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sábado, 30 de setembro de 2023

o gato que amava livros



"Livros têm alma.
Um livro querido sempre terá uma alma.
Voltará para ajudar o leitor em tempos de crise."


Em "O gato que amava os livros", o escritor japonês Sosuke Natsukawa nos apresenta a literatura fantástica japonesa voltada ao público jovem adulto. Leitura rápida e instigante, conta a história de Rintaro Natsuki, garoto do ensino médico bastante recluso, que passa a maior parte do tempo na livraria do avô. Leitor assíduo, conhece, com riqueza de detalhes, grandes obras literárias e filosóficas, especialmente as do ocidente.

Seu avô acaba de morrer, e ele terá que abandonar a livraria para morar com uma tia distante. Diante desse cenário, sua introspecção intensifica-se, chegando ao ponto de se recusar a ir à escola. Ele é um hikikomori, palavra japonesa para definir jovens totalmente avessos ao convívio social.

Eis que surge Sayo, amiga de sala que insiste que ele saia de casa (ou da livraria) e volte às aulas. Mas quem realmente vai movimentar a vida do rapaz é um gato falante, claramente inspirado no gato de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, um dos pseudônimos do escritor britânico Charles Lutwidge Dodgson. O felino aparece para pedir que o rapaz o ajude a resgatar livros que estão em perigo. A partir daí, partem para aventuras em labirintos no fundo da loja. Juntos, enfrentarão quatro situações bem curiosas.

No primeiro labirinto, os livros estão condenados a ficarem sempre guardados a sete chaves após terem sido lidos uma única vez. No segundo, os livros são destinados a perder todos os seus detalhes e características que os fizeram grandes obras, pois a ideia ali é resumi-los ao máximo possível (alguns em apenas uma linha), para que mais pessoas possam ter acesso a eles. Na terceira empreitada, vão parar na maior editora do mundo. Lá, os livros literalmente despencam das grandes torres. A premissa é que se deve escrever apenas o que vende. Caso contrário, os livros perecerão, já que a demanda é por autoajuda e temas de consumo rápido. Cabe a Rintaro convencer os responsáveis por cada local a mudar de ideia, reforçando a importância da leitura.

Já no quarto labirinto, é recebido por uma mulher misteriosa e, aparentemente, sem emoção, que vai colocar na balança todos os prós e contras do que foi visto antes. Seria ela a voz da razão mostrando que, afinal de contas, o que estava acontecendo nos ambientes anteriormente visitados refletem a realidade do mundo editorial? E que mais do que se prender ao passado, é preciso explorar outras possibilidades para garantir a sobrevivência dos livros? Ou indo além? A tradição é importante, porém, precisamos nos abrir ao novo.

Rintaro está preso à tradição e aos costumes, especialmente os passados pelo avô, a quem muito admira e respeita. Durante seus argumentos contra os que "destruíram" os livros (guardando-os para que ninguém os visse, cortando-os para resumir ou aceitando o supérfluo), as lembranças do avô sempre emergiram, dando a ele respostas para reverter as situações e salvar as obras. Em dois dos labirintos, ele é acompanhado pela amiga Sayo. Segundo o gato, apenas algumas pessoas especiais conseguem vê-lo e ela é uma delas, consequentemente está apta a visitar esses lugares mágicos.

A mitologia grega apresenta o Labirinto de Creta, não apenas como um espaço para confinar o Minotauro, uma figura indesejada pela sociedade, mas também como um caminho tortuoso de desafios e autodescoberta. Neste romance, os labirintos não apenas guardam os livros, eles representam a jornada interior de Rintaro, refletindo sua evolução e crescimento ao longo da narrativa.

Interessante a figura do gato. Sarcástico, some e aparece sem dar satisfações, age como se fosse a própria consciência de Rintaro trabalhando para que ele possa dar conta de seus dilemas. Com a morte do avô, ele precisa deixar a livraria, local onde estão todas suas memórias afetivas. Apesar de não ser o que quer, sabe que para um garoto de ensino médio não é viável ficar sozinho. Ao mesmo tempo há as obrigações da idade, como a escola. Em contraponto, tem Sayo, por quem começa a ter sentimentos que vão além da amizade. No meio de tudo, chama a atenção outro personagem, o cara mais popular da escola, que contrariando as expectativas de Rintaro e Sayo, admira o nosso hikikomori e tem nele e na livraria Natsuki a inspiração para ler grandes clássicos. Importante observar que, em japonês, natsu significa verão. E ki significa esperança ou raro. Portanto, uma tradução aproximada do nome poderia ser "Esperança de Verão" ou "Raridade de Verão".

Há esperança para a literatura? "O gato que amava os livros" mostra que sim, principalmente ao apontar o quanto perdemos ao deixar de lado livros considerados difíceis, por exemplo. Lá pelas tantas, Rintaro provoca a amiga ao lhe indicar Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Ela diz que está com dificuldades na leitura e ele afirma que isso é bom, pois o livro está lhe mostrando outras perspectivas. Quando a leitura é fácil, é porque tudo o que está ali já foi visto e aceito. É linda a passagem em que o protagonista relembra um diálogo com o avô, que compara a leitura com uma escalada? 

" Se você vai escalar, escale uma montanha alta. A vista do topo será muito melhor."

Há outros trechos bem instigantes sobre como temos nos livros amigos fiéis, que sempre nos darão as respostas que precisamos.

"Existem histórias atemporais, poderosas o suficiente para sobreviverem ao longo dos anos. Leia muitos desses livros; serão como amigos para você. Eles vão te inspirar e dar apoio."

Contudo, sabemos as dificuldades que os livros enfrentam, o quanto os grandes clássicos são ignorados em prol de leituras mais fáceis e vendáveis. Mas não será isso que vai nos fazer desistir de uma boa história ;-)
 

Trechos

"Os livros têm um poder extraordinário. Esse era o mantra de seu avô. Para dizer a verdade, o velho não era muito falante, mas, quando o assunto eram livros, de repente ele se enchia de vida. Os olhos quase cerrados abriam caminho para um sorriso largo, e as palavras voavam da boca com uma energia extasiada: — Existem histórias atemporais, poderosas o suficiente para sobreviverem ao longo dos anos. Leia muitos desses livros; serão como amigos para você. Eles vão te inspirar e dar apoio."


"Ler um livro é muito parecido com escalar uma montanha."

"Ler não é só um prazer ou entretenimento. Às vezes, você precisa examinar as mesmas linhas a fundo, ler as mesmas frases várias e várias vezes. Às vezes, você fica lá sentado com a cabeça nas mãos e só progride em um ritmo árduo e lento. E o resultado de todo esse trabalho duro e desse estudo cuidadoso é que, de repente, seu campo de visão se expande. É como encontrar uma bela vista ao final de uma longa escalada. Sob a luz da lâmpada antiquada, o avô de Rintaro tomou um gole de chá, calmo e confiante, parecendo um velho mago sábio de algum romance de fantasia. — Ler pode ser exaustivo. Os olhos do velho cintilaram por trás dos óculos de leitura. — Claro que é bom ter prazer em ler. Mas as vistas que se pode ter em caminhadas leves e agradáveis são limitadas. Não condene a montanha pelas trilhas íngremes. Também é uma parte valiosa e agradável da escalada o esforço de subir uma montanha passo a passo. Ele esticou a mão fina e ossuda e a colocou sobre a cabeça do garoto. — Se você vai escalar, escale uma montanha alta. A vista do topo será muito melhor. Apressar-se implica perder muitas coisas. Andar de trem pode levar ao longe, mas é um equívoco pensar que isso permitirá ver mais coisas. Flores na sebe e pássaros no topo das árvores são acessíveis apenas a quem vai caminhando com os próprios pés. Rintaro ponderou tudo isso antes de se aproximar do estudioso."

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