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domingo, 23 de fevereiro de 2014

o sal da vida


Este delicioso livro é para ser lido de uma só vez. Escrito pela antropóloga e professora do Collège de France Françoise Héritier, "O sal da vida" é uma resposta ao colega que se viu constrangido por "roubar" uma semana de férias na estonteante Isle of Skye, na Escócia (quem já esteve lá sabe que não é local para culpas, mas contemplação). Em pouco menos de 100 páginas, mostra que ele tem mais é que curtir. E vai citando, como em um grande monólogo, tudo o que faz a vida valer a pena, a partir de sua bagagem. Todos os momentos que dão sal, tempero à existência. Pode parecer autoajuda, mas está mais para ensaio autobiográfico. Sua lista traz desde situações prazerosas até horas de angústias que precedem a entrega de um projeto ou o encontro tão aguardado. Pitadas de medo, pequenas infrações, dúvidas também são deveras importantes para o dia a dia. Mas é na simplicidade do cotidiano que está tudo o que mais sentiremos falta. Não por acaso é onde reside a maior parte das lembranças da autora, recheada de passagens de livros, músicas, filmes e personagens diversos que a marcaram. "Trata-se de coisas seriíssimas e demasiado necessárias para conservar o 'gosto', o 'sabor' da vida: refiro-me aos frêmitos íntimos que os pequenos prazeres provocam, às interrogações e mesmo às decepções, se as deixarmos acontecer."

Pode ser que lá pelas tantas as recordações alheias possam nos entediar. Mas o tédio, como ela mesma disse em uma entrevista, pode ser o motor da reflexão e da atitude. Assim, a experiência da sucessora de Lévis-Strauss nos leva às nossas próprias enumerações. Foi fácil me identificar com muitos aspectos desse inventário e durante a leitura recorrer àqueles meus simples momentos que ficaram para trás, mas que ainda são muito presentes. Ou mesmo a momentos atuais dos quais tenho saudade só em pensar que um dia também se esgotarão. Fica, todavia, o conselho que ela dá: "diga a si mesmo, em alto e bom som, que nada disso lhe poderá ser tirado, nunca, jamais."

Alguns trechos:

"Omiti muitas coisas na lista do que é o sal da vida. Portanto, vou continuar seguindo o método dos surrealistas: associação de ideias e deixar que venham livremente à memória."

"... ruminar uma ideia, assistir a um filme antigo na televisão ou num cineclube, assobiar com as mãos nos bolsos, não pensar em nada, precisar de momentos de silêncio e de solidão, correr debaixo de uma chuva quente."

"... reencontrar o paladar das receitas do passado, contar passos entre as pedras da calçada, estar absorto na leitura de um livro no metrô e ser surpreendido pelo anúncio de sua estação, imaginar o que seria possível fazer de inusitado com um objeto, uma casa ou lugar."

"... ter um trabalho insano com algo que acabou não dando em nada, acender um fósforo, dar brilho nos cobres, cochilar numa conferência entendiate, fazer palavras cruzadas de nível máximo, praguejar como um rabugento quando os objetos teimam em emperrar e, de preferência, aos piores palavrões."

"... passar uma noite em claro para terminar um romance, passar uma noite em claro para velar o primeiro morto da família (a mãe da mãe da sua mãe), passar uma noite em claro ao lado do seu bebê, ouvir uma cúria ária de Mozart que todas as vezes lhe toca o coração."

Como é fácil ser feliz: momentos meus ;-)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

dolci di amor

Poderosa executiva em Nova York, conhecida por planejar cada segundo da vida, Lili fica sem ação quando descobre que o marido possui outra família na Itália. A dor é ainda maior quando ela vê duas crianças ao lado dele. Com mais de quarenta anos, ressente-se por não ter dito filhos. Foram vários abortos e uma tentativa de adoção frustrada. Ao olhar a fotografia que revelou o adultério, a única coisa que sentia era vazio. Mesmo assim, arruma a mala e parte para a Toscana. Era lá que encontraria Daniel.


"Dolci di Amor", da neozelandesa Sarah-Kate Lynch, tem sabor de dia fresco, ensolarado e calmo. Momento em que esquecemos os compromissos e apenas nos deliciamos com uma taça de vinho branco. De preferência um riesling, como a protagonista da história. E se a oportunidade deixar, diante de "ondulante mar de retalhos verdes: tantos tons diferentes e cada um mais profundo, claro ou deslumbrante que o anterior." Assim fica mais fácil divagar sobre os problemas, que vão se atenuando ou tornando-se insignificantes diante de tamanha sensação de bem-estar e cheiro sedutor de amorucci, biscoitos doces, saindo do forno.

E se os dilemas forem sentimentais, as coisas ficam ainda mais fáceis se a sorte nos levar para o vilarejo que abriga viúvas, bem velhinhas, especializadas em remendar corações partidos. Segundo elas, tudo o que é remendado fica muito mais resistente. Lili vai poder conferir se a tal Liga Secreta das Cerzideiras Viúvas realmente tem poderes restauradores. Toscana é fonte de inspiração para livros. Mas mesmo os que trazem relatos de viagens, como o de Marlene de Blasi e seus mil dias, falam sobre o amor e os efeitos terapêuticos da região. O livro de Lynch é previsível, mas vale se você busca por leitura tranquila e doce.

"Era tão lindo que era impossível se concentrar no que a trouxera ali. Em vez disso, ela se apoiou no batente da janela e observou a luz do dia rastejar através da paisagem, o tom ofensivo de damasco nos lençóis elétricos e seu coração infeliz esquecidos enquanto ela simplesmente deixava as cores naturais do mundo se revelarem diante dela."