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domingo, 7 de maio de 2023

o dia em que selma sonhou com um ocapi



"Nenhuma pessoa está sozinha enquanto puder dizer nós."


Já viu um ocapi? Se não, dê um Google. Esse animal, quase mítico devido às suas características físicas (mistura de girafa e cavalo, pernas listradas como as de uma zebra) é o fio condutor do romance da alemã Mariana Leki.

"O ocapi é um animal bizarro, muito mais bizarro do que a morte, e parece totalmente incongruente com suas pernas de zebra, ancas de tapir, torso vermelho-ferrugem de girafa, olhos de cervo e orelhas de rato. Um ocapi é implausível ao extremo, tanto na realidade quanto nos sonhos nefastos de uma mulher das montanhas Westerwald."

A história se passa em uma pequena vila da Alemanha, cercada por floresta, e é contada por Luise, que vai crescendo conforme a narrativa avança. Sua avó, Selma, é presença central na comunidade e todos temem seus sonhos com o ocapi. Quando isso acontece é sinal de que alguém, em breve, vai morrer. E é aquele desespero. Todos se apressam para dar conta dos últimos arranjos desta vida. Há de tudo. Quem começa a se despedir. Quem fica feliz porque entende que já passou da hora de ir para outro plano. Há os que nem saem de casa. Apesar da temática, o romance é divertido, com humor que me fez lembrar "As Intermitências da Morte", de José Saramago. Lá, a morte faz uma espécie de greve, deixando as pessoas sobressaltadas com o prolongamento inesperado da vida, o que indica que a infinitude pode ser um fardo. Movimento contrário ao que foi feito no romance de Leki, no qual as pessoas tendem a prolongar as situações.

Os personagens são bem peculiares. Além das protagonistas, há o pai de Luise, médico que está tratando sua "dor encapsulada"; a mãe, que está sempre se esquivando e com pressa de sair dos ambientes familiares. Temos ainda o bondoso oculista, secretamente apaixonado por Selma, mas que há décadas adia a declaração, deixando todos na expectativa de quando isso irá acontecer. "Todo mundo na cidade sabia que o oculista amava Selma, mas o oculista não sabia que todos sabiam." Tem o Martin, o melhor amigo de Luise, criança vivaz que está sempre levantando alguma coisa ou alguém, como que testando sua força. Há ainda a irmã de Selma, o pai de Martin, Marlies, que parece nunca envelhecer e que foge de encontros, o dono de mercadinho e Frederik, monge budista que surge mais para o fim. Juntos, formam um grupo bem unido. Contudo, o estado de inércia ou hesitação prevalece por lá, como se as pessoas estivessem esperando por algo que as liberte ou as force a agir. E geralmente isso vem de forma dolorosa. Os animais também estão presentes: o cachorro Alasca, que surge por meio do pai de Luise. Segundo ele, o cão irá ajudá-lo a mostrar sua dor. Enorme, ele ganha seu espaço cativo na trama. Há o ocapi dos sonhos e um cervo, que sempre que surge é imediatamente espantado por Selma, a fim de protegê-lo dos caçadores.

Mas, retornando ao sonho fatídico de Selma, a morte, infelizmente, chega de forma trágica e impactante, afetando profundamente toda a vila e, em particular, Luise. Este evento, ainda na sua infância, literalmente, a paralisa e deixa marcas em sua vida adulta. Essa é uma passagem bem triste da história, porém, o apoio que Selma dá para a neta é uma das entregas mais lindas que você irá ler. Mais tarde, Luise se apaixona pelo monge budista, lançando ambos em um dilema amoroso e existencial.

Com toques de realismo fantástico, o livro parece ter sido feito sob medida para uma adaptação cinematográfica no estilo de "Amélie" ou "A Fantástica Fábrica de Chocolate", na versão de Tim Burton, com as mesmas nuances de cores e vivacidade dos personagens.


Os animais de Selma

A história, intencionalmente ou não, é repleta de simbolismos, como o peso que Martin insiste em levantar, a dor encapsulada do pai de Luise, a casa de Selma que pode despencar a qualquer momento, a mania de limpeza de Frederik, dentre outros. Vou me atentar, porém, aos animais presentes no enredo.

"Daí, no fim do sonho, Selma ergueu a cabeça, o ocapi virou a sua na direção de Selma, e eles se encararam. O olhar do ocapi era muito suave, muito escuro, muito úmido e muito grande. Parecia amistoso e como se quisesse lhe formular uma pergunta, como se lamentasse que ocapis não pudessem fazer perguntas também nos sonhos. A imagem ficou congelada durante muito tempo: a imagem de Selma e do ocapi, olhando-se nos olhos um do outro. Em seguida, a imagem se dissipou, Selma acordou e ele, o sonho, acabou – e logo a vida de alguém próximo se acabaria também."

A presença de animais em obras literárias carrega peso simbólico e teórico significativo que se enquadra dentro do campo da zooliteratura. Essa disciplina examina como os animais são representados e significados em textos literários. A aparição do ocapi, do cervo e do cachorro Alasca, o único que ganhou um nome, atua como um convite à reflexão sobre temas de alteridade, vulnerabilidade e coexistência interespécies.

O ocapi age como um símbolo do estranho e do inexplorado, quase uma entidade onírica que transcende as realidades cotidianas. O cervo representa vulnerabilidade, proximidade e familiaridade, estando literalmente no quintal dos personagens. Por fim, o cachorro Alasca se manifesta em uma escala pessoal e íntima, representando emoções humanas como a dor. Cada animal oferece uma lente através da qual são exploradas diferentes formas de vulnerabilidade e alteridade, em escalas que vão do mítico ao pessoal.

Neste contexto, a obra "O animal que logo sou" de Jacques Derrida nos ajuda a questionar as tradicionais fronteiras e hierarquias entre humanos e animais. Ele critica a visão antropocêntrica que prevalece na interpretação de textos literários e culturais, argumentando que deveríamos considerar a agência e complexidade do "outro" animal.

"Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito 'animal' me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar." (Derrida)

Essas questões ressoam na pesquisa "Literatura e Animalidade" de Maria Esther Maciel. Ela sugere que os animais na literatura têm sua própria forma de "ser no mundo." Eles não são meras representações, mas entidades complexas que pressionam os personagens e leitores a reconsiderar suas posições e hierarquias preconcebidas no mundo.

A visão de Maciel complementa a de Derrida ao colocar em questão as hierarquias e dicotomias que normalmente estabelecemos entre humanos e animais. Ambas as obras contribuem para entender que a autora do romance está engajada em um pensamento que respeita a complexidade e a agência dos animais, em linha com a zooliteratura e a zoopoética. Este engajamento desafia nossas compreensões tradicionais e sugere uma ética mais inclusiva e relacional, que reconhece a inextricável interconexão entre todas as formas de vida em uma teia complexa de relações.

Ao considerar a presença dos animais no romance à luz das obras de Derrida e Maciel, fica evidente que os animais não são meros coadjuvantes ou símbolos, mas figuras importantes que desafiam nossas concepções habituais e abrem espaço para uma ética mais inclusiva e complexa.

"O cachorro surgiu no aniversário de Selma do ano anterior. Papai tinha dado um livro de fotografias do Alasca de presente para Selma, acrescentando com uma piscadela: — Mais tarde vem mais uma surpresa. Selma nunca tinha estado no Alasca e nem queria ir. — Obrigada — disse ela, juntando aquele aos outros livros de fotografias na estante da sala. Todos os anos, papai a presenteava com um livro de fotografias, por causa do mundo, para o qual ela – como ele achava – tinha urgentemente de se abrir."

Trechos

"Quando Selma disse que tinha sonhado com um ocapi durante a noite, estávamos certos de que um de nós haveria de morrer, provavelmente nas vinte e quatro horas seguintes. Bem, estávamos quase certos. Foram vinte e nove horas. A morte chegou com um pequeno atraso e de maneira literal: ela entrou pela porta. Talvez tenha se atrasado porque hesitou demais, para além do último instante."

"Era possível notar que as pessoas na cidade estavam inquietas, mesmo quando grande parte tentava não deixar transparecer nada. Pela manhã, poucas horas depois do sonho de Selma, as pessoas se movimentavam na cidade como se gelo escorregadio cobrisse todos os caminhos, não apenas fora, mas também dentro das casas, em suas cozinhas e salas. Elas se movimentavam como se seus corpos lhes fossem estranhos, como se todos os seus membros estivessem inflamados, e também como se os objetos com os quais lidavam fossem altamente inflamáveis. Passaram o dia inteiro desconfiando da própria vida e, na medida do possível, também da de todos os outros. Olhavam o tempo todo para trás, a fim de checar se alguém apareceria num salto, cheio de vontade de matar, alguém que tivesse perdido a razão e, portanto, sem mais nada a perder. Depois, rapidamente olhavam de novo para a frente, porque, afinal, alguém sem razão também poderia atacar frontalmente. Olhavam para cima, para evitar telhas, galhos ou lustres pesados caindo. Evitavam todos os animais, imaginando que eles pudessem trazer a morte mais facilmente do que as pessoas. Desviavam das vacas bonachonas, que naquele dia possivelmente iriam escapar, evitavam os cachorros, até os bem velhos, que mal conseguiam ficar em pé, mas que ainda assim poderiam abocanhar seus pescoços. Em dias como aquele tudo era possível, até mesmo um salsichinha ancião esgoelar alguém, algo que, na realidade, não era tão mais esquisito do que um ocapi."

"O cachorro estava cansado. Era cansativo reencontrar uma porção de velhos amigos, há muito perdidos, que nunca tinham sido vistos antes. O cervo apareceu bem na extremidade da campina, nos limites da floresta. Assim que surgiu, Selma se levantou, foi até a garagem, abriu a porta e fechou-a de novo, com muita força. Era terça-feira e, às terças, durante a temporada de caça, Palm, pai de Martin, saía para caçar, e foi por isso que Selma assustou o cervo deliberadamente, para que sumisse em meio à floresta e ficasse a salvo das balas de Palm. Como era previsto, o cervo se assustou e sumiu. O cachorro também se assustou, mas não sumiu."

"O cachorro ergueu a cabeça e olhou para mim. Os olhos eram muito suaves, muito pretos, muito úmidos e muito grandes. De repente, soube que o cachorro nos tinha feito falta."

"Vivíamos numa região lindíssima, numa região maravilhosa, paradisíaca – como estava escrito nos cartões-postais em letra cursiva toda rebuscada que o dono do mercadinho dispunha no balcão. Mas quase ninguém na cidade prestava atenção nisso, nós passávamos por cima da beleza, pulávamos por cima dela, deixávamos de lado, dos dois lados, mas seríamos os primeiros a reclamar, em voz alta, caso as belezas que nos circundavam algum dia desaparecessem."

"Estavam aliviadas e se prometeram, dali em diante, se alegrar com tudo e serem gratas porque ainda estavam vivas. Elas prometeram, por exemplo, finalmente se regozijar de verdade pelo jogo de luzes que o sol da manhã proporcionava ao bater nos galhos das macieiras. As pessoas da cidade já tinham prometido isso muitas outras vezes, por exemplo, quando não eram atingidas por uma telha caindo ou quando um diagnóstico ruim era descartado. Mas, depois de um breve período de gratidão e felicidade, sempre havia o rompimento de um cano ou uma despesa extra inesperada, e daí a gratidão e a felicidade rapidamente se diluíam, as pessoas não ficavam mais gratas por estarem vivas, ficavam apenas irritadas que também existisse, além delas, um cano rompido ou uma despesa extra, e a luz do sol na macieira acabava posta de escanteio."

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