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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

mr. mercedes




Ele vai matar o cachorro. E eu não vou conseguir continuar a leitura. Quando cheguei no capítulo "Isca envenenada" fechei o livro e respirei profundamente. Morte de animais mexem comigo. E era justamente isso que estava para acontecer. Depois de algum tempo, criei coragem para ver o que o autor tinha preparado. E... Bem, posso dizer que fiquei aliviada, embora para alguns o que veio foi bem pior.

Que livro! Stephen King caprichou neste romance policial. Quando eu era adolescente, devorava esse tipo de literatura. Em especial os de Agatha Christie. Depois de adulta, dei uma diminuída. Mas ainda é um dos meus favoritos. A leitura é rápida. Não sossego até que o criminoso seja descoberto. Na maioria das vezes, o ser mais improvável. Em "Mr. Mercedes" foi diferente. O criminoso, Brady Hartsfield, nos é apresentado logo de cara. Sabemos tudo o que passa na sua cabeça doentia. E, aos poucos, vamos conhecendo os motivos que fizeram dele um assassino. Nada que justifique, porém, seus crimes. Até o coitado do Brad Pitt ele quis matar. 

Quando li o primeiro capítulo, achei que estava diante dos personagens principais. Que nada. SK nos engana. O livro começa em um estacionamento que servirá para um feirão de empregos. É madrugada. Faz um frio danado. De um ônibus, salta um homem que caminha para a fila que começa a se formar. Na frente dele, uma mulher com um bebê, o que o deixa surpreso. Como ela teve coragem de trazer essa criança tão novinha? Ainda mais nessas condições, em que eles têm que passar a noite de pé para garantir, quem sabe, um trabalho. E o autor, ao longo desse trecho, vai nos dandos as pistas de que esses serão os últimos momentos deles. Logo em seguida uma Mercedes enfurecida passa por cima de todos.

Há uma passagem de tempo e somos apresentados ao detetive aposentado, Bill Hodges. Gordo e entendiado, ele passa as tardes sentado no sofá bebendo, comendo e assistindo aqueles programas que buscam resolver problemas (para não dizer barracos) familiares. Ao seu lado, um revólver que vira e mexe coloca na boca. O marasmo acaba quando recebe uma carta na qual o remetente diz ser o Assassino da Mercedes. Provocativa, tem o intuito de fazer com que o detetive se suicide. O que consegue é o oposto. O criminoso levanta Hodges que, por conta própria, inicia a caça ao bandido. Como já sabemos quem ele é, a emoção está nas suas estratégias para encurralar Brady, cujos atos acompanhamos passo a passo. Eletrizante. Nas últimas páginas tive que fechar novamente o livro. Não estava preparada para o iminente desfecho. Tem lá seus clichê, como um detetive meio loser que vai conquistando nossa admiração, a moça que vai ter um caso com ele, piadinhas para aliviar a tensão, companheiros de investigação (elementar, meu caro Watson). Mas é um grande livro. O primeiro da trilogia Bill Hodges. Atenção para a capa, que diz muito sobre a história.




quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

a amiga genial

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

meu avô português


quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

a cultura no mundo líquido moderno



Li "A cultura no mundo líquido moderno" entre setembro e outubro do ano passado. Rascunhei o resumo em novembro e, somente, agora estou aqui para terminar o post. Isso alguns dias após a morte do autor, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, aos 91 anos.

O livro abre derrubando o termo elite cultural, já que por conta da liquidez do mundo os indivíduos hoje absorvem de tudo um pouco. Com isso, não é mais papel da cultura a divisão de classes, também não lhe cabe moldar as pessoas de acordo com o que se considera 'culto'. A mesma pessoa que gosta de funk, pode gostar de música clássica, de sertanejo universitário e MPB, por exemplo. Esse é o reflexo do mundo líquido, nada mais permanece no estado sólido.

Para dar conta da sua teoria, além do conceito de cultura, ele aborda a moda; a imigração e a Europa como unificadora de povos; e o Estado como patrocinador da cultura. 

A moda ressalta as desigualdades sociais, além de propiciar a perda da individualidade na frenética busca do que é 'novo'. Ela tende ainda a nos levar a inércia de pensamentos. Bauman chega a dizer que é o lugar onde reina a preguiça, já que não precisamos inovar, apenas seguir o que é dito e feito. Lembrou-me muito de Nietzsche e sua descrição de último homem, aquele que pisca o olho e aceita o que lhe está sendo dito. É mais cômodo e simples do que tentar mudar o rumo das coisas.

Não existe mais a tal da elite cultural, aquela baseada em antigos signos, como frequentar óperas. Assim, o polonês Zygmunt Bauman inicia o livro "A cultura no mundo líquido moderno". Ele sugere a utilização do termo onívoro, dado por Richard A. Peterson, da Universidade de Vanderbilt, e que identifica o perfil atual de pessoas que consomem de tudo um pouco. "Em seu repertório de consumo cultural, há lugar tanto para a ópera quanto para o heavy metal ou o punk, para a 'grande arte' e para os programas populares de televisão."

"Estamos passando por uma mudança na política de status dos grupos de elite, dos intelectuais que detestam com esnobismo toda a cultura popular, vulgar ou de massa,... para aqueles que consomem de maneira onívora um amplo espectro de formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas."

O que ele diz é que não há mais a briga entre o que é refinado ou vulgar. Mas um não contra a seletividade excessiva. Estamos na era que pode ser resumida com a frase "nenhum produto da cultura me é estranho."

Antes, as movimentações artísticas eram criadas e dirigidas para um público específico. Inclusive, o sociólogo francês Pierre Bourdieu chegou a afirmar que esta prerrogativa, embora implícita, era a razão de ser das artes, que sinalizavam a divisão de classes. Colocavam as pessoas numa situação confortável e familiar. Para comparar, Bauman cita uma parábola inglesa:

"A cultura deveria comportar-se como o náufrago da parábola inglesa, aparentemente irônica, mas de intenções moralizantes, obrigado a construir três moradias na ilha deserta em que havia naufragado para se sentir em casa, ou seja, para adquirir uma identidade e defendê-la com eficácia. A primeira residência era seu refúgio; a segunda, o clube que frequentava todo domingo; a terceira tinha a função exclusiva de ser o lugar cujo portão ele evitaria cruzar em todos os longos anos que deveria passar na ilha."

A origem da cultura

O termo cultura surgiu como um apelo à ação, base do projeto iluminista. Ou seja, o acordo a ser celebrado entre os poucos detentores do conhecimento e os, como classifica o autor, ignorantes. Bauman afirma que agora a cultura passa a ser modelada de acordo com a liberdade e pela responsabilidade individuais de escolha. 

Para tanto, ele cita novamente Bourdieu que, em seu livro "La distinction", desmistifica o conceito original de cultura. Não mais como agente de mudança, mas como um tranquilizante. Reprodução monótona da sociedade e manutenção do equilíbrio do sistema.

"O nome 'cultura' foi atribuído a uma missão proselitista, planejada e empreendida sob a forma de tentativas de educar as massas e refinar seus costumes, e assim melhorar a sociedade e aproximar  'o povo', ou seja, os que estão na 'base da sociedade', daqueles que estão no topo. A 'cultura' era associada a um 'feixe de luz' capaz de 'ultrapassar os telhados' das residências rurais e urbanas para atingir os recessos sombrios do preconceito e da superstição que, como tantos vampiros (acreditava-se), não sobreviveriam quando expostos à luz do dia."

Agora, "sua função é garantir que a escolha seja e continue a ser uma necessidade e um dever inevitável da vida, enquanto a responsabilidade pela escolha e suas consequências permaneçam onde foram colocadas pela condição humana líquido-moderna - sobre os ombros do indivíduo, agora nomeado para a posição de gerente principal da 'política de vida', e seu único chefe executivo."

"Essa perda de posição foi resultado de uma série de processos que constituíram a transformação da modernidade de sua fase 'sólida' para 'líquida'."

A cultura está em todas as partes

E é neste ponto que Bauman utiliza o termo que o consagrou. Para ele, o atual status da cultura é resultado da transformação da modernidade de sua fase sólida para líquida, o que outros autores chamam de 'pós-modernidade', 'modernidade tardia', 'segunda modernidade' ou 'hipermodernidade'. Ou seja, a exemplo do líquido, nada mais consegue manter-se em seu formato original por muito tempo.

A cultura não traz mais proibições ou regras. Mas estímulos, como também já apontava Bourdieu. Ela pede constante mudança e está orientada para uma sociedade que preza a rotatividade. Nesse sentido, sua função, ao contrário de outras épocas, é criar novos desejos, novas necessidades. E assim coibir a plena satisfação diante do conhecido. "De maneira bem particular, neutralizar sua satisfação total, completa e definitiva, o que não deixaria espaço para outras necessidades e fantasias novas, ainda inalcançadas."

A moda

Bauman trata a moda como um fenômeno social utópico, já que promete algo inatingível. Ele fala de uma sociedade de caçadores, na qual o fim da caça é angustiante: a eterna insatisfação. Os consumidores perdem o interesse tão logo adquirem o bem que tanto queriam, e voltam-se para outros alvos. Quem já não se viu neste situação? 

A moda, para ele, é responsável pelas discrepâncias sociais. Ela "multiplica e intensifica as distinções, diferenças, desigualdades, discriminações e deficiências que ela promete suavizar e, em última instância, eliminar."

"Guiada pelo impulso de ser diferente, de escapar da multidão e da rotina competitiva, a busca em massa da última moda (do próprio momento) logo faz com que as atuais marcas de distinção se tornem comuns, vulgares e triviais; mesmo o menor lapso de atenção ou até uma redução momentânea da velocidade da prestidigitação podem produzir efeitos opostos aos pretendidos: a perda da individualidade. Hoje, os símbolos de 'estar na vanguarda' devem ser adquiridos depressa, enquanto os de ontem, da mesma forma, devem ser confinados à pilha de refugos. A regra de ficar de olho naquilo 'que já saiu de moda' deve ser observada tão conscienciosamente quanto a obrigação de permanecer no topo do que é (neste momento) novo e atual."

Desfile Gucci

Encarada como um dos principais incentivos do progresso, tem o poder de aniquilar tudo o que deixa para trás. Mas não devemos encarar esse progresso como antigamente. O que o autor propõe para esta palavra é uma ameaça. Na falta de algo melhor a fazer, vamos nos juntar ao que está sendo feito. Prato cheio aos preguiçosos, de acordo com Bauman. O progresso deixa de trazer melhorias para garantir a sobrevivência pessoal. Isto é, não está relacionado à velocidade, mas à inércia para não sair dos caminhos já trilhados. O importante não é vencer, mas apenas não fracassar completamente.

"Se você não quer afundar, deve continuar surfando, ou seja, continuar mudando, com tanta frequência quanto possível, o guarda-roupa, a mobília, o papel de parede, a aparência e os hábitos - em suma, você."

Para o autor, a moda é guiada por dois anseios contraditórios: o de pertencimento a um grupo e o de distanciamento das massas. "Ou, se olharmos esse conflito de outra perspectiva, o medo de ser diferente e o medo de perder a individualidade; ou da solidão e da falta de isolamento."


Conviver com a diferença

Nunca antes o europeu teve que conviver tanto com as diferenças (sem que fossem eles a buscá-las, vale reforçar). E isso é algo que veio para ficar, resultado da movimentação constante das pessoas, realizada por diversos motivos. Para tanto, surge a necessidade de adquirir-se habilidades que possibilitem a coexistência.

"A nova ideia de direitos humanos básicos estabelece, no mínimo dos mínimos, os alicerces da tolerância mútua; mas, cabe enfatizar, não chega a ponto de estabelecer os alicerces da solidariedade mútua."

Apesar dos esforços dos governos para evitar a imigração, seu fim é algo improvável. Estamos diante de uma diáspora étnica. O autor sugere que há várias intenções nas estratégicas de distanciamento das 'minorias étnicas' definidas pelos poderes globais. Dentre elas, dar ao 'povo' algo com que se preocupar.

Para tornar mais clara sua colocação, utiliza um trecho escrito pelo filósofo norte-americano Richard Rorty: "O objetivo será manter a mente dos proletários concentrada em outras coisas - manter os 75% mais pobres dos Estados Unidos e os 95% mais pobres da população mundial ocupados em hostilidades étnicas e religiosas e em debates sobre costumes sexuais. Se os proletários puderem se distrair de seu próprio desespero por pseudoeventos criados pela mídia, incluindo ocasionais guerras curtas e sangrentas, os super-ricos pouco terão a temer."

Nada poderia ser mais verdadeiro no momento atual, com ameaças de erradicação de imigrantes, preconceitos e intolerâncias das mais diversas, base de plataformas políticas bem-sucedidas no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

Como afirma Bauman, "quando os pobres discutem com os pobres, os ricos têm todo motivo para esfregar as mãos de alegria."

Será que estamos votando pelos motivos certos? Para refletirmos.

Refugiados, imigrantes, invasores?

Mas tudo isso é colocado para falar sobre a cultura diante dos processos imigratórios. E como os imigrantes reagem ao modo com que são tratados. Como minoria. Como invasores de territórios. Como estorvos. E muito desses sentimentos de exclusão são mútuos. Não confortáveis nessa situação, os imigrantes tendem a se isolar cada vez mais, rejeitando a aproximação dos nativos.

"O sentimento de ameaça e incerteza (tanto entre os imigrantes quanto na população nativa) tende a transformar o conceito de multiculturalismo no postulado de um "multicomunitarismo", como Alain Touraine assinalou. Por conseguinte, as diferenças culturais, sejam elas importantes ou triviais, patentes ou apenas perceptíveis, adquirem o status de materiais de construção para trincheiras e plataformas de foguete. 'Cultura' vira sinônimo de fortaleza sitiada, e dos habitantes de uma fortaleza sitiada se espera que manifestem diariamente sua lealdade e cortem, ou pelo menos reduzam radicalmente, qualquer contato com o mundo exterior."

Bauman recorre ao escritor líbano francês, Amin Maalouf, para expor algo bem coerente. "Quanto mais os imigrantes perceberem que as tradições de sua cultura original são respeitadas no país de adoção, e quanto menos eles forem desprezados, rejeitados, amedrontados, discriminados e mantidos a distância em decorrência de sua identidade diferente, mais atraentes lhes vão parecer as opções culturais do novo país, e menor será o apego à distinção."

Gostamos de viajar e conhecer 'novas culturas'. Somos abertos aos costumes, culinárias e estilos locais quando estamos de férias. No entanto, ao nos depararmos com essas 'culturas' em nosso território, fora da esfera do turismo, a aceitação é pequena. Sentimos que somos invadidos. Que nosso espaço está sendo indevidamente ocupado. Não há tolerância e o desrespeito e, principalmente, a indiferença passa a ser a base do relacionamento com o estrangeiro.

Como consequência, formam-se os guetos ou as comunidades de pessoas da mesma etnia. Juntos, eles tentam resgatar o que ficou para trás durante a fuga.

"O sentimento de comunidade surge muito naturalmente nas pessoas nos períodos em que lhes é negado o direito de assimilação. Quando privadas de escolha, a opção que lhes resta é buscar refúgio na fraterna solidariedade familiar. O impulso 'comunitário' das 'minorias étnicas' não é  'natural', mas imposto e conduzido de cima, pelo ato ou pela ameaça de privação. As minorias culturais são privadas do direito à autodeterminação; seus esforços por atingi-lo tornam-se fúteis. Todas as tendências remanescentes são resultado daquele primeiro ato original de privação; não surgiram sem ele, nem sem a ameaça de experimentá-lo. A decisão das parcelas dominantes, de conter os dominados no interior do arcabouço de referência das 'minorias étnicas', com base em sua falta de inclinação ou capacidade de romper com ele, tem todas as características de uma profecia autorrealizável."

Aparece, então, a necessidade de 'histórias de identidades'. Relatos que, de certa forma, resgatam a segurança e permitem reconstruir, mesmo que no imaginário, a confiança desaparecida. Mas ao contrário de antigos relatos sobre pertencimentos, antes enraizados em instituições fortes, esses, assim, como tudo na cultura líquida, estão sujeitos a sucessivas mudanças, o que faz com que a tão almejada segurança demore a chegar.

Bauman fala sobre a Europa como um destino comum. Ele acredita que sua união possa ser um exemplo bem-sucedido da fusão de diversas 'culturas'. Fala dos ganhos que todos teriam se o acesso a tudo o que foi escrito, por exemplo, nas diversas línguas oficiais que fazem parte da União Europeia, fosse de fácil acesso. "Quanta sabedoria poderíamos ter ganho, o quanto nossa convivência teria se beneficiado, se parte dos fundos da União Europeia tivesse se dedicado à tradução das escritas de seus habitantes numa, digamos, 'Biblioteca da Cultura Europeia', conjuntamente organizada e publicada? Pessoalmente, estou convencido de que poderia ter sido o melhor investimento no futuro da Europa e no sucesso de sua missão."

A cultura entre o Estado e o mercado

O debate na última parte do livro é sobre o financiamento das artes, que surgiu bem antes que o termo 'cultura' fosse utilizado.

"O conceito francês de culture apareceu como um nome coletivo para os esforços do governo no sentido de promover o aprendizado, suavizar e melhorar as maneiras, refinar o gosto artístico e despertar necessidades espirituais que o público até então não possuía, ou não tinha consciência de possuir."

A cultura tinha a vocação de abrir os olhos e estava totalmente confiada ao Estado. Primeiramente com a monarquia, depois com o governo revolucionário e todos os demais. Retoma ao conceito original de cultura, já abordado por meio de Bourdieu.

Sob a presidência de Charles de Gaulle, entre 1959 e 1969, foi criado na França o Ministério da Cultura. A intenção foi dar novo ânimo ao país, prejudicado na guerra. Sua cultura foi colocada como ponto alto e deveria ser disseminada para todo o resto do continente.

"A cultura conferiria prestígio e glória, em âmbito mundial, ao país que patrocinasse seu florescimento. Como disse François Chabot mais de meio século depois, num artigo sobre a difusão da cultura francesa pelo mundo, a tarefa de promovê-la pelo mundo, empreendida (embora não necessariamente com êxito) como o patrocínio da arte pelo Estado, 'continua a ser o motivo de uma profunda preocupação nacional, já que poucos fatores influem tão fortemente sobre a maneira como um país é percebido pelo mundo e sobre sua capacidade de falar e ser ouvido."


Cartaz de um dos inúmeros festivais de arte na França
 
A democratização da arte fazia parte da democracia da própria política. Houve forte incentivo aos artistas franceses, já que a ideia era a criação, e não a imposição de modelos previamente escolhidos por autoridades.

"A arte não é uma categoria administrativa, mas é, ou deveria ser, a moldura (cadre) da vida", foi a frase do presidente George Pompidou, entre 1969 e 1974, sobre o lema assumido no país, que prega a pluralidade cultural e a diversidade artística.

Este estímulo é favorável ou não? "Esse é mesmo um paradoxo, e um dos mais difíceis de resolver. Os gerentes devem defender a ordem que lhes foi confiada como a 'ordem das coisas', ou seja, o próprio sistema que os artistas leais à sua vocação devem reprovar, expondo assim a perversidade de sua lógica e questionando sua sabedoria. Como diz Adorno, a inata atitude suspeitosa da administração diante da insubordinação e da imprevisibilidade naturais da arte só pode ser um constante casus belli para os artistas; por outro lado, como ele não deixa de acrescentar, os criadores de cultura não podem passar sem a administração, quando, leais à sua vocação e desejando mudar o mundo (para melhor, se isso chegar a ser possível), desejam ser ouvidos, vistos e, tanto quanto possível, seriamente notados. Os criadores de cultura não têm escolha, diz Adorno. Precisam conviver diariamente com esse paradoxo."

Em outras palavras, há um consenso de que a a ajuda do Estado é bem-vinda e até necessária. Caberá ao artista escolher entre formas mais ou menos invasivas no gerenciamento de suas artes. O que não poderão fazer é escolher não ter esse gerenciamento.

"A verdadeira função do Estado capitalista ao administrar a 'sociedade dos produtores' era garantir um encontro contínuo e frutífero entre capital e trabalho - enquanto a verdadeira função do Estado ao presidir a 'sociedade dos consumidores' é assegurar encontros frequentes e exitosos entre os bens de consumo e o consumidor. Do mesmo modo, o foco do 'Estado cultural', um Estado inclinado à promoção das artes, precisa concentrar-se em garantir e colaborar para o encontro permanente entre artistas e seu 'público'. É nesse tipo de encontro que as artes de nossa época são concebidas, geradas, estimuladas e realizadas. É em nome desse tipo de encontro que iniciativas artísticas e performativas locais, 'face a face' precisam ser estimuladas e apoiadas. Como tantas outras funções do Estado contemporâneo, o patrocínio da criatividade cultural espera urgentemente o 'subsídio'."

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

meio sol amarelo


"Este aqui é o mundo, se bem que as pessoas que desenharam o mapa resolveram pôr a terra deles em cima e a nossa embaixo. Mas não existe um em cima e um embaixo, entende?"

Terminei de ler "Meio sol amarelo" e me perguntei "será que tem continuação?" Mas logo pensei "o fechamento (ou a falta de) não poderia ter sido melhor". Este é o terceiro livro da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie que leio. E já quero mais. A autora nos seduz com seus personagens. Estou com saudades de Olanna, Ugwu, Kainene, Richard e Odenigbo.

O livro é baseado na guerra civil da Nigéria, que aconteceu entre 1967 e 1970. Tentativa de dividir o país e formar uma nova nação, Biafra. O conflito, centralizado em dois grupos étnicos, ibos e hauças, foi extremamente sangrento, deixou milhares de mortos e chamou a atenção do mundo. Contudo, Chimamanda sugere que o recorte apresentado pela imprensa mundial vai na linha do "vemos apenas o que queremos", ou seja, utiliza alguns personagens para mostrar que os 'brancos' registravam apenas o que lhes interessava.

Temos o ponto de vista de três pessoas: Olanna, moça linda e rica, mas que opta por ter uma vida mais simples; Ugwu, jovem de aldeia que arruma um emprego na cidade na casa de um intelectual, o Odenigbo; e Mr. Richard (como é chamado o tempo inteiro), inglês que leva o sobrenome Churchill (sem parentesco) que se envolve com Kainene, irmã gêmea (não idêntica) de Olanna. Aprende a falar fluentemente o idioma ibo e luta para escrever um livro que retrate fielmente o que presencia.


Bandeira de Biafra, que traz um meio sol amarelo
A história começa com Ugwu chegando à casa de Odenigbo. Passa a conhecer um universo bem diferente do que tem em sua pequena aldeia. Encanta-se com a fartura de alimentos, com a geladeira e, sobretudo, com os livros, espalhados por todos os ambientes. As reuniões entre os amigos do 'Patrão' também chamam a atenção do garoto, que não perde a oportunidade de absorver tudo o que ouve.

Logo conhece Olanna, a namorada de Odenigbo. À princípio, receia que ela possa atrapalhar a rotina da casa. Mas sua beleza extraordinária e carisma o conquistam. Já ela, trava um conflito com a família. Os pais são donos de empresas bem-sucedidas. Mas Olanna não concorda com os meios ilícitos que utilizam em suas negociações. Subornos, propinas, privilégios. Nada muito diferente do que vemos por aqui, afinal. Também não tem um relacionamento muito bom com a irmã.

Richard deixa a namorada inglesa logo que conhece Kainene. Ela não tem a beleza da irmã. Mas é mais decidida e fria. Toca parte dos negócios dos pais, mas de forma independente, do seu jeito. Por sua vez, ele está na Nigéria disposto a escrever um livro sobre o que sente e vê. Mas sofre com as páginas em branco e as indecisões sobre o que realmente deve ser descrito. É apaixonado pela arte ibo, o que o leva a se integrar ao movimento pró Biafra.

Juntos, os três nos guiam pelo antes e o durante a guerra. A vida da classe média alta em contraste com os mais pobres. E, mais tarde, como todos tiveram que viver nas mesmas condições. Há descrições detalhadas das atrocidades cometidas por ambos os lados. Estupros, assassinatos em massa, mães perdendo filhos, fome, doenças e tudo mais. Se procura algo sutil, esqueça esse livro. Lembre-se também que não é ficção. Embora seja um romance, a autora partiu de pesquisas para nos dar uma ideia do que aconteceu em seu país. Tudo em nome de extremas ideologias políticas, mascaradas sob o pretexto de melhorar a vida dos que as seguem, mas que, no final, tornam-se irrelevantes. E só pioram. Tudo. Na Nigéria. Na Síria. Na Turquia. No Afeganistão. No mundo.