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domingo, 7 de março de 2021

a cachorra



"O comentário doeu em Damaris, mas ela ficou calada. Não valia a pena começar uma briga."



"A cachorra", da escritora colombiana Pilar Quintana tinha tudo para ser um excelente romance. Mas algo deu errado. Ele foi escrito durante o puerpério da autora. Enquanto amamentava, escrevia a história de Damaris, que se ressente muito por não ter tido filhos. A própria Quintana afirmou, em entrevista, que até os 39 anos não pensava em ser mãe. A vontade surgiu após o divórcio e, três anos depois, engravidou do novo parceiro. Contudo, sua protagonista não teve a mesma sorte. Na casa dos quarenta anos, ela se descreve velha, seca. É extremamente doloroso lidar com as crianças que a todo momento chegam ao mundo. Sentimos todo seu sofrimento ao longo da narrativa. Ela é casada com Rogelio, só que há tempos dormem em quartos separados. A situação em que vivem é extremamente precária, assim como a de todos no vilarejo.

"A tristeza cobriu Damaris e tudo — levantar-se da cama, preparar a comida, mastigar os alimentos — era um tremendo esforço para ela. Sentia que a vida era como a angra e que ela precisava atravessá-la caminhando com os pés enterrados no barro e a água até a cintura, sozinha, completamente só, em um corpo que não lhe dava filhos e só servia para quebrar coisas."

Quando criança, Damaris passou por um grande trauma e isso ela vai carregar por toda a vida. Talvez por este motivo sempre opta pelo silêncio, mesmo quando acredita ter razão. Para suprir a vontade de ser mãe, adota uma cachorra. O amor que sente pelo animal chama a atenção dos familiares e do marido, que não entendem tamanha devoção. A cachorra, porém, não retribuiu da maneira que Damaris esperava. É arredia e gosta da liberdade. Passa dias perdida pelo mundo, deixando sua "mãe" e os leitores aflitos. Até que volta grávida, despertando sentimentos até então represados na protagonista. A partir daí, eu quase não consegui ler. É de partir o coração. Pela cachorra.

"Damaris não suportava vê-la. Era uma tortura encontrá-la cada vez mais barriguda quando abria a porta do casebre. A cachorra se empenhava em estar sempre ali e em segui-la do casebre ao quiosque, do quiosque ao tanque e do tanque ao casebre… Damaris tentava espantá-la. “Xô”, dizia, “me deixe”, e certa vez até ensaiou erguer a mão como se fosse bater nela, mas a cachorra sequer se assustou, seguia indo atrás dela, lenta e pesada pelos filhos que levava em si."

Sei que a autora quis usar esta relação como uma metáfora para a agressividade materna, desmistificando o romantismo em torno deste papel. Mas não. Ela exagerou no antropocentrismo. Nem tudo gira em torno do ser humano, afinal.

Quem dera o final não pudesse ser este? "Ela viu os filhotes no dia seguinte, quando sentiu fome e teve que ir ao quiosque para preparar o almoço. Rogelio tinha improvisado uma cama com sua capa de chuva, e a cachorra estava dando de mamar. Eram quatro, diferentes um do outro e tão pequenos, cegos e indefesos quanto a cachorra era no dia em que Damaris a encontrou no bar de dona Elodia. Cheiravam a leite e Damaris não conseguiu resistir. Pegou um por um, aproximou-os do nariz para aspirar o aroma e os apertou contra o peito."