Páginas

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

a invenção de morel

“A invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares, é um fabuloso livro que mostra as peripécias de um protagonista inominado. Ele foi acusado por algum crime que não sabemos qual é. A pena é a prisão perpétua. Sem ter como recorrer, e se dizendo inocente, foge e vai parar numa ilha distante. O local é tido como inapropriado para se viver. Dizem que está tomado pela peste, haja vista as mortes estranhas que aconteceram por lá. Mas ele não se intimida e parte para a aventura, afinal é a única forma de se livrar das grades.

Na ilha, passa a entender as marés, a colher seu próprio alimento e a viver só. Como companheiro, apenas o diário no qual relata tudo o que faz e o que pensa, e pelo qual lemos sua história. Divide-se entre os baixios e o museu, único casarão naquelas terras. Tudo segue dentro da rotina estabelecida até que descobre que há outras pessoas com ele. Turistas começam a aparecer aqui e ali. Passam a promover festas e jantares no museu. Mas, estranhamente, ninguém nota sua presença. Será que tudo não passa de alucinação? Sonho? Ou ele morreu e não percebeu?

A resposta não é tão óbvia assim. E nem poderia ser vinda de um livro classificado no prólogo de Jorge Luis Borges como “perfeito”. Durante as confusões visionárias, o protagonista se apaixona por uma das turistas, Faustine, que fica horas sentada numa pedra observando o pôr-do-sol. Na tentativa de se declarar à moça, ensaia vários discursos.  Infelizmente, assim como os outros, ela também não o vê. Seria uma brincadeira? Uma intriga para que ele fosse novamente preso? Mais perguntas. Mais dúvidas. Entre as tentativas de se esconder do grupo e as tentativas de, ao mesmo tempo, se fazer visto, ele segue atormentado por seus receios e pelo amor platônico que sente por Faustine. Ela, por sua vez, aparece em companhia de outro homem, Morel, personagem que mais tarde vai explicar o tal mistério e apresentar sua fantástica máquina que pode captar muito mais que imagens em movimento.

Aqui está um excelente livro para todos que são fascinados por novas técnicas de reprodução ou que estudam imagens. Ou melhor, para aqueles que acreditam que não há como separar a imagem da alma do objeto representado.


O livro foi adaptado para o cinema em 1974 (L'Invenzione di Morel) por Emidio Greco, além de ter sido uma das fontes de inspiração para a série Lost.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

feliz natal




Esta é a imagem perfeita de Natal para mim. Quando criança, eu ficava sempre entusiasmada com a data e com a montagem da árvore de Natal. Adulta, perdi um pouco esse prazer.

Mas em 2005 me animei e a Tuti resolveu colorir ainda mais a festa. Grande e desajeitada, derrubou a árvore. Resultado: os enfeites ficaram todos em cima dela.

A Tuti foi uma cachorrinha linda que ficou conosco por 15 anos. Durante seus primeiros anos, corria de um lado para outro do quintal, já na maturidade, e com vários quilos a mais, restringia-se a andar vagarosamente. Sempre atrás da minha mãe. Gostava, porém, de ficar deitada com a barriga para cima. E quando estava nessa posição, eu gostava de arrastá-la segurando-a pelas patas dianteiras. Se ela se incomodava? Acredito que até curtia a brincadeira. Teve sete filhotes, dos quais apenas o Oliver ficou com ela. Eram inseparáveis. Ela o lambia, o paparicava, dormiam um ao lado do outro. Ele sempre com a cabeça encostada no 'colo' dela. Era o verdadeiro filhinho da mamãe – e da Renata, minha irmã, que também o enchia de cuidados.

A alegria do Oliver era ser acariciado. Adorava quando passávamos a mão em seu “bumbum”. Era todo carinhoso e quando não tinha o nosso carinho, coçava-se na parede. Tanto que as paredes de casa eram todas manchadas. Rastros do Oliver. No momento em que parávamos de o afagar, virava-se e nos fitava fixamente: "por que parou?" Depois que sua mãe morreu, ele ainda esteve por aqui por mais dois anos. Sempre com aquela deliciosa "carinha de coitado". Foram 11 anos de muitos “Óliiiiii, vem”.  

Esta semana sonhei com eles. Todos nadando numa enorme piscina. Entusiasmados com a atividade física. E adivinhe quem vinha por último na corrida aquática? A Tuti e toda sua morosidade. Foi muito reconfortante rever essa apaixonante dupla, mesmo que só em sonho.

Eu sei. O Natal já passou. Mas não precisamos de datas festivas para recordar os simples momentos na companhia de amigos verdadeiros e especiais, não é mesmo?


Óliiiiiiiver, vem!!


a índia é bem mais perto do que parece

Quem gosta de ler sabe que um livro puxa outro e quando você se dá conta, não consegue mais ler todos que gostaria.

Foi assim que veio meu interesse por histórias da Índia. Primeiro, a curiosidade despertada pela cultura indiana com a edição de 1994 do livro "O Mahabharata", do francês Jean-Claude Carrière. O Mahabharata é a principal obra em sânscrito, que Carrière conseguiu contar em prosa nesse agradável livro. Uma grande façanha, pois o original tem cem mil versos. É lá que está o famoso Bhagavad-Gita, diálogo entre Krishna e Arjuna.

Esse foi meu primeiro contato com a mitologia e deuses que habitam o distinto universo hindu. Do mesmo autor, também tenho o belíssimo "Índia - um olhar amoroso". Em suas palavras: "Neste livro, em que, por definição, a ordem é a alfabética e não dos itinerários ou dos anos - o que não é um exercício assim tão fácil, tão abrangente, como alguns costumam afirmar -, tentei ir, quando podia, um pouco além da visão superficial, e até mesmo por no caminho, como se fossem de monumentos, certas noções, modos de vida e personagens. É uma viagem que me deu muito prazer, e eu os convido a seguir comigo." Convite aceito. Ampliei a coleção com "Mahabharata - poema épico hindu", recontado por William Buck.

Por indicação de um amigo indiano, cheguei ao "O Deus das pequenas coisas", de Arundhati Roy. Junto com essa indicação veio o nome de outra autora: Jhumpa Lahiri e o comovente "Intérprete dos Males".

A partir daí, descobri vários títulos dessas e de outras autoras indianas, ou melhor, de autoras que nasceram na Índia ou são descendentes de indianos, mas que foram morar na Europa ou nos Estados Unidos. Ninguém melhor que elas para abordar a família, a cultura, a ruptura e as memórias dos indianos. Todas nos apresentam narrativas de incrível delicadeza. Impossível não sentir a emoção e a sensibilidade dos personagens. Recomendo a viagem literária, que para mim ainda não está concluída.

O Deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy

Estha e Rahel são irmãos gêmeos que foram separados aos oito anos de idade. Tomam rumos diferentes e só voltam a se ver quando completam 31 anos. Com o reencontro, um dilúvio de lembranças da infância e de pequenos momentos que os faziam felizes, que os levavam ao mundo da fantasia, que transgrediam seus direitos e que, também, foram responsáveis pelo afastamento. Esse foi o primeiro livro de Arundhati Roy, escritora e ativista política que nasceu em Kerala, na Índia, local onde a trama é ambientada. Por seu envolvimento com os direitos dos indianos, ela aproveita para, de modo sutil, criticar o sistema de castas. Vocês vão amar alguns personagens, odiar outros e entender todos, de alguma forma.

"Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas." 

Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri

A autora é inglesa, filha de imigrantes indianos e cresceu nos Estados Unidos. E é entre as culturas oriental e ocidental que oscilam os contos que integram sua primeira obra. Todos os personagens têm suas origens na Índia. Há o casal que, na varanda de sua casa nos Estados Unidos, descobre que o amor acabou. Há a indiana que vai morar com o marido nos Estados Unidos e que passa horas picando legumes, enquanto ele se dedica à universidade em que trabalha. Para se distrair, ela aprende a dirigir e passa a cuidar de uma criança. Há outro casal que, após anos vivendo juntos no silêncio, descobre o quanto é verdadeiro o amor que um sente pelo outro, mesmo a relação tendo sido imposta pelos pais num casamento arranjado. Já o conto que dá o título ao livro, parte da diversidade de idiomas na Índia - são 18 oficiais e um tanto mais de locais - ao falar de um homem que atua como intérprete de um médico. Cabe a ele traduzir todas as línguas para que seja possível entender os males que "atormentam" cada um dos pacientes.

A senhora das especiarias, de Chitra Banerjee Divakaruni

Quem assistiu "Chocolate", do diretor sueco Lasse Hallström, vai identificar algumas semelhanças com o livro. No filme, baseado no livro homônimo de Joanne Harris, Vianne Rocher, interpretada por Juliette Binoche, chega a um vilarejo e abre uma loja de chocolates que chama a atenção de todos e causa a fúria de alguns. Suas misturas exóticas e inusitadas do doce proporcionam conforto para muitas pessoas. Já no livro da indiana, temos também uma personagem feminina que chega aos Estados Unidos e monta uma loja de especiarias. Mágicas, elas, da mesma forma, funcionam como remédio para o corpo e para a alma. O livro beira o fantástico, principalmente nas regressões de Mina, já idosa, à sua terra natal. A fantasia ainda é maior e mais empolgante quando ela encontra um jovem por quem se apaixona. Seriam suas especiarias capazes de lhe devolver a juventude?

Irmã do meu coração, de Chitra Banerjee Divakaruni

Relato da amizade e do amor entre duas primas: Anju e Sudha. Ambas são órfãs de pais e foram criadas apenas pelas mães. São extremamente unidas, mas os casamentos arranjados e um segredo de família as separam. Fisicamente, apenas. Anju vai para os Estados Unidos com o marido jovem, por quem se apaixona. E Sudha fica na Índia lidando com um marido mais velho e com a sogra que a tem como empregada. Sudha é extremamente bela e encanta a todos, até mesmo o marido da prima. Anju finge não perceber essa atração unilateral e, ao saber do sofrimento crescente de Sudha, a convida para morar com eles.



The unknown errors of our lives (Os erros desconhecidos de nossas vidas, em tradução livre), de Chitra Banerjee Divakaruni

São nove contos que revelam a beleza e a simplicidade dos indianos, em especial os que imigram para os Estados Unidos. As histórias falam de adaptação, nostalgia e nos mostram que atos isolados de outras pessoas podem definir nossa história. Muitas vezes não entendemos os dizeres de nossas mães durante a infância e a adolescência. Mas quando somos nós as mães, suas afirmações mostram-se sensatas e inevitáveis. Em "The love of a good man" (O amor de um bom homem), Mona convive com a lembrança da mãe, que morreu vítima de um câncer. Acredita-se que tenha sido desencadeado pela desilusão que teve com o marido, que abandonou a família na Índia para ir morar nos Estados Unidos. Após a morte da mãe, ela própria deixa a Índia e constitui sua família, também em terras norte-americanas. O que ela não contava é que seu pai voltaria a procurá-la. A todo momento a recordar as máximas da mãe, agora verdadeiras, ela tenta evitar o reencontro. Perdoar ou não perdoar? “Quando eu optei pela raiva, eu não tive que pagar um preço por isso?”, ela se pergunta. E responde com outra pergunta:  "Não temos todos que pagar de alguma forma, não importa o que escolhemos.”
 
The namesake (O xará), de Jhumpa Lahiri

Mostra a trajetória de uma família indiana que vive nos Estados Unidos. O pai é um importante professor. A mãe, uma dona de casa. Os filhos, nascidos no ocidente, renegam suas origens. Adaptaram-se às regras dos norte-americanos. Silenciosos, os pais acompanham o distanciamento e a fuga da ideia de família. O livro foca, sobretudo, o filho Gogol. O nome lhe foi dado por seu pai, em homenagem ao escritor russo, o que traz vários constrangimentos ao rapaz, que não hesita em trocá-lo, ferindo ainda mais o orgulho paterno. Prepare-se para as lágrimas que virão. Foi adaptado para o cinema.



Unaccustomed Earth (Terra descansada), de Jhumpa Lahiri
 
Os contos lembram muito os que figuram no primeiro livro de Lahiri. Mesmo tendo deixado a Índia, os mais velhos insistem em manter vivas suas tradições junto aos filhos e netos. Todavia, esses já estão cada vez mais "americanizados", o que pode ser visto em suas roupas, geladeiras e ambições. O título do livro vem do conto que fala de uma indiana que se casa com um norte-americano. Ela não se sente à vontade para convidar seu pai a vir morar com eles, após a morte de sua mãe. Tal conflito reside na tradição que diz que os filhos têm que cuidar dos pais. Enquanto isso, seu pai aproveita para viajar pela Europa e curtir a vida aos 70 anos. Encontra, inclusive, tempo para um novo amor. Num outro texto, que também mostra a relação entre uma norte-americana e um indiano, percebemos como um casamento, às vezes, precisa ser destruído para depois ser reconstruído e permanecer descansado.

"Em uma de suas quatro mãos ele segura uma de suas presas, quebrada. É a sua pena: de fato, Ganesha usou essa presa pra escrever a maior parte do Mahabharata, ditada por Vyasa. Por isso, ele é a divindade protetora dos escritores, e de todos os que se dedicam ao estudo. É por isso que ele figura na capa deste livro." (Jean-Claude Carrière)

 
 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

liberdade

Lançado em 2011, "Liberdade", de Jonathan Franzen, é ideal para as férias, quando será possível lê-lo de uma só vez, sem pausas. O livro nos apresenta três protagonistas, tão reais quanto próximos de nós.

Temos a Patty, que vem de uma relação conturbada com os pais devido a sua baixa autoestima e percepção de que não tem os mesmos privilégios dos irmãos. Tal sentimento de inferioridade faz com que ela se isole e transfira sua energia para o basquete. Quer provar que pode ser boa em algo. Torna-se estrela do time universitário e quase entra para a seleção nacional. Foi impedida por um acidente e pela obsessão da melhor amiga, que quer controlar seus passos.  

Há o Walter, que foi o arrimo de uma família problemática. Advogado com muitas boas ideias, mas com extrema dificuldade para colocar seus pensamentos em prática. Entusiasta da causa verde, entra para um grupo que luta pela preservação da mariquita azul. Todos sabem que é apenas uma jogada para dar mais liberdade aos extratores de carvão. Ocorre que Walter não quer enxergar esse lado do negócio. 

Por fim, o Richard, metido a rebelde e, também, carente da proteção familiar. Ele joga suas angústias na música. Vive altos e baixos com suas bandas de rock. Nos altos, está sempre cercado de mulheres, cervejas e drogas. Nos baixos, dedica-se à construção de deques. Evita envolver-se seriamente com as mulheres. Até entender que é difícil excluir certas pessoas de sua vida.

Walter é o melhor amigo de Richard. Sentem grande admiração mútua. A tal ponto que, mesmo inconscientemente, se veem numa eterna competição. Entre Patty e Richard prevalece o encanto carnal. Entre Patty e Walter, o conforto que só a rotina pode proporcionar. Patty casa-se com Walter, marido aparentemente ideal: fiel, carinhoso, sempre disposto a fazer as vontades da esposa. Apesar de tudo, não consegue despertar nela um desejo mais intenso. Para isso, ela conta, secretamente, com Richard. E acaba escondendo-se sob a máscara de boa esposa e mãe perfeita.

Outros personagens aparecem no decorrer da história, que percorre mais de vinte anos. Joey e Jessica, filhos de Patty e Walter, que vão repetir as insurgências dos pais; Lalitha, a jovem indiana que faz Walter lamentar sua passividade; Connie, eterna e dependente namorada de Joey; Jenna, estereótipo das mulheres levianas, entre outros coadjuvantes.  

Em comum, eles tentam depositar suas expectativas e frustrações no Outro. Sempre vai haver alguém por trás dos fracassos, da falta de iniciativa e do medo de tentar mais uma vez. Livrar-se do confronto e da opinião dos que os rodeiam talvez seja a liberdade tão almejada. Quer saber como tudo isso vai acabar? Somente o tempo e as sucessivas desilusões irão dizer.


"Existe uma tristeza ocasional nos primeiros sons do trabalho alheio pela manhã; é como se o silêncio experimentasse uma certa dor ao ser quebrado."

"De onde vinha a pena de si mesma? E daquele tamanho descomunal? Segundo praticamente qualquer padrão, ela tinha uma vida muito boa. Todo dia, tinha o dia inteiro para encontrar algum modo decente e satisfatório de viver, mas ainda assim tudo que parecia conseguir com todas suas escolhas e toda a sua liberdade era mais sofrimento."

"Ele nem imaginava. Mas sentia que, por terem chegado tão perto do limiar e depois recuado tão atabalhoadamente, ambos tinham se vacinado contra o perigo de tornarem a se aproximar a esse ponto. O que agora lhe convinha à perfeição. Era assim que ele sabia viver: com a disciplina e a renúncia."