"Se não há amor, não só a vida das pessoas se torna árida, mas também as cidades."
A história de "A amiga genial" é envolvente. Daquelas que queremos mais e mais. Felizmente, tem mais. Esse é apenas o primeiro volume de quatro: a série napolitana de Elena Ferrante. Dela pouco sabemos, já que utiliza um pseudônimo. A identidade verdadeira nunca foi revelada. Sinceramente, para mim pouco importa. Desde que continue nos dando bons motivos para ler.
O livro mostra a vida de duas amigas. A narração é feita por uma delas, Elena Greco, a Lenu. Sob sua perspectiva conhecemos Lila, apelido de Raffaella Cerulo. O relato começa após a ligação do filho de Lila dizendo que a mãe desapareceu sem deixar rastro. Até suas fotografias sumiram, como se ela nunca tivesse existido. Lenu, então, resolve escrever sobre a relação das duas, iniciada há anos.
A amizade começou com Lenu seguindo os passos de Lila, num misto de admiração e inveja. Como temos apenas um ponto de vista, não sabemos as razões de Lila nas disputas que travam silenciosamente. Elas têm a mesma idade e moram no mesmo bairro em Nápoles, na Itália. Estão sempre juntas e, nesse primeiro livro, vamos acompanhá-las dos 10 aos 16 anos, entre as décadas de 50 e 60. Ao mesmo tempo, somos apresentados a muitos outros personagens, os integrantes das famílias Peluso, Carracci, Solara, Sarratore etc. Tantos que há uma lista logo no início do romance. Todos vizinhos e amigos das meninas. E encrenqueiros. Nunca tinha lido algo com tantas brigas. Desde criança eles se batem. Crescem e continuam apanhando, batendo e gritando. É o que aprendem em casa, afinal. Lei Maria da Penha passa longe dali. Teve até uma situação em que o pai joga a filha pela janela e tudo bem. Por vezes, cheguei a imaginar aqueles desenhos animados. Sabe quando alguém cai, fica achatado e logo volta ao normal? Isso enche Lenu de vergonha, que parece ser a única com controle emocional no grupo. O engraçado é que ficam um tempo de cara virada e logo tudo volta ao normal. Como se nada tivesse acontecido.
Com Lila a narradora vive um eterno dilema. Embora goste da amiga, torce para que as coisas não deem tão certo para ela. Não quer ficar atrás das conquistas da outra em nada. A rivalidade maior é nos estudos. Ambas são excelentes alunas, mas com perfis distintos. Lenu é a santinha. Lila, a encrenqueira. Sempre desafiando professores. Lila, porém, é obrigada a parar de frequentar a escola após a conclusão do ensino fundamental, o que a deixa revoltada. Secretamente, ela continua estudando sozinha e chega a ajudar Lenu quando esta, que pode seguir com os estudos, apresenta alguma dificuldade. Mais para frente é no ofício do pai, que é sapateiro, que vai encontrar consolo. A forma com que Lila nos é descrita também faz com que sintamos admiração por ela. De uma criança sapeca a uma moça brilhante, que mesmo não tendo a oportunidade de frequentar a escola entende o latim, o grego e consegue debater qualquer assunto. De uma criança feia e suja para uma moça linda que arrasa os corações dos moços. Tudo que faz, desde as coisas aparentemente mais banais, é com paixão. Diferentemente de Lenu, cuja vida é morna, segundo ela mesma. Tanto que vira e mexe não sabe por que está fazendo isso ou aquilo. Parece que sempre lhe falta algo que a amiga tem.
A narrativa da parte em que são crianças é uma delícia. Lá temos a inocência dos pequenos, a crença em bichos extraordinários, apenas a vontade de aproveitar o dia e as brincadeiras, mesmo entre os maliciosos. O resgate de duas bonecas no porão é quando Lila e Lenu tornam-se amigas. A descrição do que a boneca representa naquele instante serviria para minha infância. Aliás, ler tudo isso me deu certa nostalgia dos tempos de escola, das brincadeiras de rua e dos amigos que ficaram perdidos no tempo. Realmente está sendo muito gostoso acompanhar a vida dessas garotas. Vou imediatamente ao segundo volume :-)
"Quando se está no mundo há pouco tempo, é difícil entender que desastres estão na origem do nosso sentimento de desastre, talvez nem se sinta a necessidade de compreender. Os grandes, à espera de amanhã, se movem num presente atrás do qual há o ontem ou o anteontem ou no máximo a semana passada: não querem pensar no resto. Os pequenos não sabem o significado do ontem, do anteontem, nem de amanhã, tudo é isto, agora: a rua é esta, o portão é este, as escadas são estas, esta é a mamãe, este é o papai, este é o dia, esta, a noite. Eu era pequena e, no fim das contas, minha boneca sabia mais que eu. Eu falava com ela, ela, comigo."
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