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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

a perfumista de paris



"​​Estou de volta a Agra, e o calor é opressivo. É como se o sol estivesse nos castigando por alguma ofensa de que só ele tem conhecimento. Sofremos em silêncio, esperando por seu indulto."

Que livro lindo, maravilhoso. Daqueles que nos fazem sonhar e realmente sentir todos os aromas presentes no texto. Saí sabendo um pouco mais sobre a indústria do perfume e sobre Agra, na Índia. Também foi muito gostoso revisitar alguns lugares em Paris onde estive. Sem contar a trilha sonora de jazz. Até reuni as músicas citadas em uma playlist no Spotify. Aliás, estou ouvindo enquanto escrevo este texto.

O livro fecha a trilogia Jaipur, da indiana Alka Joshi. No primeiro, "A pintora de henna", acompanhamos a trajetória de Lakshmi, que, com apenas 17 anos, foge de um casamento abusivo e de sua aldeia natal, chegando a ser considerada a melhor artista de henna de Jaipur. No segundo, "O guardião de segredos de Jaipur", temos uma passagem de tempo, e o foco é em Malik, o garotinho que ajuda Lakshmi em seu trabalho e que se tornou praticamente um filho. Agora, depois de mais alguns anos, temos a jornada de Radha, a irmã de Lakshmi. Elas só se conhecem depois da morte dos pais, quando Radha tinha apenas catorze anos. Sua vida não foi nada fácil, pois era conhecida como a menina do mau agouro, afinal, a irmã fugiu no ano em que ela nasceu. E, depois, muitas coisas ruins aconteceram com sua família. Radha também foge da aldeia e das fofoqueiras que a acusavam de tudo que dava errado por lá.

Anos mais tarde, está em Paris, casada com um francês, mãe de duas garotinhas e prestes a se tornar uma grande perfumista. Mas há problemas em todas as esferas. O marido, que ela conheceu enquanto ainda estava na Índia, não aceita seu trabalho, exigindo que ela passe mais tempo com a família; ela começa a receber queixas da escola da filha mais velha, que está agredindo as coleguinhas, e, no trabalho, sente que alguém a está boicotando.

Felizmente, surge a oportunidade de trabalhar em um grande projeto que homenageará a obra Olympia (1863), de Édouard Manet. Sua missão é reproduzir a fragrância que traduz a essência da mulher retratada na pintura, e que, de certa forma, também a representa. Essa busca a levará à Índia, especificamente até Agra, onde encontrará o aroma que faltava para sua criação. Laços do passado, que ela sempre fez questão de cortar, serão reatados, junto com uma tormenta de sentimentos. Ela também precisará de coragem e muita determinação para as decisões que terão que ser tomadas.

Tudo é contado de forma inebriante, colocando o leitor – pelo menos eu me senti assim – dentro da história. Vale cada página. Não queria mais sair do livro.


"Fecho os olhos, pensando em Olympia. Em como ela foi indecifrável. O único ingrediente que estava faltando para mim: água, chuva, névoa. O próprio véu que torna difícil vê-la com clareza. É por isso que ela nunca foi valorizada, que foi mal compreendida. No olho de minha mente, estou misturando as notas de topo, notas de corpo e notas de fundo que isolei. E então acrescento esse novo — para mim — precioso ingrediente: mitti attar. O cheiro da chuva."

sábado, 17 de agosto de 2024

a biblioteca dos sonhos secretos


"Um sonho não pode “acabar” enquanto você estiver dizendo “um dia”! Ele vai continuar para sempre sendo um lindo sonho. Mesmo não se concretizando, creio que essa também é uma forma de vida. Sonhar sem ter um plano definido não é uma coisa ruim. Isso torna seus dias alegres."

E terminei mais uma história que nos deixa a pensar nas várias possibilidades que temos. Mas que acabam se esvaziando por nossos receios, acomodação, opiniões alheias e outros empecilhos que, na grande maioria das vezes, só existem em nossa cabeça.

Com o subtítulo "uma história sobre a magia dos livros e seu poder de conectar pessoas", este livro da escritora japonesa Michiko Aoyama nos leva a conhecer cinco personagens que não sabem bem como lidar com seus problemas (eles e o mundo, não?). Podemos dizer que cada capítulo é um conto e que todos se entrelaçam de forma sutil. A narrativa, cheia de rituais, repetições e mensagens sobre a importância do agir, lembra muito a série "Antes que o café esfrie", de Toshikazu Kawaguchi, inclusive, por também ter um local que é comum a todos. Lá, uma cafeteria escondida. Aqui, uma biblioteca, nos fundos de um Centro Comunitário em um distrito de Tóquio.

Toda vez que alguém, por vários motivos, é levado até lá, eles, num primeiro momento, se deixam encantar pela mulher grande e branca, quase transparente, como alguns descrevem. E depois ficam hipnotizados quando ela pergunta o que procuram. Nesse momento, surgem pensamentos sobre os dilemas individuais pelos quais estão passando. E ela, após uma breve conversa, digita rapidamente no teclado (tatatataata, os dedos praticamente somem enquanto faz isso) e imprime uma folha com as indicações de leitura. As primeiras referentes à pesquisa dos livros que foram buscar e, por último, uma sugestão que será o grande despertar. Junto, a pessoa ganha um brinde feito por meio da feltragem de lã. Há caranguejo, gato, globo terrestre, frigideira, aviãozinho.

A primeira história é sobre Tomoka, 21 anos, vendedora de roupas femininas. Ela trabalha em uma loja de roupas num grande centro comercial. Mas não vê sentido no que faz e se sente fracassada por ter saído de uma cidade pequena e ser uma simples vendedora na capital japonesa. Chega a julgar, secretamente, outra vendedora da loja que está há anos trabalhando no estabelecimento. O que vai levá-la à biblioteca é a busca por livros que ensinam a usar o Excel, pois acredita que desta forma encontrará um trabalho melhor em escritório. Mas acaba encontrando motivação para ter uma vida mais saudável e valorizar os contatos diários. Tudo por conta de um livro infantil que lhe é indicado: Guri to Gura [Guri e Gura], texto de Rieko Nakagawa e ilustrações de Yuriko Omura, publicado por Fukuinkan Shoten.

Ryo, 35 anos. Sua história começa em uma loja de antiguidades quando ainda era aluno do ensino médio. Infelizmente, a loja fecha e ele segue alimentando o desejo de ter algo parecido. A vida o leva a trabalhar em uma fábrica de móveis como contador. Ele namora uma moça mais nova que está empenhada em ter uma loja online para vender os colares que cria. Na biblioteca, vai em busca de livros que possam ajudá-lo a retomar o sonho de ter uma empresa, mas encontra um livro sobre plantas, que vai lhe mostrar que é possível encontrar o equilíbrio entre um sonho e o que a realidade nos apresenta. Para tanto, sua inspiração será o dono de uma livraria especializada em gatos. Curioso o quanto há de gato na literatura recente japonesa. Está aí um tema a ser estudado. Aqui o livro que levou para casa: Eikoku Oritsu Engei Kyokai to Tanoshimu Shokubutsu no Fushigi [O mistério das plantas: o melhor da Sociedade Real de Horticultura Britânica], de Guy Barter, tradução de Ayako Kita, publicado por KAWADE SHOBO SHINSHA.

"Havia gatos ali… Um deles, tigrado, dormia sobre uma almofada. Parecia com o gato de feltro de lã que ganhei da bibliotecária. Havia mais dois, outro tigrado e um preto, caminhando à vontade entre as estantes."

Natsumi, 40 anos, ex-editora de revistas. Esta foi uma das passagens que mais gostei. A protagonista é casada e tem uma filha pequena. Ao retornar da licença-maternidade, ela, que era editora de uma revista, foi enviada a outro posto de trabalho, sob a alegação de que, agora sendo mãe, não daria conta da carga de trabalho do seu cargo anterior. Isso a derruba, porque ama o que fazia. Enquanto isso, também enfrenta problemas em casa, já que as tarefas não são divididas com o marido, que não teve que abdicar de nada em prol da paternidade. Mas ela sempre guardou um sonho no coração, que era editar livros. A partir da leitura que lhe é sugerida pela bibliotecária, as coisas vão começar a caminhar nesta direção: Tsuki no Tobira [A porta da lua] e Shinsoban Tsuki no Tobira [A porta da lua (nova edição)], de Yukari Ishii, publicado por Hankyu Communications (primeira edição) e CCC Media House (nova edição).

Hiroya, 30 anos, desempregado. Ele gosta de mangás e sempre almejou viver por meio de seus desenhos. Mas até então nunca encontrou alguém que o apoiasse, pelo contrário. Vive com a mãe e, apesar de se envergonhar da sua situação, não tem forças para mudar. Resultado, vive de bicos e nunca se identificou com nenhum trabalho. Vai parar na biblioteca porque a mãe pede que ele vá ao Centro Comunitário fazer algumas compras. E lá se depara com a leitura que vai lhe inspirar a seguir adiante. O primeiro passo será ele próprio trabalhar no Centro Comunitário. O livro: Visual Shinka no Kiroku Darwintachi no Mita Sekai [Registro da evolução ilustrado: o mundo visto por Darwin e seus pares], de David Quammen e Joseph Wallace, tradução de Masataka Watanabe, publicado por POPLAR.

Masao, 65 anos, aposentado. Após passar quatro décadas na mesma empresa, fica completamente desorientado com a aposentadoria. Ao contrário dele, sua esposa está sempre disposta a encontrar pessoas e a experimentar novas atividades. E é ela quem vai incentivá-lo a aprender o jogo de go, para que seu tempo livre seja mais agradável. Nesta jornada, ele lamenta o tempo que perdeu com a filha enquanto priorizava o trabalho e outras agendas. Mas, como tudo, sempre haverá a possibilidade de se redimir. E isso acontece. Além dos diálogos com a filha, gostei da reflexão que Masao faz ao se deparar com caranguejos vivos que estão à venda em um aquário, espremidos, com pouca água e se mexendo como se estivessem a enviar algum sinal. E, de fato, há. Na placa, está escrito que eles podem ser comprados para serem consumidos ou para serem adotados, o que o comove e o faz pensar sobre sua própria condição dentro do mundo corporativo. Claro que o que viveu está longe da aflição que os bichos estão passando, mas usar os animais como metáfora de nossas questões psicológicas é algo bem comum na literatura. Vou deixar o trecho completo abaixo. Ah, ao ir atrás de livros que possam ensiná-lo a jogar o go, lhe é oferecida uma obra poética com animais: Genge to Kaeru [Astrágalos e sapos], de Shimpei Kusano, publicado por Gin-no-Suzu.

"Ao lado do congelador com porta de vidro onde estavam os cortes de peixe e os mexilhões, havia uma pequena mesa com um aquário quadrado de plástico transparente. Percebi algo se movendo. Olhando bem, havia caranguejos de água doce dentro. Olhei-os com atenção, me lembrando do caranguejo de feltro que tinha recebido de brinde da bibliotecária. Devia haver uns cinquenta ou sessenta deles. Submersos em pouca quantidade de água, eles se apertavam uns contra os outros. Um deles movia as pinças ligadas ao corpo achatado como se me enviasse algum tipo de sinal. Ao erguer os olhos, levei um susto. Em uma placa de isopor estava escrito em grandes letras vermelhas “Caranguejo de água doce”, e abaixo delas, em letras pretas, um pouco menores: “Para fritura! Para ser seu animal de estimação!” Animal de estimação? Ali era o setor de alimentação. Aqueles caranguejos deveriam estar sendo vendidos como alimento. Fiquei atordoado quando lembrei que havia a opção de adotar um deles como “pet”. Ou você os devora ou os ama. Os caranguejos ali estavam em uma encruzilhada de caminhos opostos. Senti minha garganta apertar ao imaginar o destino daqueles caranguejos dentro do aquário de plástico. Quem era eu perante minha empresa? Enquanto estava dentro da caixa, todos me bajulavam como gerente-geral, mas por fim acabei devorado pela organização corporativa. Examinando os sashimis, Yoriko se virou para mim. – Qual você prefere, carapau ou cavala? Ou quem sabe caranguejos? Yoriko os observou com profundo interesse. – De jeito nenhum – afirmei com uma voz embargada. – Nem pensar, ainda estão vivos. Não vamos comê-los. – Então que tal criá-los? – perguntou Yoriko em tom de brincadeira. Hesitei. Os caranguejos estariam felizes vivendo confinados em um aquário tão apertado? Não prefeririam estar enredados no torvelinho da cadeia alimentar? Ou esse seria apenas um pensamento racional da minha mente humana?"

Vale a leitura. Certamente, cada leitor irá receber as histórias de uma forma diferente.

"Cada um encontra um significado próprio no brinde que dou de presente. O mesmo acontece com os livros. Os leitores fazem suas próprias conexões com as palavras, independentemente da intenção do autor. Assim, cada leitor obtém algo único."

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

três



"Nunca sabemos nos comunicar
com aqueles em quem não acreditamos."

Quando terminei a leitura de "Três", da francesa Valérie Perrin, o livro continuou comigo. Escrevo este texto enquanto ouço, no Spotify, uma das playlists com as referências musicais deste livro. E fico a imaginar o quanto deixei passar da história para não perceber o que estava acontecendo com um dos personagens. O romance pode ser considerado uma homenagem à música dos anos 80 e 90, especialmente ao rock e ao pop, incluindo músicas francesas, afinal, se passa todo na França, sendo que a maior parte no interior, em uma pequena cidade chamada La Comelle. Há também passagens em Paris.

Além da amizade, que veremos mais adiante, outra questão abordada é a proteção dos animais. Embora não seja o mote principal, é referenciada por meio de uma das protagonistas que administra um abrigo e é vegetariana. Tudo é colocado de uma forma bem sutil, o que achei interessante.

O enredo mostra três amigos inseparáveis, que se conhecem aos dez anos. No primeiro dia de aula daquele ano letivo, acompanhamos o momento em que aguardam o anúncio de qual sala irão ficar, se na da professora madame Bléton ou na do professor monsieur Py, considerado um carrasco. Ninguém quer ficar com ele, o que deixa todos bem apreensivos. Nina Beau, Étienne Beauclair e Adrien Bobin acabam juntos justamente com o temido professor, que prejudicará fortemente um deles. Essa passagem já dá indícios de que é Nina quem será o elo do trio. Percebendo a insegurança, ela segura na mão dos dois garotos e, juntos, entram na sala. E esta será a forma como serão vistos por muitos anos: ela no meio, Adrien à direita e Étienne à esquerda. Temos aquele estilo de sala bem comum nos anos 80, com dois lugares; Nina e Étienne sentam juntos e Adrien fica logo atrás.

Enfim, o entrosamento é imediato. Passam a fazer tudo juntos. As famílias se aproximam. Um ponto interessante é que a narrativa não começa com eles. Ela é intercalada entre os pontos de vista de cada um dos personagens. E começa com uma quarta personagem, Virgínia, que os observa de longe. Diz que os três estavam sempre juntos e próximos dela, mas nunca a enxergaram. Ela acompanhava as brincadeiras, os passeios. Por vezes, chegava a esbarrar neles e, ainda assim, não a viam. É justamente aí que vamos nos surpreender. Com o passar dos anos, eles acabam se separando, sem realizar o plano de irem juntos à Paris e de formarem uma banda musical. O reencontro será anos mais tarde, reforçando que algumas amizades são eternas.

"Hoje de manhã, Nina me olhou sem me ver. Seu olhar escorregou como as gotas de chuva na minha capa impermeável, logo antes de ela desaparecer dentro de um canil. Estava caindo uma tempestade."

Nina é vegetariana e amiga dos animais. Ela foi cuidada desde pequena pelo avô. Sua mãe a abandonou recém-nascida. Ela tem talento para o desenho, mas vai abdicar desse dom a favor de um casamento. Adrien mora com a mãe e tem pouco contato com o pai. É o mais tímido dos três. Gosta de escrever e, em Paris, se revelará um grande escritor. Étienne é o galã, mais extrovertido, bom nos esportes, mas não muito afeito aos estudos. Sua família tem dinheiro, o que o deixa em uma situação relativamente confortável. Ele tem uma irmã mais nova, Louise, que também será importante para a trama.

Como eu disse, o livro faz menção sutil à proteção dos animais. Isso se dá por meio de Nina, que sempre gostou de bichos, especialmente cachorros e gatos. É justamente num abrigo de animais abandonados que ela própria, ao fugir de um relacionamento abusivo, irá se refugiar. Tempo necessário para rever sua vida, escolhas e acolher definitivamente os animais em sua vida. Aliás, a diretora do abrigo que a recebe também precisou fugir e foi parar lá, assim como Simone, voluntária que também encontrou neste lugar o motivo para continuar vivendo após perder o filho.

Contudo, a passagem mais marcante deste traço de Nina se dá num diálogo dela com a mãe, no seu leito de morte. Sem ter muito o que dizer àquela mulher que lhe é estranha, mas que ao mesmo tempo sente-se impelida a amparar naquele momento, ela relata o que é cuidar de um abrigo e o dilema entre continuar ali, pelo amor e pelo olhar dos animais, e o fardo que isso representa.

"Cuidar de um abrigo é um sacerdócio." Sempre dá pra achar o que é gratificante e bom dentro disso. Aguentar o tranco. A gente faz pelo olhar deles. Amar os animais, mas sobretudo não ter adoração por eles, senão você morre de tristeza. Tem muitos momentos no ano em que eu fico com vontade de largar tudo. Abandonar os abandonados. Achar um emprego tranquilo, em outro lugar que seja limpo, quente, seco e silencioso. Onde não vou mais ouvir os cachorros latindo ou cheirando minha bunda quando vou passear com eles."

Todos os personagens que se aproximam dos animais foram, de algum modo, abandonados. E se identificaram com cães e gatos ali deixados. Há, de certa forma, uma aproximação por estarem na mesma situação. Para além disso, há ainda a questão de espécies companheiras e a necessidade de amor incondicional. Talvez seja por isso que, lá pelas tantas, Nina relata como é difícil deixar um cachorro partir quando adotado.

Para a filósofa e zoóloga norte-americana Donna Haraway, que, dentre outros temas, estuda as interações entre humanos, animais e máquinas, é comum, nos Estados Unidos (e aqui no Brasil e em outros vários países também), atribuir aos cachorros a capacidade de "amar incondicionalmente". De acordo com essa crença, pessoas com problemas diversos encontram consolo no "amor incondicional" de seus cachorros. Em troca, os amam como se fossem filhos. Haraway argumenta que os cães e humanos têm um vasto repertório de modos de se relacionar, e a crença no amor incondicional pode ser nociva, principalmente dentro da cultura consumista contemporânea. O amor verdadeiro e respeitoso envolve reconhecer e honrar as diferenças significativas entre as espécies, ao invés de projetar fantasias humanas nos cães. Através do exemplo de J.R. Ackerley e sua cadela Tulip, Haraway ilustra que uma relação amorosa genuína entre humanos e cães é caracterizada por um esforço contínuo de entender e atender às necessidades um do outro, reconhecendo a alteridade e a intersubjetividade presentes na relação.

Outro ponto importante é que, desde criança, Nina, de algum modo, já carregava a percepção da liberdade tirada dos animais. Isso se dá durante uma visita com o avô ao zoológico. A princípio, ela fica eufórica com o passeio, porém, ao retornar para casa, o avô pergunta do que ela mais gostou. E a resposta é esta: "— Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."

Isso porque, logo ao chegar ao zoológico, ela se envergonha ao ver os animais em cativeiro. A presença da multidão e a ausência dos pais a fazem se sentir deslocada e triste. Ela percebe a tristeza dos animais presos e, de algum modo, se identifica com o cativeiro deles. Chama-lhe a atenção a pantera negra que, diante de todos os olhares, tenta buscar a saída ou o mínimo de privacidade com seu filhote. Todos deveriam ler essa passagem, que explicita bem a angústia dos animais presos. E, assim, de forma sutil, Perrin nos fala sobre a importância de uma convivência respeitosa entre as espécies.

"Nina vê uma primeira placa trinta quilômetros antes de chegarem: “Pa… Parque de animais”. Ela dá uma pulo de alegria e diz ao avô: — Vô, já sei aonde a gente tá indo! Quanto mais se aproximam, mais fotos ela vê de animais e de carrosséis em grandes painéis coloridos. Ela se agita. Se remexe. Pierre Beau sorri, ele acertou em cheio. Na região, todos falam do parque de animais como se fosse o paraíso: carrosséis, um trenzinho que dá a volta no parque, batata frita e algodão-doce. Animais como não se vê nunca: hipopótamos, pumas, elefantes, lobos, macacos, girafas. Ao redor de Nina, famílias, risos, alguns choros, malcriações de crianças. Com um balão na mão, ela observa os outros observando os animais. Nina passa muito tempo isolada. Vê as coisas e as pessoas à distância. Ela está de mãos dadas com o avô. A mão dele é como uma ilha. No entanto, ela se sente mal. Está com dor de cabeça, a barriga pesada, uma fraqueza nas pernas. Seria por causa da multidão? Do calor? Da ausência dos pais? De seus pais? As pessoas em volta, as que têm sua idade, estão encaixadas entre um pai e uma mãe. Ela ouve: “Mamãe! Vem ver!”, “Papai! Olha!”. Ela própria nunca disse essas palavras. Dentro de fossos, atrás de barreiras de vidro ou de grades, ela acha que os animais se parecem. É como se o cativeiro os uniformizasse, lhes desse os mesmos comportamentos, os mesmos olhares. Uma pantera negra, com o filhote na boca, anda de um lado para outro dentro da jaula, buscando uma saída diante do olhar curioso e fascinado dos visitantes. Não tem nenhum canto onde possa se esconder. Nenhuma intimidade. Entregue, submissa, dissecada. Nina tem vergonha. O que diverte os outros a paralisa. É pequena demais para entender o que aquela vergonha significa. Só sente que não é igual. Que algo ruge dentro dela. Fica aliviada ao subir no trenzinho que dá a volta no parque a dois quilômetros por hora. Adormece apoiada no ombro do avô, exausta de tudo que está sentindo desde que chegou naquele lugar. — Quer ir ver os lobos antes de ir embora? — pergunta o avô, segurando sua mãozinha, a dele morna e macia. — Não, estou com medo. Ela mente. Nina nunca teve medo de nenhum animal. Fica aliviada quando entram de novo no carro e pegam a estrada. Fica aliviada de dar as costas para aquele lugar. — Gostou? — Gostei. Obrigada, vovô. — Do que você mais gostou? Das girafas ou dos leões? — Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."


Algumas músicas mencionadas no livro

Cranberries - "Zombie"
A-ha - "Take on Me", "The Sun Always Shines on TV"
Cyndi Lauper - "True Colors"
Madonna - "La Isla Bonita"
Indochine - "La vie est belle", "Un jour dans notre vie", "Tes yeux noirs", "Canary Bay", "Troisième sexe", "Karma Girls"
The Cure - "Boys Don't Cry", "Charlotte Sometimes"
Depeche Mode - "I Feel You"
Gloria Gaynor - "I Will Survive"
Donna Summer - "I Feel Love"
Eruption - "One Way Ticket"
Nirvana - "Smells Like Teen Spirit"
William Sheller - "Un Homme Heureux"
Étienne Daho - "Le Grand Sommeil", "Corps et armes", "Mythomane"
INXS - "Need You Tonight"
The Christians - "Words"
David Bowie - "Rebel Rebel"
2 Unlimited - "Let the Beat Control Your Body"
Pixies - "Where Is My Mind"
Pierre Perret - "Mon P'tit Loup"
Françoise Hardy - "Il ne dira pas"
Zazie - "Cow-boy"
Cock Robin - "The Promise You Made"

domingo, 4 de agosto de 2024

a vegetariana


"Onde já se viu gente que não come carne hoje em dia?!"



"A Vegetariana", da sul-coreana Han Kang, pode nos levar a uma falsa interpretação se considerarmos apenas o título. O livro não trata de vegetarianismo, defesa dos animais ou alimentação saudável. Publicado em 2007, o romance explora os delírios daqueles que não conseguem se adaptar aos padrões estabelecidos pela sociedade. Essa definição simplista, contudo, não captura a profundidade da narrativa de Kang, que nos deixa estarrecidos.

A vegetariana do título é Yeonghye, que, de repente, decide parar de comer carne. Até então, ela passava despercebida por todos, inclusive pelo marido, que só se casou com ela por considerá-la excessivamente comum, sem atrativos ou ambições, e que não competiria com suas próprias questões. Ele relata que não precisaria se esforçar para conquistá-la.

O romance é dividido em três partes, com narrativas sobre a protagonista feitas pelo marido, cunhado e Inhye, sua irmã mais velha. Só ouvimos sua voz nos poucos diálogos que mantém dentro do ponto de vista dos demais personagens. Há ainda algumas passagens oníricas em primeira pessoa, mas, de modo geral, sua suposta alucinação é percebida apenas através dos olhos dos outros.

O marido conta que ela passou a ser especial somente quando a viu jogando fora todas as carnes da geladeira. Até então, era apenas uma pessoa pacata e calada, sem nada que a destacasse. A decisão de parar de comer carne é acompanhada por um comportamento cada vez mais recluso.

"Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. Para ser bem franco, não me senti atraído por ela na primeira vez em que a vi. Estatura mediana. O cabelo não era nem comprido nem curto. Tinha a pele levemente amarelada, as maçãs do rosto um pouco pronunciadas. Vestia-se de forma neutra, como se tivesse algum tipo de receio de se destacar. Calçando um par de sapatos pretos bastante sem graça, ela se aproximou da mesa em que eu a esperava. Não andava nem rápido nem devagar, sem firmeza, mas também sem muita fragilidade."

Ele se constrange, sobretudo, quando precisa levá-la a eventos sociais do trabalho. Em uma dessas ocasiões, sente vergonha ao ver como julgam a esposa por seus hábitos excêntricos. Além de vegetariana, ela também não usa sutiã, por exemplo.

"A primavera chegou, e minha mulher continuou assim. Passamos a comer somente verdura pela manhã. Até parei de reclamar. Quando uma pessoa muda de forma radical, não há outro remédio senão segui-la."

O ápice é quando há um jantar na casa da irmã e o pai se revolta, enfiando goela abaixo na moça um pedaço de carne. Como ela resiste com toda sua força, ele a esbofeteia. Yeonghye, então, corta seus pulsos na frente de todos. Curioso ou triste é ver que ninguém naquele ambiente fica do lado dela: mãe, marido, irmão, irmã, cunhado. A comoção, se é que podemos assim chamar, só vem quando o sangue jorra.

Na segunda parte, a história é sob a ótica do cunhado, marido da irmã. Ele vive para sua arte, que ninguém entende. No momento da loucura da cunhada, a quem pouco prestou atenção até aquele jantar, está num período de bloqueio criativo. Mas o incidente o reanima, principalmente quando a esposa diz que a irmã tem uma mancha de nascença nas nádegas. E isso vira uma obsessão. Ele só pensa na tal mancha e não sossega até que finalmente a vê. Para tanto, usa a arte. Chama a cunhada para fazer parte de uma performance artística na qual seu corpo será todo pintado de flores. Um amigo chega a participar, mas desiste quando vê que estão indo longe demais. E, de fato, foram.

"Foi nesse instante que lhe veio a imagem de uma flor azul-esverdeada, da cor do mar, saindo do meio das nádegas de uma mulher. A possibilidade de sua cunhada, irmã mais nova de sua esposa, ainda ter a mancha mongólica na bunda o intrigou. Inexplicavelmente, ele associou a informação à ideia de homens e mulheres, com flores pintadas pelo corpo, copulando, formando em sua cabeça uma clara relação de causa e efeito."

O fim dele será melancólico, refletindo a vida medíocre que leva. Aliás, cabe ressaltar que o marido da protagonista admira secretamente a cunhada. Assim como o marido de Inhye irá desejar, sob aspectos questionáveis, Yeonghye. Será ele, mesmo que com intenções duvidosas, o único que reconhece a profundidade de sua transformação.

"Vendo-a aceitar sem resistência todo aquele processo, considerou-a um ser sagrado, nem humano nem animal, ou talvez um ser entre o vegetal, o animal e o humano, tudo ao mesmo tempo."

A terceira parte é contada por Inhye, que, apesar de ser vista como bem-sucedida, ponderada e que sabe conciliar todas suas funções, tem grandes ressentimentos. E muito diz respeito à irmã mais nova, que nunca conseguiu cuidar, de fato. Caberá a ela acompanhar o declínio físico de Yeonghye.

Ambas carregam feridas da infância marcada por um pai autoritário e violento, o que se torna evidente no depoimento de Inhye, que lamenta não ter conseguido proteger a irmã como gostaria. Ela recorda que o irmão aliviava a tensão batendo em outros meninos, enquanto ela se mantinha sempre obediente. Yeonghye, por sua vez, permanecia em silêncio. Somente mais tarde, compreende que esse silêncio era a forma que encontrou para se rebelar. Recorda da pequena Yeonghye querendo se perder na floresta.

Ao seguir as regras, Inhye cumpria o papel que lhe era destinado, mas isso a deixou exausta. Em um momento de crise, ela foge para as montanhas, onde experimenta por um instante o vislumbre da liberdade, mas retorna, principalmente por causa do filho. Agora, carrega a culpa por ter quase abandonado tudo. Esta é a parte mais intensa do romance, com explosão de sentimentos, vontades, conflitos e muita, muita dor. Mas ela precisa aguentar mais um pouco, como o marido pedia e como a irmã sugere, já nos momentos finais. Quem sabe esta não é a chance de ajudar a irmã mais nova, deixando que ela, finalmente, parta, tornando-se a árvore que acredita ser.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

O devir-vegetal

A jornada de Yeonghye pode ser compreendida por meio do conceito de "devir", discutido por Deleuze e Guattari, que implica um processo contínuo de metamorfose. Durante sua internação em um sanatório, ela foge e mais tarde é encontrada na floresta, imóvel, como se fosse uma árvore.

"Encontraram-na sem se mexer, de pé em um barranco recôndito e distante da mata, como se ela fosse uma das árvores de tronco grosso sob a chuva."

Aos poucos, para completamente de comer, aceitando apenas água. Seu corpo definha enquanto sua irmã implora para que ela coma, chegando a levar frutas e seus pratos favoritos, mas nada a faz mudar de ideia. Yeonghye afirma categoricamente que só precisa de água e de ficar de cabeça para baixo, pois, afinal, as árvores são assim. A vegetariana, neste sentido, é essa mulher vegetal, em processo de metamorfose decorrente de seus sonhos com carne, sangue, assassinato e passado traumático. Para suportar, só lhe resta vegetar, criar raízes com o que há de mais seguro: a natureza e vida que pulsa com toda a intensidade.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

Assim como Gregor Samsa, de Franz Kafka, que se transforma em um inseto em seu quarto, para o espanto de sua família, tanto no autor tcheco quanto na autora coreana, a realidade dos personagens é difícil de ser compreendida. Jamais saberemos o que realmente se passa no corpo e na mente desses personagens repletos de idiossincrasias.

"Tenho alguma coisa entalada na boca do estômago. Não sei o que é. Mas está sempre aqui. Mesmo depois de parar de usar sutiã, não deixei de sentir esse incômodo. Por mais que respire fundo, esse aperto no peito não passa. Gritos e choros se sobrepõem e ficam encravados aqui. É por causa da carne. Comi carne demais. Todas essas vidas estão entaladas aqui. Tenho certeza. Sangue e carne foram digeridos e se espalham por todos os cantos do meu corpo; os resíduos foram colocados para fora, mas as vidas insistem em obstruir o plexo solar."

Representação dos animais

Importante destacar alguns aspectos relacionados aos animais no livro. O primeiro diz respeito à própria negação da animalidade por parte de Yeonghye ao se ver como vegetal, e todo seu esforço para se transformar em árvore.

No entanto, a descrição dos sentimentos e pensamentos de Yeonghye revela um paradoxo profundo em sua relação com a carne. Por um lado, ela rejeita completamente o consumo de carne, desejando se transformar em uma forma de vida vegetal, pura e não-violenta. Por outro lado, ela sente um desejo visceral e incontrolável por carne, manifestando-se em pensamentos violentos e físicos, como a saliva acumulando em sua boca ao passar por um açougue. Ela pensa em esganar uma pomba e o gato do vizinho. E ela, efetivamente, mata com uma mordida um passarinho durante sua primeira internação. Aqui não cabe entrar em uma dicotomia entre ser isso ou aquilo. Somos complexos, como diria Edgar Morin. Somos natureza, somos cultura.

Outro ponto a ser destacado é o utilitarismo dos animais. Percebemos isso na reação extremamente exagerada de todos quando confrontados com a decisão da personagem de parar completamente com o consumo de carne e seus derivados. O pai chega a enfiar, à força, um pedaço de carne de porco na boca da filha, evidenciando da pior maneira possível a não aceitação de um cenário diferente. E o porco aqui é apenas isso: alimento. Estamos dentro de uma sociedade carnívora, que vê na carne a principal fonte de proteínas e, de algum modo, de ascensão social. Tanto que nas eleições de 2022 para presidente do Brasil, a picanha virou termômetro para avaliar o desempenho dos dois candidatos no segundo turno, conforme observamos na reportagem do Poder 360, Entenda a “guerra da picanha” travada por Lula e Bolsonaro.

Em terceiro lugar, temos o cão que a mordeu quando criança. O que vem depois foi muito difícil de ler. A narrativa de Kang rasga nossa alma. O cachorro foi brutalmente maltratado pelo pai. Dói imaginar o seu sofrimento. E dói mais ainda saber que isso é deveras comum, não só na Coreia do Sul, como no mundo inteiro. Para finalizar, ele é preparado e servido para a jovem Yeonghye. Diz-se que seu ferimento só será curado se ela comer a carne daquele que a feriu. Vale ainda ressaltar que não há estranhamento em comer cachorro. Somente agora, em 2024, foi aprovada uma lei que proíbe o consumo de carne canina, a valer a partir de 2027.

Por fim, os sonhos. São eles o estopim para o desenrolar de Yeonghye. Ela sonha com pedaços enormes de carne. Vê nas mãos sangue fresco dos pedaços que ela comeu. Em seus pesadelos vê crânios e olhos ferozes de animais, que parecem sair de dentro dela. Ao mesmo tempo, ela se vê assassinando. Seriam animais humanos? Tudo se confunde nessa animalidade da qual ela tenta fugir. E é justamente esta tensão que constitui o humano, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, que estuda a relação dos animais e dos humanos em suas obras. Nós só podemos nos afirmar como humanos ao transcender e transformar a animalidade que nos fundamenta. Essa transformação ocorre através de uma ação de negação, na qual tentamos dominar e, eventualmente, superar nossos instintos e características animais. O conflito interno de Yeonghye, portanto, não é apenas pessoal, mas carrega o significado de ser humano.

"O homem existe historicamente apenas sob esta tensão: ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade."
(GIORGIO AGAMBEN, em O Aberto)


"Era um bosque escuro. Não havia ninguém nele. Machuquei o rosto e lanhei os braços ao passar pelos arbustos. Tinha certeza de que estava acompanhada de outras pessoas. Acho que me perdi sozinha. Fiquei com muito medo. Sentia frio. Atravessei um arroio congelado e encontrei uma construção iluminada que mais parecia um celeiro. Passei por uma cortininha de palha, e então eu vi. Centenas de pedaços de carne, uns pedaços enormes, estavam pendurados em sarrafos. De alguns deles pingavam gotas de sangue vermelho ainda fresco. Abri caminho por incontáveis pedaços de carne, mas não conseguia encontrar a saída do outro lado. Meu vestido branco ficou completamente encharcado de sangue. Não faço ideia de como saí de lá."