"A soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é 'descartável' e quem não é."
Ailton Krenak, em "Ideias para adiar o fim do mundo'', comenta que a humanidade é dividida em duas, uma "bacana" e outra mais bruta, rústica. A mesma observação é feita pela filósofa Sueli Carneiro, ao falar sobre a escravidão no Brasil e as consequências da falta de medidas sociais voltadas aos recém-libertados após a abolição. Em textos publicados no Correio Braziliense na última década, Carneiro também enfatiza a ideia de que alguns humanos são mais humanos que outros, o que, evidentemente, traz a desigualdade social de direitos, intensificada, principalmente, pelo racismo científico do século XIX, que criou uma suposta hierarquia entre as raças. O que, de certo modo, vai ao encontro do conceito de necropolítica, estipulado pelo filósofo e pensador político Achille Mbembe. Tendo como base a obra de Michel Foucault que trata sobre biopoder, Mbembe estabelece a teoria que a humanidade deliberadamente decide, com base no poder e na soberania, quem deve ou não morrer. Quem presta e quem é descartável. Esse controle implica na divisão humana em subgrupos, raças e, obviamente, no racismo. Exemplos não faltam em seu ensaio "Necropolítica", como o terror praticado pelo nazismo, a faixa de Gaza e as condições precárias nas quais os seus habitantes foram colocados.
E o mesmo aconteceu com os escravos brasileiros ao serem libertados. Eles foram marginalizados. Vale recordar que eles chegaram aqui com uma tripla perda: lar, direitos sobre o corpo e estatuto político, como apontou Mbembe. Há uma história e uma dívida a ser paga. Por muito tempo, coube ao branco ocidental criar teorias para mostrar sua versão da história, desmerecendo todas suas contribuições para nossa cultura.
"Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como propriedade, tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em 'estado de injúria', em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. O curso violento da vida de escravo se manifesta pela disposição de seu capataz em se comportar de forma cruel e descontrolada ou no espetáculo de sofrimentos impostos ao corpo de escravo. Violência, aqui, torna-se um componente de etiqueta, como dar chicotadas ou tirar a vida do escravo: um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir o terror."
Os efeitos da escravidão e do colonialismo ainda estão presentes em diversos países. O principal deles é o racismo, considerado um elemento de controle nas relações de poder. É a política da morte. O Estado, que tinha por obrigação proteger seus cidadãos, é o primeiro a ditar quem deve morrer e quem deve viver. Mais que isso, quem deve ficar permanentemente entre a vida e a morte. A necropolítica trata dos "mortos-vivos", situação na qual estão milhares de pessoas, como os refugiados que vagam no mar em busca de abrigo em países no qual serão hostilizados. "Sob o necropoder, as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem."
Trechos
"Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das polí- ticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los."
"Este novo momento é o da mobilidade global. Uma de suas principais características é que as operações militares e o exercício do direito de matar já não constituem o único monopólio dos Estados, e o “exército regular” já não é o único meio de executar essas funções. A afirmação de uma autoridade suprema em um determinado espaço político não se dá facilmente. Em vez disso, emerge um mosaico de direitos de governar incompletos e sobrepostos, disfarçados e emaranhados, nos quais sobejam diferentes instâncias jurídicas de facto geograficamente entrelaçadas, e nas quais abundam fidelidades plurais, suseranias assimétricas e enclaves. Nessa organização heterônima de direitos territoriais e reivindicações, faz pouco sentido insistir na distinção entre os campos políticos “interno” e “externo”, separados por limites claramente demarcados."
"Se observarmos a partir da perspectiva da escravidão ou da ocupação colonial, morte e liberdade estão irrevogavelmente entrelaçadas. Como já vimos, o terror é uma característica que define tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais tardo-modernos. Ambos os regimes são também instâncias e experiências específicas de ausência de liberdade. Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura."