso estranho, imagine um viajante no tempo sendo transportado de 1910 para 2010 e encontrando um mundo onde as pessoas voam pelo céu em aves metálicas gigantes e andam em carros que atingem cento e cinquenta quilômetros por hora. Um mundo em que todo mundo anda por aí com computadores poderosos nos bolsos. Ou imagine um cara que só viu alguns filmes mudos em preto e branco sendo colocado na primeira fila de um cinema imax para ver Avatar em 3D. A gente se acostuma com o fantástico, é isso. Sereias e imax, gigantes e celulares. Se é no seu mundo, você aceita. É maravilhoso, né? Mas se olharmos de outra forma é horrível."
A representação dos animais
Dentro desta obra de Stephen King, a multiplicidade de relações entre seres humanos e animais evidencia uma rede de significados. Na narrativa, os animais desempenham funções diversificadas e são essenciais para o desenvolvimento da trama. Radar, a fiel cachorra, é protagonista e desempenha importante papel ao conectar Charlie ao universo paralelo. A ligação entre eles é profunda e verdadeira, tornando-os companheiros de aventura. Radar, em um momento decisivo, demonstra sua lealdade ao salvar Charlie.
Outro animal que carrega grande simbolismo, e frequentemente é referenciado pelos habitantes de Empis, é a borboleta monarca. Milhares delas caem mortas cobrindo a cidade com seus corpos quando o vilão toma o poder. Ao mesmo tempo, outras tantas sobrevivem e serão essenciais para que Empis reencontre a paz.
A jornada de Charlie neste mundo é marcada também pelo encontro com um gigante grilo vermelho, Snab, que ele salva das mãos de um anão que o estava agredindo. O seto, dito por Charlie, ser tão raro 'quanto cervos albinos', aparece de forma emblemática, carregando consigo um toque sagrado.
Já o frango é central para um dos eventos mais trágicos do romance. A busca pelo "melhor frango da região" acaba sendo o estopim para o trágico acidente que leva à morte da mãe do protagonista. Aparece frequentemente nas refeições dos personagens, inclusive em Empis. Mas em nenhum momento é tido como ser vivo que é. A associação com as refeições ressalta a dimensão onde os animais são vistos sob um prisma utilitário, reafirmando o papel que lhes é atribuído em nossa sociedade.
Há animais que são considerados repugnantes e, geralmente, associados à sujeira, ao submundo. É o caso do rato. Os ratos na obra de King, em particular, são retratados de forma poderosa e assustadora. Descritos como moradores escondidos das paredes e dos lugares escuros, eles são invocados em massa e se tornam instrumentos de uma vingança terrível contra um dos vilões. Enquanto alguns são eletrocutados pelo caminho, outros continuam a avançar, mordendo e devorando. Este evento ressalta a imagem do rato como uma criatura associada a horrores ocultos, mas também à retaliação e à justiça. Neste contexto, eles não são meramente repulsivos; têm um papel essencial no desenrolar dos acontecimentos.
Temos também a égua da princesa de Empis, Falada, cuja crina foi meticulosamente decorada, sugerindo sua importância ou até mesmo reverência. Sua participação não é apenas figurativa. Leah perdeu a boca e usa Falada para se comunicar pela técnica ventricular.
Há ainda Catriona, a desconfiada gata de um dos sobreviventes da família real de Empis. Assim como Radar, ela exemplifica o conceito mais tradicional e afetivo de animal enquanto parte da família.
A transformação do vilão em polvo e a figura da sereia, morta durante a destruição de Empis, evocam o "devir-animal", conceito discutido por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este "devir" não é uma evolução, mas sim uma série de conexões e intensidades entre diferentes entidades. Esta fusão entre identidades, onde o humano e o animal se entrelaçam, pode ser comparada com a "Metamorfose" de Kafka. Gregor Samsa, ao se transformar em inseto, confronta-se não apenas com sua nova forma, mas com toda a gama de implicações sociais e existenciais que ela carrega.
Outros animais aparecem aqui e ali, como gansos e lobos. Muitos apenas citados.
Em resumo, King, através de sua narrativa, nos instiga a refletir profundamente sobre as complexidades das nossas relações com o mundo animal, e como nossos entendimentos teóricos podem ser simultaneamente desafiados e enriquecidos por essas interações.
Trechos
"Dora colocou uma chaleira no fogo, serviu o ensopado e voltou para o fogão. Pegou canecas no armário (como as tigelas, eram meio caroçudas) e um pote do qual tirou chá. Chá comum, eu esperava, não algo que fosse me deixar chapado. Eu já estava me sentindo bem fora de mim. Ficava pensando que aquele mundo ficava abaixo do meu, de alguma forma. Era uma ideia difícil de afastar, porque eu tinha descido para chegar lá. Mas havia céu acima. Eu me sentia como Charlie no País das Maravilhas, e se tivesse olhado pela janela redonda do chalé e visto o Chapeleiro Maluco saltitando pela estrada lá fora (talvez com um gato sorridente no ombro), eu não teria ficado surpreso. Ou melhor, mais surpreso. A estranheza da situação não mudou o quão faminto eu estava; tinha estado nervoso demais para tomar um bom café da manhã antes de sair. Ainda assim, esperei até ela levar as canecas e se sentar. Era educação básica, claro, mas também achei que ela poderia querer fazer algum tipo de oração; uma versão zumbida de Abençoado seja o alimento que vamos comer. Ela não fez isso, só pegou a colher e fez sinal para eu comer. Como falei, estava delicioso. Peguei um pedaço de carne, mostrei para ela e ergui as sobrancelhas."
"Dora colocou uma chaleira no fogo, serviu o ensopado e voltou para o fogão. Pegou canecas no armário (como as tigelas, eram meio caroçudas) e um pote do qual tirou chá. Chá comum, eu esperava, não algo que fosse me deixar chapado. Eu já estava me sentindo bem fora de mim. Ficava pensando que aquele mundo ficava abaixo do meu, de alguma forma. Era uma ideia difícil de afastar, porque eu tinha descido para chegar lá. Mas havia céu acima. Eu me sentia como Charlie no País das Maravilhas, e se tivesse olhado pela janela redonda do chalé e visto o Chapeleiro Maluco saltitando pela estrada lá fora (talvez com um gato sorridente no ombro), eu não teria ficado surpreso. Ou melhor, mais surpreso. A estranheza da situação não mudou o quão faminto eu estava; tinha estado nervoso demais para tomar um bom café da manhã antes de sair. Ainda assim, esperei até ela levar as canecas e se sentar. Era educação básica, claro, mas também achei que ela poderia querer fazer algum tipo de oração; uma versão zumbida de Abençoado seja o alimento que vamos comer. Ela não fez isso, só pegou a colher e fez sinal para eu comer. Como falei, estava delicioso. Peguei um pedaço de carne, mostrei para ela e ergui as sobrancelhas."