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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

david copperfield



"Seria impossível traçar uma a uma todas as fases dolorosas que atravessei na minha desgraça. Existem sonhos que só podem ser contados de modo indeciso e imperfeito; e quando quero recordar essa época da vida, parece-me que mergulho num desses sonhos indescritíveis."



"David Copperfield", de Charles Dickens, foi a melhor leitura que fiz nos últimos tempos. Foram mais de mil páginas devoradas em menos de um mês. Comecei a ler pouco antes do Natal e um pouco depois do ano novo já estava economizando as páginas, com saudades das personagens que tanto me cativaram. A começar pelo próprio Copperfield, passando por sua excêntrica tia, Betsey Trotwood, o amigo dela, Mr. Dick, Peggotty, a empregada que, de certo modo, assume o papel de sua mãe (as duas chamam-se Clara), e muitos outros que passaram pelo caminho do protagonista durante sua jornada.

A história começa pouco antes do seu nascimento. Seu pai morreu, deixando Clara, a mãe, grávida. No dia em que veio ao mundo, conhecemos Betsey, que chega com toda a sua agitação esperando a pequena Betsey nascer. Sim, ela tinha certeza que nasceria uma garota e que caberia a ela a guarda. Porém, quando o médico anuncia tratar-se de um menino, ela simplesmente pega suas coisas e vai embora, completamente decepcionada. Obviamente que não consegui traduzir o lado cômico deste capítulo. Tanto o médico quanto Clara tinham medo da tia. O que ela falava era uma ordem. Ao escrever este parágrafo, consigo visualizar as feições de ambos diante da tia temperamental. Mas, acreditem, é hilário.

Aliás, o humor está presente em toda narrativa, mesmo sendo um dramalhão. O que este menino vai sofrer não é brincadeira! Depois dos primeiros anos de sua vida, relativamente alegres com a mãe e Peggotty, o inferno chega junto com o padrasto. A mãe casa-se novamente e leva para casa não só o homem que seria o carrasco de David, mas também a cruel cunhada, que será uma das grandes responsáveis por boa parte do sofrimento do pequeno. Castigos, tapas e outras formas de repreensão passam a fazer parte de seu cotidiano. Secretamente, sonha com os dias em que tinha apenas a mãe e Peggy. Enquanto isso, a mãe engravida e, nitidamente, entra em depressão. Não consegue desafiar o marido e a cunhada e sofre, em silêncio, com a situação. O consolo de David são os dias em que passa na casa barco da família de Peggy e com a pequena Emily, sua primeira paixonite (outra que sofrerá muito, preparem-se). Mas o que era ruim fica pior. Ele é mandado para um colégio interno, um dos piores do mundo. Além do diretor que não presta, acaba se envolvendo com um amigo que só quer tirar proveito de suas boas intenções. Não demora muito e a mãe morre. Para não ter que lidar com os planos que o padrasto tinha para ele, foge. Começa, então, sua maratona de mais sofrência. Com apenas oito anos, atravessa a pé o país, passa fome, trabalha, envolve-se com trapaceiros até que reencontra a tia. E não acaba por aí. Tem muito mais história pela frente, muitas cenas emocionantes e até passagens que lembram um thriller. Foi o melhor romance de formação que já li e que, certamente, entrou para a lista dos meus livros favoritos da vida. Leiam. Além dos nomes que já citei, muitos outros vão lhe cativar. Aqui vocês também vão encontrar a passagem mais bonita da literatura: o capítulo "os emigrantes", um presente para a alma.

Tentei, mas não consegui assistir a nenhuma das versões cinematográficas. Apesar de todo o amor que tenho pelo cinema, acredito que nenhuma direção estará à altura do texto que li :-)


"O espetáculo que se me deparava era tão estranho, a obscuridade me parecia tamanha, tão limitado o espaço, que a princípio não pude notar coisa alguma; depois meus olhos foram se habituando àquelas sombras e eu me senti como num quadro de Van Ostade. Viam-se de permeio com as vagas, cordames e relingas do navio, redes, macas, caixas, canastras e barricas que constituíam a bagagem dos emigrantes; algumas lanternas clareavam a cena, e mais ao longe a pálida luz do dia penetrava por uma vigia. Os grupos se apertavam. Travavam-se novas amizades; velhos amigos se despediam; falava-se, ria-se, chorava-se, comia-se, bebia-se. Uns se ocupavam em arranjos, outros vogavam desolados. Havia crianças que começavam a experimentar a vida com oito dias apenas e velhos que pareciam ter apenas mais oito dias de vida. Naquele pequeno espaço tinham se achado meios e modos de acumular exemplares de todas as idades e estados."

sábado, 9 de janeiro de 2021

minha vida não tão perfeita




“Um dia minha vida vai ser tudo aquilo que eu posto no Instagram. Um dia ela vai ser!”


Está aí um romance que me apresentou uma nova forma de hospedagem, o glamping, espécie de acampamento de luxo. E se for como apresentado em “Minha vida não tão perfeita”, de Sophie Kinsella, eu topo. O cenário é o interior da Inglaterra, com todos os seus campos verdes e temperatura super refrescante. Leia-se: frio, frio!! Mas cá entre nós: até a cabana precisa ser glamourizada?

Embora o livro seja despretensioso, traz algo que permeia nossa vida: as aparências. As redes sociais acentuaram a necessidade das pessoas em mostrar um lado que não existe em suas vidas. Mas que almejam e que gostariam que fosse real. Basta um ângulo bacana para termos uma foto com apenas um pedacinho do nosso cotidiano, um recorte que vai iluminar nosso dia, nos garantindo, ao menos, algumas curtidas. O cenário verdadeiro é feio, bagunçado, sujo, mas desfocando aqui, colocando uma flor e um bom filtro temos a imagem perfeita. E é justamente isso que vamos postar.

A racionalidade neoliberalista que rege, mais que a economia, nosso comportamento, diz que não podemos ter nada menos que sucesso: profissional, vida pessoal, padrões de beleza, de consumo e, além de milhares de outras referências, que isso seja mostrado nas redes sociais. Afinal, algo só acontece se estiver em nosso perfil. Recomendo muito a leitura de um livro que nos mostra o desgaste mental desse comportamento: “A nova razão do mundo, dos franceses Pierre Dardot e Christian Laval. A leitura nos leva a refletir sobre como incorporamos, mesmo sem querer, os valores do neoliberalismo em nosso dia a dia. A lógica aplicada é a da concorrência a qualquer preço. Não importa o que seja feito, o importante é sempre sair na frente. E, claro, isso vale para as visualizações de tudo o que colocamos on-line.

Justamente por isso, nossa protagonista, cria uma vida paralela no Instagram. Sua vida real é uma pindaíba. Mora num quarto minúsculo, com uma rede acima da cama que serve de armário, atravessa todos os dias Londres em vagões lotados do metrô para chegar ao emprego, onde é colocada de escanteio pela equipe composta de panelinhas e chefes abusivos. Agora, nas redes sociais, joga fotos lindas de cafés (que não pode beber), de casas em tom pastel, da movimentação cultural da capital inglesa e tudo com aquela vibração de quem fez a escolha certa ao sair do interior para a Londres que sempre sonhou. Aliás, até muda seu nome, pois Kate parece pobre e sem estilo. Passa a assinar Cat Brenner.

“Tá bom, vou falar logo: eu vivo entrando em cafés caros à procura de fotos dignas de serem postadas no Instagram. Tem algum problema nisso? Não estou dizendo que bebi o chocolate quente. Estou falando que fiz assim: Olha, chocolate queeente! Se as pessoas acharam que era meu... Bom, aí é com elas.”

Enfim, Cat ou Katie, aos poucos, acaba vendo que não é a única a ter uma vida dupla. Por outro lado, é realmente persistente em relação à carreira. Ela é publicitária e está sempre tentando mostrar suas ideias para os diretores. Mesmo sendo constantemente ignorada, agarra-se a qualquer olhar que possa indicar que foi vista ou ouvida. Até que é demitida. Sem entender nada, volta para a casa do pai e da madrasta e lá se envolve com o novo negócio do casal: o tal do glamping. Apesar de parecer (e ser de fato) exagerado ter cabanas chiques, a ideia não é tão ruim e resgata a vida calma que um dia ela abandonou. O livro é divertido, nos oferece algumas horas de risos, leveza e até, na medida do possível, algumas reflexões sobre como lidamos com este universo das aparências. Mas é um chick-lit, portanto, há muitos clichês e final feliz. Será que de tanto imaginar, podemos mudar nossa realidade?