"Nunca sabemos nos comunicar
com aqueles em quem não acreditamos."
com aqueles em quem não acreditamos."
Quando terminei a leitura de "Três", da francesa Valérie Perrin, o livro continuou comigo. Escrevo este texto enquanto ouço, no Spotify, uma das playlists com as referências musicais deste livro. E fico a imaginar o quanto deixei passar da história para não perceber o que estava acontecendo com um dos personagens. O romance pode ser considerado uma homenagem à música dos anos 80 e 90, especialmente ao rock e ao pop, incluindo músicas francesas, afinal, se passa todo na França, sendo que a maior parte no interior, em uma pequena cidade chamada La Comelle. Há também passagens em Paris.
Além da amizade, que veremos mais adiante, outra questão abordada é a proteção dos animais. Embora não seja o mote principal, é referenciada por meio de uma das protagonistas que administra um abrigo e é vegetariana. Tudo é colocado de uma forma bem sutil, o que achei interessante.
O enredo mostra três amigos inseparáveis, que se conhecem aos dez anos. No primeiro dia de aula daquele ano letivo, acompanhamos o momento em que aguardam o anúncio de qual sala irão ficar, se na da professora madame Bléton ou na do professor monsieur Py, considerado um carrasco. Ninguém quer ficar com ele, o que deixa todos bem apreensivos. Nina Beau, Étienne Beauclair e Adrien Bobin acabam juntos justamente com o temido professor, que prejudicará fortemente um deles. Essa passagem já dá indícios de que é Nina quem será o elo do trio. Percebendo a insegurança, ela segura na mão dos dois garotos e, juntos, entram na sala. E esta será a forma como serão vistos por muitos anos: ela no meio, Adrien à direita e Étienne à esquerda. Temos aquele estilo de sala bem comum nos anos 80, com dois lugares; Nina e Étienne sentam juntos e Adrien fica logo atrás.
Enfim, o entrosamento é imediato. Passam a fazer tudo juntos. As famílias se aproximam. Um ponto interessante é que a narrativa não começa com eles. Ela é intercalada entre os pontos de vista de cada um dos personagens. E começa com uma quarta personagem, Virgínia, que os observa de longe. Diz que os três estavam sempre juntos e próximos dela, mas nunca a enxergaram. Ela acompanhava as brincadeiras, os passeios. Por vezes, chegava a esbarrar neles e, ainda assim, não a viam. É justamente aí que vamos nos surpreender. Com o passar dos anos, eles acabam se separando, sem realizar o plano de irem juntos à Paris e de formarem uma banda musical. O reencontro será anos mais tarde, reforçando que algumas amizades são eternas.
Nina é vegetariana e amiga dos animais. Ela foi cuidada desde pequena pelo avô. Sua mãe a abandonou recém-nascida. Ela tem talento para o desenho, mas vai abdicar desse dom a favor de um casamento. Adrien mora com a mãe e tem pouco contato com o pai. É o mais tímido dos três. Gosta de escrever e, em Paris, se revelará um grande escritor. Étienne é o galã, mais extrovertido, bom nos esportes, mas não muito afeito aos estudos. Sua família tem dinheiro, o que o deixa em uma situação relativamente confortável. Ele tem uma irmã mais nova, Louise, que também será importante para a trama.
Como eu disse, o livro faz menção sutil à proteção dos animais. Isso se dá por meio de Nina, que sempre gostou de bichos, especialmente cachorros e gatos. É justamente num abrigo de animais abandonados que ela própria, ao fugir de um relacionamento abusivo, irá se refugiar. Tempo necessário para rever sua vida, escolhas e acolher definitivamente os animais em sua vida. Aliás, a diretora do abrigo que a recebe também precisou fugir e foi parar lá, assim como Simone, voluntária que também encontrou neste lugar o motivo para continuar vivendo após perder o filho.
Contudo, a passagem mais marcante deste traço de Nina se dá num diálogo dela com a mãe, no seu leito de morte. Sem ter muito o que dizer àquela mulher que lhe é estranha, mas que ao mesmo tempo sente-se impelida a amparar naquele momento, ela relata o que é cuidar de um abrigo e o dilema entre continuar ali, pelo amor e pelo olhar dos animais, e o fardo que isso representa.
Todos os personagens que se aproximam dos animais foram, de algum modo, abandonados. E se identificaram com cães e gatos ali deixados. Há, de certa forma, uma aproximação por estarem na mesma situação. Para além disso, há ainda a questão de espécies companheiras e a necessidade de amor incondicional. Talvez seja por isso que, lá pelas tantas, Nina relata como é difícil deixar um cachorro partir quando adotado.
Para a filósofa e zoóloga norte-americana Donna Haraway, que, dentre outros temas, estuda as interações entre humanos, animais e máquinas, é comum, nos Estados Unidos (e aqui no Brasil e em outros vários países também), atribuir aos cachorros a capacidade de "amar incondicionalmente". De acordo com essa crença, pessoas com problemas diversos encontram consolo no "amor incondicional" de seus cachorros. Em troca, os amam como se fossem filhos. Haraway argumenta que os cães e humanos têm um vasto repertório de modos de se relacionar, e a crença no amor incondicional pode ser nociva, principalmente dentro da cultura consumista contemporânea. O amor verdadeiro e respeitoso envolve reconhecer e honrar as diferenças significativas entre as espécies, ao invés de projetar fantasias humanas nos cães. Através do exemplo de J.R. Ackerley e sua cadela Tulip, Haraway ilustra que uma relação amorosa genuína entre humanos e cães é caracterizada por um esforço contínuo de entender e atender às necessidades um do outro, reconhecendo a alteridade e a intersubjetividade presentes na relação.
Outro ponto importante é que, desde criança, Nina, de algum modo, já carregava a percepção da liberdade tirada dos animais. Isso se dá durante uma visita com o avô ao zoológico. A princípio, ela fica eufórica com o passeio, porém, ao retornar para casa, o avô pergunta do que ela mais gostou. E a resposta é esta: "— Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."
Isso porque, logo ao chegar ao zoológico, ela se envergonha ao ver os animais em cativeiro. A presença da multidão e a ausência dos pais a fazem se sentir deslocada e triste. Ela percebe a tristeza dos animais presos e, de algum modo, se identifica com o cativeiro deles. Chama-lhe a atenção a pantera negra que, diante de todos os olhares, tenta buscar a saída ou o mínimo de privacidade com seu filhote. Todos deveriam ler essa passagem, que explicita bem a angústia dos animais presos. E, assim, de forma sutil, Perrin nos fala sobre a importância de uma convivência respeitosa entre as espécies.
Além da amizade, que veremos mais adiante, outra questão abordada é a proteção dos animais. Embora não seja o mote principal, é referenciada por meio de uma das protagonistas que administra um abrigo e é vegetariana. Tudo é colocado de uma forma bem sutil, o que achei interessante.
O enredo mostra três amigos inseparáveis, que se conhecem aos dez anos. No primeiro dia de aula daquele ano letivo, acompanhamos o momento em que aguardam o anúncio de qual sala irão ficar, se na da professora madame Bléton ou na do professor monsieur Py, considerado um carrasco. Ninguém quer ficar com ele, o que deixa todos bem apreensivos. Nina Beau, Étienne Beauclair e Adrien Bobin acabam juntos justamente com o temido professor, que prejudicará fortemente um deles. Essa passagem já dá indícios de que é Nina quem será o elo do trio. Percebendo a insegurança, ela segura na mão dos dois garotos e, juntos, entram na sala. E esta será a forma como serão vistos por muitos anos: ela no meio, Adrien à direita e Étienne à esquerda. Temos aquele estilo de sala bem comum nos anos 80, com dois lugares; Nina e Étienne sentam juntos e Adrien fica logo atrás.
Enfim, o entrosamento é imediato. Passam a fazer tudo juntos. As famílias se aproximam. Um ponto interessante é que a narrativa não começa com eles. Ela é intercalada entre os pontos de vista de cada um dos personagens. E começa com uma quarta personagem, Virgínia, que os observa de longe. Diz que os três estavam sempre juntos e próximos dela, mas nunca a enxergaram. Ela acompanhava as brincadeiras, os passeios. Por vezes, chegava a esbarrar neles e, ainda assim, não a viam. É justamente aí que vamos nos surpreender. Com o passar dos anos, eles acabam se separando, sem realizar o plano de irem juntos à Paris e de formarem uma banda musical. O reencontro será anos mais tarde, reforçando que algumas amizades são eternas.
"Hoje de manhã, Nina me olhou sem me ver. Seu olhar escorregou como as gotas de chuva na minha capa impermeável, logo antes de ela desaparecer dentro de um canil. Estava caindo uma tempestade."
Nina é vegetariana e amiga dos animais. Ela foi cuidada desde pequena pelo avô. Sua mãe a abandonou recém-nascida. Ela tem talento para o desenho, mas vai abdicar desse dom a favor de um casamento. Adrien mora com a mãe e tem pouco contato com o pai. É o mais tímido dos três. Gosta de escrever e, em Paris, se revelará um grande escritor. Étienne é o galã, mais extrovertido, bom nos esportes, mas não muito afeito aos estudos. Sua família tem dinheiro, o que o deixa em uma situação relativamente confortável. Ele tem uma irmã mais nova, Louise, que também será importante para a trama.
Como eu disse, o livro faz menção sutil à proteção dos animais. Isso se dá por meio de Nina, que sempre gostou de bichos, especialmente cachorros e gatos. É justamente num abrigo de animais abandonados que ela própria, ao fugir de um relacionamento abusivo, irá se refugiar. Tempo necessário para rever sua vida, escolhas e acolher definitivamente os animais em sua vida. Aliás, a diretora do abrigo que a recebe também precisou fugir e foi parar lá, assim como Simone, voluntária que também encontrou neste lugar o motivo para continuar vivendo após perder o filho.
Contudo, a passagem mais marcante deste traço de Nina se dá num diálogo dela com a mãe, no seu leito de morte. Sem ter muito o que dizer àquela mulher que lhe é estranha, mas que ao mesmo tempo sente-se impelida a amparar naquele momento, ela relata o que é cuidar de um abrigo e o dilema entre continuar ali, pelo amor e pelo olhar dos animais, e o fardo que isso representa.
"Cuidar de um abrigo é um sacerdócio." Sempre dá pra achar o que é gratificante e bom dentro disso. Aguentar o tranco. A gente faz pelo olhar deles. Amar os animais, mas sobretudo não ter adoração por eles, senão você morre de tristeza. Tem muitos momentos no ano em que eu fico com vontade de largar tudo. Abandonar os abandonados. Achar um emprego tranquilo, em outro lugar que seja limpo, quente, seco e silencioso. Onde não vou mais ouvir os cachorros latindo ou cheirando minha bunda quando vou passear com eles."
Todos os personagens que se aproximam dos animais foram, de algum modo, abandonados. E se identificaram com cães e gatos ali deixados. Há, de certa forma, uma aproximação por estarem na mesma situação. Para além disso, há ainda a questão de espécies companheiras e a necessidade de amor incondicional. Talvez seja por isso que, lá pelas tantas, Nina relata como é difícil deixar um cachorro partir quando adotado.
Para a filósofa e zoóloga norte-americana Donna Haraway, que, dentre outros temas, estuda as interações entre humanos, animais e máquinas, é comum, nos Estados Unidos (e aqui no Brasil e em outros vários países também), atribuir aos cachorros a capacidade de "amar incondicionalmente". De acordo com essa crença, pessoas com problemas diversos encontram consolo no "amor incondicional" de seus cachorros. Em troca, os amam como se fossem filhos. Haraway argumenta que os cães e humanos têm um vasto repertório de modos de se relacionar, e a crença no amor incondicional pode ser nociva, principalmente dentro da cultura consumista contemporânea. O amor verdadeiro e respeitoso envolve reconhecer e honrar as diferenças significativas entre as espécies, ao invés de projetar fantasias humanas nos cães. Através do exemplo de J.R. Ackerley e sua cadela Tulip, Haraway ilustra que uma relação amorosa genuína entre humanos e cães é caracterizada por um esforço contínuo de entender e atender às necessidades um do outro, reconhecendo a alteridade e a intersubjetividade presentes na relação.
Outro ponto importante é que, desde criança, Nina, de algum modo, já carregava a percepção da liberdade tirada dos animais. Isso se dá durante uma visita com o avô ao zoológico. A princípio, ela fica eufórica com o passeio, porém, ao retornar para casa, o avô pergunta do que ela mais gostou. E a resposta é esta: "— Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."
Isso porque, logo ao chegar ao zoológico, ela se envergonha ao ver os animais em cativeiro. A presença da multidão e a ausência dos pais a fazem se sentir deslocada e triste. Ela percebe a tristeza dos animais presos e, de algum modo, se identifica com o cativeiro deles. Chama-lhe a atenção a pantera negra que, diante de todos os olhares, tenta buscar a saída ou o mínimo de privacidade com seu filhote. Todos deveriam ler essa passagem, que explicita bem a angústia dos animais presos. E, assim, de forma sutil, Perrin nos fala sobre a importância de uma convivência respeitosa entre as espécies.
"Nina vê uma primeira placa trinta quilômetros antes de chegarem: “Pa… Parque de animais”. Ela dá uma pulo de alegria e diz ao avô: — Vô, já sei aonde a gente tá indo! Quanto mais se aproximam, mais fotos ela vê de animais e de carrosséis em grandes painéis coloridos. Ela se agita. Se remexe. Pierre Beau sorri, ele acertou em cheio. Na região, todos falam do parque de animais como se fosse o paraíso: carrosséis, um trenzinho que dá a volta no parque, batata frita e algodão-doce. Animais como não se vê nunca: hipopótamos, pumas, elefantes, lobos, macacos, girafas. Ao redor de Nina, famílias, risos, alguns choros, malcriações de crianças. Com um balão na mão, ela observa os outros observando os animais. Nina passa muito tempo isolada. Vê as coisas e as pessoas à distância. Ela está de mãos dadas com o avô. A mão dele é como uma ilha. No entanto, ela se sente mal. Está com dor de cabeça, a barriga pesada, uma fraqueza nas pernas. Seria por causa da multidão? Do calor? Da ausência dos pais? De seus pais? As pessoas em volta, as que têm sua idade, estão encaixadas entre um pai e uma mãe. Ela ouve: “Mamãe! Vem ver!”, “Papai! Olha!”. Ela própria nunca disse essas palavras. Dentro de fossos, atrás de barreiras de vidro ou de grades, ela acha que os animais se parecem. É como se o cativeiro os uniformizasse, lhes desse os mesmos comportamentos, os mesmos olhares. Uma pantera negra, com o filhote na boca, anda de um lado para outro dentro da jaula, buscando uma saída diante do olhar curioso e fascinado dos visitantes. Não tem nenhum canto onde possa se esconder. Nenhuma intimidade. Entregue, submissa, dissecada. Nina tem vergonha. O que diverte os outros a paralisa. É pequena demais para entender o que aquela vergonha significa. Só sente que não é igual. Que algo ruge dentro dela. Fica aliviada ao subir no trenzinho que dá a volta no parque a dois quilômetros por hora. Adormece apoiada no ombro do avô, exausta de tudo que está sentindo desde que chegou naquele lugar. — Quer ir ver os lobos antes de ir embora? — pergunta o avô, segurando sua mãozinha, a dele morna e macia. — Não, estou com medo. Ela mente. Nina nunca teve medo de nenhum animal. Fica aliviada quando entram de novo no carro e pegam a estrada. Fica aliviada de dar as costas para aquele lugar. — Gostou? — Gostei. Obrigada, vovô. — Do que você mais gostou? Das girafas ou dos leões? — Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."
Algumas músicas mencionadas no livro
A-ha - "Take on Me", "The Sun Always Shines on TV"
Cyndi Lauper - "True Colors"
Madonna - "La Isla Bonita"
Indochine - "La vie est belle", "Un jour dans notre vie", "Tes yeux noirs", "Canary Bay", "Troisième sexe", "Karma Girls"
The Cure - "Boys Don't Cry", "Charlotte Sometimes"
Depeche Mode - "I Feel You"
Gloria Gaynor - "I Will Survive"
Donna Summer - "I Feel Love"
Eruption - "One Way Ticket"
Nirvana - "Smells Like Teen Spirit"
William Sheller - "Un Homme Heureux"
Étienne Daho - "Le Grand Sommeil", "Corps et armes", "Mythomane"
INXS - "Need You Tonight"
The Christians - "Words"
David Bowie - "Rebel Rebel"
2 Unlimited - "Let the Beat Control Your Body"
Pixies - "Where Is My Mind"
Pierre Perret - "Mon P'tit Loup"
Françoise Hardy - "Il ne dira pas"
Zazie - "Cow-boy"
Cock Robin - "The Promise You Made"
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