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sexta-feira, 30 de abril de 2021

racismo, sexismo e desigualdade no brasil



"Certos humanos são mais ou menos humanos do que outros, o que, consequentemente, leva à naturalização da desigualdade de direitos."


"Racismo, Sexismo e Desigualdade" é uma coletânea de textos publicados na imprensa brasileira entre os anos 1999 e 2010 pela filósofa Sueli Carneiro. Ativista dos movimentos feminista e negro do Brasil, ela aborda nesses artigos questões de raça, gênero e direitos humanos. Por meio de dados estatísticos e exemplos, traz à tona, principalmente, o movimento antirracista que impera no Brasil. O discurso que somos uma país acolhedor e com direitos iguais esconde, na verdade, a discriminação real presente no cotidiano.

Carneiro também enfatiza a ideia de que alguns humanos são mais humanos que outros, o que, evidentemente, traz a desigualdade social de direitos, intensificada pelo racismo científico do século XIX, que criou uma suposta hierarquia entre as raças. Muito disso consequência da escravidão e da falta de medidas sociais voltadas aos recém-libertados após a abolição.

"Uma das heranças da escravidão foi o racismo científico do século XIX, que dotou de suposta cientificidade a divisão da humanidade em raças e estabeleceu hierarquia entre elas, conferindo-lhes estatuto de superioridade ou inferioridade naturais. Dessas ideias decorreram e se reproduzem as conhecidas desigualdades sociais que vêm sendo amplamente divulgadas nos últimos anos no Brasil."

Em um dos primeiros textos, a autora mostra as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Humano entre brancos e negros, o que evidencia que a pobreza tem cor por aqui. Enquanto os brancos apresentam padrões compatíveis com a Bélgica, por exemplo, os negros apresentam índices inferiores a inúmeros países em desenvolvimento, como a África do Sul, que erradicou o regime do apartheid há apenas algumas décadas. E o racismo se sobressai ainda mais quando um negro é "bem-sucedido". Porque se um pode, os demais não chegaram lá porque não se esforçaram demasiadamente. Esta afirmação é sempre utilizada por aqueles que jamais sentiram a discriminação por conta da cor da pele e que parte de seu contexto social para justificar políticas que não são iguais para todos.

A filósofa, professora, antropóloga e escritora Lélia Gonzalez fala com muita propriedade sobre isso. Segundo ela, o negro sempre foi infantilizado, seus erros gramaticais ironizados. Para a mulher preta é ainda pior. Ela própria, por várias vezes, foi "convidada" a entrar pela entrada de serviço em seu próprio prédio. O único momento em que o negro se sobressai é no Carnaval. Lá, a preta deixa de ser a doméstica para ser a mulata admirada. E Gonzalez vai mais a fundo dizendo que tudo isso é forçado a ser considerado normal, afinal, preto é irresponsável, é infantil, é incompetente, é preguiçoso. Imagem que permeia o imaginário e levado às crianças, criando um círculo sem fim.

Desqualificar e criminalizar movimentos sociais é uma prática corriqueira no Brasil, principalmente quando o tema é, paradoxalmente, a defesa da democracia e princípios de igualdade. Sueli Carneiro fala de um novo tipo de ativismo: antirracismo amparado na negação do racismo existente o qual convergem estratégias tanto de direita quanto de esquerda.

Embora os textos de seu livro sejam de 2010 para trás, são bem atuais e traduzem o que segue acontecendo. O que temos, por enquanto, são discursos, como o feito por Fernando Henrique Cardoso em sua posse (1999) - primeira vez que um presidente declarou haver problemas raciais no País - e as consequentes leis e secretarias criadas no governo subsequente, o de Lula. Mas, na prática, as políticas não avançaram. Muito pelo contrário, hoje temos pessoas que ganham força ao ironizar o politicamente correto, incentivadas e apoiadas por grandes veículos de comunicação, como aponta Carneiro ao mostrar o desserviço prestado pela imprensa brasileira e seus principais representantes diante da proposta de sistema de cotas para negros e índios nas universidades. Sob a alegação de princípios filosóficos, no qual todos deveriam ter as mesmas oportunidades, trazem à tona o antirracismo, ou seja a negação de que há racismo no Brasil. Um exemplo é Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, que publicou o livro "Não somos racistas". Na sua esteira, colunistas que associam movimentos de hip hop ao tráfico de drogas, desconsiderando a importância da música para a formação do jovem.

"Além de causar impacto na cena musical do país, o movimento hip-hop fez emergir lideranças juvenis que consideram o rap, o grafite e o break - tripé da cultura hip-hop - os veículos para que os jovens se mobilizem e reflitam sobre os temas que mais afligem seu cotidiano, como violência, drogas, exclusão social, exercício protegido da sexualidade, paternidade e maternidade responsáveis, discriminação racial."

Esses textos deveriam ser lidos por todos, sobretudo por aqueles que acreditam que é tudo mimimi. Por aqueles que partem de exemplos isolados (e escassos) para justificar que temos condições iguais para todos. Para aqueles que ignoram os problemas sociais. Infelizmente, essas pessoas jamais chegarão perto de enxergar além do seu círculo de referências. Temo dizer que estamos bem distantes, sobretudo após ler o capítulo que trata do racismo na educação infantil. Nenhuma criança deveria se sentir inferior por causa da cor. Mas isso acontece. E muito.

"Mais recentemente, diz-se que os negros brasileiros estão ficando muito melindrosos e vendo racismo em tudo. Afinal sempre toleraram sem problemas “essas brincadeiras” que, no máximo, podem ser consideradas de mau gosto, jamais racistas."

sexta-feira, 23 de abril de 2021

a caderneta de endereços vermelha



"Nada é tão perfeito quanto um amor perdido."


“A caderneta de endereços vermelha”, da sueca Sofia Lundberg nos faz sentir saudades de tempos que não passamos e também repensar nossas escolhas. O romance fala sobre Doris, uma mulher que está chegando aos cem anos, mora sozinha em Estocolmo, tem a saúde bem frágil e depende da atenção de cuidadoras, muitas frias e distantes, que não se preocupam com o que ela sente. A exceção é a mais recente, que parece ler os pensamentos de idosa e cujo apoio vai além das necessidades físicas. Sua empatia será essencial para o momento atual de nossa protagonista. Aliás, desejo que todos que dependam de cuidadores possam ter um como Sara.

Enfim, seu momento de descontração é quando conversa, por vídeo chamada, com a sobrinha-neta, que vive nos Estados Unidos. A agitação e o barulho da família de Jenny, que tem três filhos, é tudo o que ela também gostaria de ter.

“Jenny manda beijos com as duas mãos, faz um gesto de despedida e desliga a câmera. A tela, até recentemente tão cheia de vida e amor, fica escura. Como o silêncio pode ser tão avassalador?”

E assim seguem seus dias. Até que sofre uma queda ao tentar alcançar uma caixa de chocolates. Estamos diante de uma pessoa que passou por muitas perdas e desencontros, mas que também viveu grandes aventuras. Quando criança, ganhou do pai uma caderneta vermelha, na qual foi anotando o nome de todas as pessoas que passaram por sua vida. Afetos e desafetos. Ao olhar os nomes, se recorda do que a levou a colocá-los ali e essas histórias serão compartilhadas conosco. Aos poucos, vamos conhecendo sua trajetória, que teve passagens na França e nos Estados Unidos, além de ter ficado no meio da segunda guerra mundial.

Ela foi tirada bruscamente da infância com a morte do pai em um acidente de trabalho. Sua mãe não conseguiu sustentar as duas filhas pequenas e mandou Doris, que tinha apenas dez anos, mas era a mais velha, para trabalhar com uma família rica. A partir daí, ela conhece o mundo da moda, faz amigos, agarra-se às oportunidades que surgem, conhece e perde o amor. A catástrofe parece que sempre vai acompanhá-la e junto o sentimento de incompletude. Ao saber do acidente, Jenny corre para a Suécia. Lá, decide dar uma última chance de felicidade à tia-avó. Será que vai conseguir? Este é daqueles livros que dá uma aquecida no coração. O final me lembrou muito "A adorável loja de chocolate de Paris", de Jenny Colgan. Leiam :-)

Dizem que loucura e criatividade andam de mãos dadas. Que os mais criativos entre nós são os que chegam mais perto da melancolia, da tristeza e das neuroses obsessivas.


"Eu desejo tudo de bom para você — murmurou no meu ouvido. — Muito sol para iluminar os seus dias, com chuva suficiente para poder apreciar o sol. Muita alegria para expandir a sua alma, dores suficientes para conseguir apreciar os pequenos momentos de felicidade da vida. E muitos amigos para dizer adeus de tempos em tempos."

"Comecei pelos mais finos e segui adiante, um romance atrás do outro. Livros fantásticos que me ensinaram muito sobre a vida e o mundo. Estava tudo lá, reunido naquelas prateleiras de madeira. Europa, África, Ásia, América. Os países, os aromas, os ambientes, as culturas. E os povos. Vivendo em mundos tão diferentes, e ainda assim tão parecidos. Cheios de ansiedade, dúvidas, ódio e amor. Como todos nós."

"Essa pode ser uma das coisas mais degradantes a que se pode submeter alguém, não se importar com o que a pessoa pensa."

sábado, 10 de abril de 2021

o que é deficiência



"Ser cego é apenas uma das muitas formas corporais de estar no mundo. Mas, como qualquer estilo de vida, um cego necessita de condições sociais favoráveis para levar adiante seu modo de viver a vida."


A antropóloga Debora Diniz começa "O que é deficiência", da coleção Primeiros Passos falando sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges, que ficou cego depois de adulto. Ela critica os que consideram que a inspiração do autor vem justamente do fato de ele não enxergar, o que poderia ser um estímulo à literatura, no caso dele. Mas não era exatamente assim que Borges via sua cegueira. Para ele, "a cegueira deve ser vista como um modo de vida: é um dos estilos de vida dos homens". E é justamente este pensamento que permeia a obra de Diniz, que traz uma ampla pesquisa sobre vários movimentos em prol de direitos de pessoas consideradas deficientes. Toda sua narrativa, porém, é para desmistificar o conceito de deficiência como anormalidade.

O primeiro capítulo fala do modelo social da deficiência, criado no Reino Unido a partir da iniciativa de Paul Hunt, sociólogo deficiente físico. Em uma carta enviada, em 1972, ao The Gardian ele ressalta a marginalidade com que vivem as pessoas com lesões físicas severas, "isoladas em instituições sem as menores condições, onde suas ideias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes". Sua proposta era formar um grupo de deficientes disposto a provar que "a experiência da deficiência não era resultado de suas lesões, mas do ambiente social hostil à diversidade física." Surge, então, a Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação (Upias), a primeira organização formada e administrada exclusivamente por deficientes.

A partir daí, a deficiência passou a ser vista como opressão social, exatamente da mesma maneira que vivenciavam outros grupos minoritários. Em seguida, Diniz aborda os estudos sobre deficiência no meio acadêmico, que partiram justamente das referências bibliográficas dos teóricos do modelo social. O marco foi a criação de um curso à distância pela Universidade Aberta (Open University), também no Reino Unido, em 1975. A efetiva estruturação acadêmica dos estudos sobre deficiência veio oito anos depois com o livro "Serviço Social com deficientes", de Michael Oliver, um dos cabeças da Upias.

O próximo passo foi a revisão do modelo médico. Em 1980, a Organização Mundial da Saúde publicou a Classificação Internacional de Lesão, Deficiência e Handicap (ICIDH), tentativa de sistematizar a linguagem biomédica relativa a lesões e deficiências. Ocorre que a elaboração deste documento ignorou o trabalho dos teóricos desse modelo, sendo considerado um retrocesso de tudo que havia sido construído nesse campo. Contudo, permitiu a abertura de discussões e união de esforços para "comprovar as debilidades do vocabulário proposto pela OMS". A revisão da ICIDH com o olhar de quem vivencia a deficiência só aconteceria dez anos depois.

Esta primeira geração de teóricos tinha dois grandes objetivos que, de certa forma, foram cumpridos: aumentar a compreensão da deficiência para além do discurso médico e promover o olhar sociológico, evidenciando que a opressão pela deficiência era fruto dos ideais capitalistas. Partiam das seguintes afirmações:

"1. As desvantagens resultavam mais diretamente das barreiras que das lesões;

2. retiradas as barreiras, os deficientes seriam independentes. A premissa do modelo social era a da independência como um valor ético para a vida humano, e o principal impeditivo da independência dos deficientes eram as barreiras sociais, em especial as barreiras arquitetônicas e de transporte."

Coube à segunda geração acrescentar abordagens pós-modernas e de críticas feministas. Vale ressaltar que o modelo social era também pautado nos estudos de gênero e feminismo, uma vez que comparava o preconceito sofrido pelos deficientes com a desigualdade entre gêneros. "A analogia entre a opressão do corpo deficiente e o sexismo era um dos pilares que sustentavam a tese dos deficientes como minoria social. Assim como as mulheres eram oprimidas por causa do sexo, os deficientes eram oprimidos por causa do corpo com lesões - essa era uma aproximação argumentativa que facilitava a tarefa de dessencializar a desigualdade."

As feministas apontaram que os primeiros teóricos questionavam apenas a inclusão no mercado de trabalho, deixando de lado o cuidado. "Foram as feministas que introduziram o debate sobre as restrições intelectuais, sobre a ambiguidade da identidade deficiente em casos de lesões não aparentes e, o mais revolucionário e estrategicamente esquecido pelos teóricos do modelo social, sobre o papel das cuidadoras dos deficientes." Elas estenderam, ainda, o conceito de deficiência para o envelhecimento e doenças crônicas.

"A verdade é que a deficiência é mais do que um enigma: é um desconhecido erroneamente descrito como anormal, monstruoso ou trágico, mas que fará parte da trajetória de vida de todas as pessoas que experimentarem os benefícios da civilização. Com o crescente envelhecimento populacional, a categoria "deficiente"como expressão de uma "tragédia pessoal" perderá o sentido. Ser velho é experimentar o corpo deficiente. Ser velho é viver sob um ordenamento social que oprime o corpo deficiente."

Para Diniz, afirmar que a deficiência trata-se de um estilo de vida não é ingenuidade ou buscar algo intangível. A diferença é que este estilo de vida precisa a todo momento pedir para ser incluído, para ser aceito, para ser visto. Esta afirmação não tem a pretensão de igualar a deficiência a outros estilos de vida. Apenas ressalta que "o corpo não é simplesmente a fronteira física de nossos pensamentos. É por meio do corpo que se reclama o direito de estar no mundo."