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sábado, 29 de agosto de 2020

a sociedade literária e a torta de casca de batata




"Talvez haja algum instinto secreto nos livros que os leve a seus leitores perfeitos. Se isso fosse verdade, seria encantador."

Gosto muito de livros que retratam episódios da segunda guerra mundial, mas geralmente eles tendem a ser pesados com os relatos das batalhas e dos prisioneiros. Já este romance epistolar, mesmo que tenha episódios tristes, mostra de forma até divertida a união de pessoas que sobreviveram. A sociedade do título foi criada para servir de álibi aos moradores de Guernsey, ilha britânica no Canal da Mancha, que foi invadida pelos alemães. Uma das habitantes, na tentativa de despistar os inimigos após uma pequena reunião entre vizinhos, diz que todos estavam no tal clube literário. Rapidamente, eles têm que se mobilizar para fazer valer a mentira. E não é que tomam gosto pelos livros e pelas conversas em torno dos romances. Tudo isso é contato por meio de cartas para a jornalista e escritora Juliet Ashton, que mora em Londres. As missivas começam com Dawsey Adams, que encontra o endereço de Juliet em um livro que ela vendeu para um sebo há tempos. Ele escreve pedindo informações sobre um autor e assim começa uma interessante troca de mensagens, que acaba envolvendo os demais moradores da ilha. Resultado: ela vê ali uma interessante história para seu próximo livro. Mas a viagem lhe dá muito mais que isso. Ela própria teve suas perdas durante a guerra e Guernsey pode ser o recomeço. O livro também é uma homenagem à literatura e as possibilidades que ela nos traz, pois foi o interesse comum pelos livros (mesmo que no início de forma forçada) que levou a uma série de encontros. Só não assistam à versão para o cinema antes de ler o romance ;-)

"Não consigo pensar em solidão maior do que passar o restante da minha vida com alguém com quem não possa conversar ou, pior, com alguém com quem não possa ficar em silêncio."

sábado, 15 de agosto de 2020

os vestígios do dia



"Pela minha experiência, muita gente se acha capaz de galgar níveis mais altos sem fazer a menor ideia das grandes exigências envolvidas. Com certeza, não é coisa adequada para qualquer um."


Gosto muito de narrativas que trazem a Inglaterra dos grandes casarões. E comecei a ler este livro justamente depois de ter terminado de assistir ao filme "Downton Abbey”, sequência da brilhante série com seis temporadas, e que está entre as minhas favoritas. Portanto, foi extremamente difícil não associar a figura do protagonista, o mordomo Stevens, com Charles Carson, o mordomo da série interpretado por Jim Carter. Eu chegava a ouvir sua voz na narrativa de Ishiguro. Tanto que, apesar de sua bela interpretação, não consegui ver Stevens na pele de Anthony Hopkins, na versão cinematográfica de 1993.

Aqui temos a história e a dedicação de décadas de um mordomo à casa em que trabalha, Darlington Hall, e aos seus moradores, em especial Lord Darlington. Empenho que começou observando seu pai, também um importante mordomo. Este cargo era o ápice na ala dos empregados dessas mansões. Aliás, havia dezenas deles para dar conta de cada serviço: arrumar, lavar, limpar, cozinhar, servir a mesa, vestir os patrões, cuidar das crianças e muito mais. Ou seja, parece que às ladies e aos lords restava apenas o ato de respirar. Mas não estou aqui para julgar.

A narrativa começa com Stevens, já idoso e debilitado, refletindo sobre a necessidade de ter uma pessoa a mais lhe ajudando nas tarefas. Ele até tem um pessoa em mente: a antiga governanta, miss Kenton, e decide ir pessoalmente perguntar se ela toparia retornar. Muitos anos já se passaram dos dias de glória da casa, agora com o orçamento adequado aos novos tempos, o que inclui um quadro de empregados bem mais enxuto, basicamente com duas pessoas. E o zeloso colaborador não sabe bem como abordar a questão com seu novo patrão, Mr. Benn, rico norte-americano que acabou de comprar Darlington Hall e que está imprimindo seu estilo à habitação, o que deixa Stevens bastante confuso e inseguro. Mas, do seu jeito, ele tenta se encaixar no novo modelo de trabalho. Bem engraçada a passagem em que treina piadas para parecer descontraído diante do chefe, que está sempre soltando tiradas "engraçadas". Claro que não é bem sucedido. Ainda assim, vemos seu esforço.

Foi impossível não fazer uma analogia de seu empenho ao de inúmeros funcionários que atuam em grandes corporações. E que, de repente, se veem obsoletos, sem grandes atribuições. Ou que são descartados em prol do novo. Stevens tenta se mostrar aberto às mudanças. Embora, lá no fundo sinta saudades do velho tempo e tenha convicção que o seu jeito é o jeito certo de se fazer as coisas.

Ocorre que ao falar com Mrs. Benn sobre a possibilidade de Miss Kenton, o primeiro entende que ele quer visitar uma pretendente e acaba insistindo para que ele tire férias para viajar pelo interior inglês. Assim, começa sua meticulosa jornada de carro. Enquanto dirige ou para para observar as paisagens e dormir, relembra os principais momentos de sua vida, incluindo as oportunidades perdidas. Ele terá a chance de reverter uma delas, mas as obrigações do ofício falarão, como sempre, mais alto. Inclusive, sentiremos raiva dele em vários momentos, sobretudo no que diz respeito ao seu pai. A despeito de todas as mudanças, Stevens segue fiel aos princípios que fizeram dele um grande mordomo. Ele não abre mão da dignidade que sempre prezou e o trecho a seguir descreve muito bem tudo o que envolve sua profissão e o que pensa dela:

"Dignidade tem a ver essencialmente com a capacidade de um mordomo de não abandonar o ser profissional que lhe habita. Mordomos menores abandonam seus seres profissionais em prol da vida pessoal à menor oportunidade. Para essas pessoas, ser mormo é como desempenhar um papel numa pantomima; um pequeno empurrão, um ligeiro tropeço e a fachada despenca, revelando o ator que há por baixo dela. O grande mordomo é uma virtude de sua capacidade de habitar seu papel profissional - e de habitá-lo até o fim. Não se deixa abalar por acontecimentos externos, por mais surpreendentes, alarmantes ou constrangedores que sejam."

Como julgá-lo quando ainda vemos muitos profissionais deixando de lado suas vidas para ir atrás das metas corporativas? Será que é muito diferente do que Stevens fez? Precisamos, nós, de um olhar espantando diante do que pensamos sobre carreira e trabalho. Felizmente, isso parece estar acontecendo.

"Miss Keaton", garanti a ele, "é uma profissional dedicada. Sei, com toda a certeza, que não tem nenhum desejo de consistir família."