Quem gosta de ler sabe que um livro puxa outro e quando você se dá conta, não consegue mais ler todos que gostaria.
Foi assim que veio meu interesse por histórias da Índia. Primeiro, a curiosidade despertada pela cultura indiana com a edição de 1994 do livro "O Mahabharata", do francês Jean-Claude Carrière. O Mahabharata é a principal obra em sânscrito, que Carrière conseguiu contar em prosa nesse agradável livro. Uma grande façanha, pois o original tem cem mil versos. É lá que está o famoso Bhagavad-Gita, diálogo entre Krishna e Arjuna.
Esse foi meu primeiro contato com a mitologia e deuses que habitam o distinto universo hindu. Do mesmo autor, também tenho o belíssimo "Índia - um olhar amoroso". Em suas palavras: "Neste livro, em que, por definição, a ordem é a alfabética e não dos itinerários ou dos anos - o que não é um exercício assim tão fácil, tão abrangente, como alguns costumam afirmar -, tentei ir, quando podia, um pouco além da visão superficial, e até mesmo por no caminho, como se fossem de monumentos, certas noções, modos de vida e personagens. É uma viagem que me deu muito prazer, e eu os convido a seguir comigo." Convite aceito. Ampliei a coleção com "Mahabharata - poema épico hindu", recontado por William Buck.
Por indicação de um amigo indiano, cheguei ao "O Deus das pequenas coisas", de Arundhati Roy. Junto com essa indicação veio o nome de outra autora: Jhumpa Lahiri e o comovente "Intérprete dos Males".
A partir daí, descobri vários títulos dessas e de outras autoras indianas, ou melhor, de autoras que nasceram na Índia ou são descendentes de indianos, mas que foram morar na Europa ou nos Estados Unidos. Ninguém melhor que elas para abordar a família, a cultura, a ruptura e as memórias dos indianos. Todas nos apresentam narrativas de incrível delicadeza. Impossível não sentir a emoção e a sensibilidade dos personagens. Recomendo a viagem literária, que para mim ainda não está concluída.
O Deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy
Estha e Rahel são irmãos gêmeos que foram separados aos oito anos de idade. Tomam rumos diferentes e só voltam a se ver quando completam 31 anos. Com o reencontro, um dilúvio de lembranças da infância e de pequenos momentos que os faziam felizes, que os levavam ao mundo da fantasia, que transgrediam seus direitos e que, também, foram responsáveis pelo afastamento. Esse foi o primeiro livro de Arundhati Roy, escritora e ativista política que nasceu em Kerala, na Índia, local onde a trama é ambientada. Por seu envolvimento com os direitos dos indianos, ela aproveita para, de modo sutil, criticar o sistema de castas. Vocês vão amar alguns personagens, odiar outros e entender todos, de alguma forma.
"Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas."
Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri
A autora é inglesa, filha de imigrantes indianos e cresceu nos Estados Unidos. E é entre as culturas oriental e ocidental que oscilam os contos que integram sua primeira obra. Todos os personagens têm suas origens na Índia. Há o casal que, na varanda de sua casa nos Estados Unidos, descobre que o amor acabou. Há a indiana que vai morar com o marido nos Estados Unidos e que passa horas picando legumes, enquanto ele se dedica à universidade em que trabalha. Para se distrair, ela aprende a dirigir e passa a cuidar de uma criança. Há outro casal que, após anos vivendo juntos no silêncio, descobre o quanto é verdadeiro o amor que um sente pelo outro, mesmo a relação tendo sido imposta pelos pais num casamento arranjado. Já o conto que dá o título ao livro, parte da diversidade de idiomas na Índia - são 18 oficiais e um tanto mais de locais - ao falar de um homem que atua como intérprete de um médico. Cabe a ele traduzir todas as línguas para que seja possível entender os males que "atormentam" cada um dos pacientes.
A senhora das especiarias, de Chitra Banerjee Divakaruni
Quem assistiu "Chocolate", do diretor sueco Lasse Hallström, vai identificar algumas semelhanças com o livro. No filme, baseado no livro homônimo de Joanne Harris, Vianne Rocher, interpretada por Juliette Binoche, chega a um vilarejo e abre uma loja de chocolates que chama a atenção de todos e causa a fúria de alguns. Suas misturas exóticas e inusitadas do doce proporcionam conforto para muitas pessoas. Já no livro da indiana, temos também uma personagem feminina que chega aos Estados Unidos e monta uma loja de especiarias. Mágicas, elas, da mesma forma, funcionam como remédio para o corpo e para a alma. O livro beira o fantástico, principalmente nas regressões de Mina, já idosa, à sua terra natal. A fantasia ainda é maior e mais empolgante quando ela encontra um jovem por quem se apaixona. Seriam suas especiarias capazes de lhe devolver a juventude?
Irmã do meu coração, de Chitra Banerjee Divakaruni
Relato da amizade e do amor entre duas primas: Anju e Sudha. Ambas são órfãs de pais e foram criadas apenas pelas mães. São extremamente unidas, mas os casamentos arranjados e um segredo de família as separam. Fisicamente, apenas. Anju vai para os Estados Unidos com o marido jovem, por quem se apaixona. E Sudha fica na Índia lidando com um marido mais velho e com a sogra que a tem como empregada. Sudha é extremamente bela e encanta a todos, até mesmo o marido da prima. Anju finge não perceber essa atração unilateral e, ao saber do sofrimento crescente de Sudha, a convida para morar com eles.
The unknown errors of our lives (Os erros desconhecidos de nossas vidas, em tradução livre), de Chitra Banerjee Divakaruni
São nove contos que revelam a beleza e a simplicidade dos indianos, em especial os que imigram para os Estados Unidos. As histórias falam de adaptação, nostalgia e nos mostram que atos isolados de outras pessoas podem definir nossa história. Muitas vezes não entendemos os dizeres de nossas mães durante a infância e a adolescência. Mas quando somos nós as mães, suas afirmações mostram-se sensatas e inevitáveis. Em "The love of a good man" (O amor de um bom homem), Mona convive com a lembrança da mãe, que morreu vítima de um câncer. Acredita-se que tenha sido desencadeado pela desilusão que teve com o marido, que abandonou a família na Índia para ir morar nos Estados Unidos. Após a morte da mãe, ela própria deixa a Índia e constitui sua família, também em terras norte-americanas. O que ela não contava é que seu pai voltaria a procurá-la. A todo momento a recordar as máximas da mãe, agora verdadeiras, ela tenta evitar o reencontro. Perdoar ou não perdoar? “Quando eu optei pela raiva, eu não tive que pagar um preço por isso?”, ela se pergunta. E responde com outra pergunta: "Não temos todos que pagar de alguma forma, não importa o que escolhemos.”
The namesake (O xará), de Jhumpa Lahiri
Mostra a trajetória de uma família indiana que vive nos Estados Unidos. O pai é um importante professor. A mãe, uma dona de casa. Os filhos, nascidos no ocidente, renegam suas origens. Adaptaram-se às regras dos norte-americanos. Silenciosos, os pais acompanham o distanciamento e a fuga da ideia de família. O livro foca, sobretudo, o filho Gogol. O nome lhe foi dado por seu pai, em homenagem ao escritor russo, o que traz vários constrangimentos ao rapaz, que não hesita em trocá-lo, ferindo ainda mais o orgulho paterno. Prepare-se para as lágrimas que virão. Foi adaptado para o cinema.
Unaccustomed Earth (Terra descansada), de Jhumpa Lahiri
Os contos lembram muito os que figuram no primeiro livro de Lahiri. Mesmo tendo deixado a Índia, os mais velhos insistem em manter vivas suas tradições junto aos filhos e netos. Todavia, esses já estão cada vez mais "americanizados", o que pode ser visto em suas roupas, geladeiras e ambições. O título do livro vem do conto que fala de uma indiana que se casa com um norte-americano. Ela não se sente à vontade para convidar seu pai a vir morar com eles, após a morte de sua mãe. Tal conflito reside na tradição que diz que os filhos têm que cuidar dos pais. Enquanto isso, seu pai aproveita para viajar pela Europa e curtir a vida aos 70 anos. Encontra, inclusive, tempo para um novo amor. Num outro texto, que também mostra a relação entre uma norte-americana e um indiano, percebemos como um casamento, às vezes, precisa ser destruído para depois ser reconstruído e permanecer descansado.
"Em uma de suas quatro mãos ele segura uma de suas presas, quebrada. É a sua pena: de fato, Ganesha usou essa presa pra escrever a maior parte do Mahabharata, ditada por Vyasa. Por isso, ele é a divindade protetora dos escritores, e de todos os que se dedicam ao estudo. É por isso que ele figura na capa deste livro." (Jean-Claude Carrière)