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domingo, 20 de março de 2016

os cães nunca deixam de amar


Antes de mais nada, tenho que dizer que Seamus, o protagonista, é um fofo. A editora que trouxe o livro para o Brasil bem que poderia ter mantido a capa com a foto dele, como na versão norte-americana. Assim como poderia ter caprichado mais na tradução e revisão. Para começar, o título "Os cães nunca deixam de amar", apesar de verdadeiro em sua essência, pouco tem a ver com o livro. O título original seria algo como "O cão sobreviveu (e eu também sobreviverei)", o que entrega tudo, mas não tem importância, já que trata-se de autobiografia.

Teresa J. Rhyne é advogada e apaixonada por livros, café, vinhos e cachorros, em especial os beagles. Já teve vários. O mais recente é Seamus, adotado logo após seu segundo divórcio. Ele recebe muito amor, carinho e toda a atenção do mundo. Eu morri de rir com as peripécias dele. Bagunceiro, esfomeado, barulhento e ciumento. Ele só aceitou o novo namorado de Teresa, Chris, depois que o associou à comida. Outro ponto interessante é a voz dele. A autora traduziu cada latido e uivo de forma bem divertida.

Tudo estava bem até que descobrem que o cachorrinho tem câncer. E em toda a primeira parte do livro, Teresa nos conta como correu para salvá-lo. Gastou tudo o que tinha. Brigou com veterinários que não davam a atenção necessária. Perdeu dias de trabalho. Ao acompanhar, eu só tinha uma certeza: teria feito o mesmo. Daí vem a segunda parte da história. Ela também está com câncer. De mama. Murchei. Fujo desse tipo de literatura. Não gosto de ler sobre pessoas que se curaram de determinada doença. Isso não quer dizer que eu não me preocupe com elas. Mas estou falando de literatura e, inevitavelmente, a narrativa tem sempre os mesmos apelos e fatos.

Esse livro surgiu a partir de um blog que Teresa criou. Sua intenção, segundo o que disse, foi atualizar as pessoas sobre seu estado. Enfim. Foi muito bom para ela, que, antes da doença, vinha fazendo cursos sobre escrita. E vem outro por aí. Eu já tinha decidido não ler mais nada dela até que, fuçando no seu blog mais recente, vi que tornou-se vegana. Ponto positivo. O novo título fala sobre como a reincidência do câncer em Seamus a levou a mudar seus hábitos alimentares (dela e dele). Mais que isso, em como passou a não ver coerência em amar um animal e comer outro. Sei que não haverá surpresas. Contudo, não posso ignorar alguém que está ajudando a mostrar ao mundo os sentimentos dos animais. Que venham outros. Epa! Posso ouvir Seamus, "agoooraaaa chegaaaaaaaa, querooooo comidaaaaaaa. Auuuuuuuuuuuuu" :-)

Seamus. Foto do blog, que vale a pena conferir
"Geralmente, Seamus me segue pela casa e fica próximo o suficiente para que eu imagine que qualquer barulho que não seja meu seja dele, e isso me ajuda a dormir de noite. Além disso, eu gosto dos seus barulhinhos - o som das suas placas de identificação de alumínio barato batendo uma na outra quando ele está se movimentando e ainda mais rápido quando ele está coçando a sua orelha com a pata traseira, os pequenos gemidos e barulhos quando ele dorme, a circulação e os arranhões para arrumar todos os cobertores e almofadas antes de deitar, o farejar incessante do ar para qualquer sinal de torradas, suas unhas sapateando pelo chão de madeira conforme ele trota em direção ao lado de fora e, em seguida, o barulho da porta para cachorro. Um cachorro é uma presença em uma casa."



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Para descontrair, compartilho aqui uma máxima que todas as moças que ficam esperando ligações, mensagens, curtidas de pretendentes devem saber. Mais que isso, que ficam dando desculpas para si mesmas quando não há sinal de vida dos rapazes. O diálogo está no livro, lá no começo, quando Teresa vai para a Irlanda e está num jantar com os primos. A desesperada é sua prima.

"- Eu só acho que ele não consegue encontrar o lugar. Ele não cresceu aqui, é tarde e ele provavelmente está cansado, você não acha? Eu sei que ele queria estar aqui. Ele disse isso ontem à noite.

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- Priminha! Se um bosta de um homem quer achar uma mulher, ele vai achar, porra!"

 Que não haja desperdício de tempo com ilusões desnecessárias ;-)

quarta-feira, 16 de março de 2016

a irmã da tempestade


“Alguns segredos realmente deveriam permanecer secretos, não acha, meu bem?”
Nem preciso dizer que “A irmã da Tempestade” é bem previsível. Lucinda Riley sempre dá as pistas exatas do que vai acontecer nas próximas páginas. Pouca ou nenhuma surpresa nos é dada. Contudo, eu ainda gosto dos livros dessa autora. Por quê? Simplesmente porque por meio deles consigo viajar, conhecer lugares que talvez eu nunca vá estar fisicamente. Posso dar um pulo no passado e ter uma pitada de fatos históricos, mesmo que superficialmente. Neste segundo volume da série “As sete irmãs”, ao todo serão sete, eu fui para os fiordes noruegueses e até cheguei a acompanhar a criação, os ensaios e a estreia da peça teatral Peer Gynt, de Edvard Grieg (1843-1907), um dos mais renomados compositores noruegueses. São esses pequenos prazeres que seus livros me proporciona. Sim, eu realmente me transporto durante a leitura. Eu ouvia a voz da cantora que aparece, o som do piano. Cheguei até a sentir os cheiros que eles descrevem.

“Como sempre acontecia, o ar limpo e gelado estava revigorante. Sentada em seu banco favorito, ela ficou olhando para o fiorde e para a água prateada cintilando à luz do dia em que já se esvaía.”
A história segue paralela ao que é narrado no primeiro livro da saga. Também começamos com a morte de Pa Salt, que adotou seis garotas e que deu a elas nomes que remetem à Constelação das Plêiades. Aqui quem narra os fatos é Ally, Alcione, a segunda irmã. Ela é velejadora profissional e está prestes a disputar as eliminatórias para as Olimpíadas de Pequim, em 2008. Em um dos campeonatos que participa conhece Theo, outro velejador. Eles se apaixonam e têm dias de contos de fadas. Até que recebem a notícia da morte do pai de Ally. Pouco depois, outra tragédia vai marcar a vida da moça, que resolve ir atrás de suas origens, lá na Noruega. Por meio de relatos e leituras, ela conhece seus tataravós, importantes músicos. Neste ponto do livro há interações com personagens reais, como Grieg. Há ainda uma passagem pela década de quarenta e a segunda guerra mundial, que traz a vida de seus avós, também músicos. Aliás, todo mundo toca ou compõe na família biológica de Ally, inclusive ela própria, que de uma hora para outra acaba num grande concerto. Extremamente forçado.

O que mais me chamou a atenção, porém, na história foi a relação de Anna, a tataravó, com os animais. Em especial com uma vaca. Antes de tornar-se uma famosa cantora, ela morava nos campos noruegueses e cantava para os bichos. Tinha afeição especial por Rosa, uma da vacas. Quando partiu, sua maior preocupação foi deixá-la, sabendo que dificilmente a veria novamente. Infelizmente, nem Anna nem a autora tocaram mais no assunto. Mas deixo aqui dois trechos muito bonitos:

“Ninguém parecia saber exatamente quantos anos a vaca tinha, mas ela com certeza não era muito mais jovem do que Anna, que tinha 18. Pensar que ela não estaria mais ali para cumprimentá-la com o que gostava de interpretar como uma expressão agradecida nos suaves olhos cor de âmbar deixou os olhos da menina marejados de lágrimas.”

“Anna se levantou quando Rosa enfim alcançou o local onde ela estava. Enquanto acariciava as orelhas sedosas da vaca e em seguida beijava a estrela branca no centro de sua testa, não pôde deixar de reparar nos pelos grisalhos em volta da boca macia e rosada do animal.  – Por favor, esteja aqui no versão que vem – murmurou suavemente ao bicho.”

terça-feira, 15 de março de 2016

flush


Sinceramente, não sei o quanto Virginia Woolf gostava de animais. Mas o modo com que ela descreve os pensamentos de Flush é surpreendente. Quem tem cães, vai entender. Livro que merece ser relido no original. O mais bacana é que o cão existiu, embora ela não o tenha conhecido. Seu contato com ele se deu por meio de cartas trocadas entre os poetas Elizabeth Barrett (1806-1861) e Robert Browning (1812-1889). Poemas escritos por Elizabeth também serviram de inspiração.

Flush” foi escrito em 1933, mas retrata a época em que o cãozinho viveu. Interessante observar a crítica em relação à vida nas grandes cidades já naquela época. O comércio de animais de raça e suas consequências também estão presentes, como o roubo de cães, da qual nosso protagonista foi vítima. A descrição do que ele passou enquanto esteve preso é de partir o coração. Flush odiava Londres e todos os seus cheiros. Amava o campo. Lá ele podia correr, sentir o vento nas orelhas, ficar livre da coleira e da guia. No campo ele voltava a ser apenas um cachorro feliz. Não um cocker spaniel legítimo.

Sua história começa em um chalé inglês, onde nasceu. Passou os primeiros meses correndo de um lado para outro junto com outros animais, até ser doado, por sua dona, a poeta Mary Russell Mitford, para Elizabeth. Mesmo precisando de dinheiro e já tendo vendido outros cães, a Mitford não conseguiu fazer o mesmo com Flush.
"Vender Flush era impensável. Ele fazia parte daquela rara ordem de objetos que não se pode associar a dinheiro. Será que ele não era de um tipo mais raro ainda que, por incorporar tudo o que é espiritual e que se encontra além do preço, transforma-se em um símbolo perfeito para o desinteresse da amizade; e pode ser oferecido, sob este pretexto, para uma amiga que seja mais como uma filha do eu como uma amiga, se é que alguém tem sorte bastante para ter uma pessoa assim."
(Não, Flush nunca foi objeto). No dia em que é deixado na nova casa, ele se desespera ao ouvir os passos da dona se afastando. 
"As vozes cessaram. Uma porta fechou-se. Por um instante, ele parou, desnorteado, nervoso. Então, com a brutalidade do ataque de um tigre com as garras para fora, uma lembrança veio à sua mente. Sentiu-se sozinho - abandonado. Correu até a porta. Estava fechada. Arranhou-a com a pata, esperou. Ouviu passos que desciam. Sabia que eram os passos de sua dona. Pararam. Não - logo recomeçaram, e seguiram, escada abaixo. A Senhorita Mitford descia as escadas lentamente, com relutância, com pesar. E, à medida que avançava, à medida que o som ia ficando mais fraco, o pânico abateu-se sobre ele. Era uma porta sendo fechada depois da outra em sua cara à medida que a Senhorita Mitford descia as escadas; fechavam-se para os campos, para a liberdade, para as lebres; para a grama; para a sua adorada e venerada dona - aquela senhora tão querida que o banhara, que o repreendera com tapas, que o alimentara com comida de seu próprio prato, apesar de ela mesma não ter muito o que comer -, para tudo que ele conhecida como alegria, amor e bondade humana! Pronto! A porta da frente fechou-se em um estrondo. Ela o abandonara."
Rapidamente, ele entende que seu lugar é junto com Elizabeth, que na época vivia confinada em seu quarto por conta de uma doença. São raras as vezes em que sai de casa, ou mesmo desse cômodo. Por consequência, Flush tem que adaptar-se ao sofá, onde passa os dias. Ele aprendeu a amá-la e ela fez de tudo para retribuir este amor. Eram inseparáveis. E eu diria que fisicamente parecidos. Vi uma foto dela e seus cachos lembravam as orelhas de Flush. O livro é totalmente do ponto de vista do cachorro, sabemos apenas o que ele vê e sente. Nos poucos passeios que faz pelas ruas de Londres, tudo ele observa. São hilárias as comparações feitas com os outros cães.
"Logo Flush descobriu que os cães de Londres estão estritamente divididos em classes distintas. Alguns são cães com coleira; alguns andam soltos. Alguns saem para passear em carruagens e bebem água em potes vermelhos; outros não são tratados, não têm coleira e tiram seu sustento da sarjeta."
Quando Robert passa a visitar Elizabeth, ele se rebela, pois deixa de ser o centro das atenções. Mas é justamente esse relacionamento que vai levá-lo aos seus melhores dias. Eles fogem para a Itália. Lá Flush tem a liberdade de passear sozinho, de fazer amizades, de namorar. Aliás, ele tinha várias namoradinhas. E uma grande paixão, que conheceu durante uma manifestação. Passa ainda por outra crise de ciúme com a chegada de um bebê. Nas palavras de Elizabeth "... durante uma quinzena inteira, afundou-se em uma profunda melancolia e mostrou-se avesso a qualquer atenção que lhe fosse dispensada." Passou, porém, e Flush descobriu que ambos tinham muito em comum. O fim não poderia ser mais lindo.

Elizabeth Barrett Browning and her cocker spaniel Flush, por James Edwin McConnell

Recomendo muito essa leitura. E aproveito para dizer: jamais compre animais. Isso aumenta o abandono. Querer um cachorro porque ele é de tal raça é egoísmo. É acreditar que os animais são produtos. Você pode até amar o cachorro, gato ou passarinho que comprou. Mas entenda que contribuiu para esse terrível negócio, que muitas vezes termina com os animais sendo seriamente machucados. Basta dar uma olhada nas ruas e nos abrigos. Reflita. Adote. Ame menos suas vontades e mais a vida de todos.