As aventuras de Little Brain: a fúria do consumo
"A cidade fervia de dinheiro... a moda nunca estivera tão na moda... lojas, representantes exclusivos, galerias batalhavam para satisfazer a estonteante demanda por produtos cada vez mais recherchés” (Fúria, Salman Rushdie)
Malik Solanka é um professor de história que desiste de sua carreira acadêmica e passa a se dedicar a um hobby adquirido anos antes: a confecção de bonecos de madeira. Uma rede de TV inglesa resolve investir na idéia e lhe concede a oportunidade de um programa sobre a história da filosofia. O que Solanka não esperava era que uma de suas criações fosse conflitar com seus ideais. Little Brain, a simpática boneca concebida para comandar um talk show que recebia grandes pensadores, havia caído nas graças da grande massa, atingindo um sucesso avassalador de escala mundial. Seu caráter questionador inicial abriu espaço para a flexibilidade natural do estrelato, adaptável aos anseios do público. Este resultado foi mais do que suficiente para que o criador entrasse em choque com sua própria realidade. Como enfrentar a fúria que o dominava cada vez mais, fazendo-o perder a razão? Poderia ele livrar-se da filha desnaturada? A fuga parece ser a melhor alternativa. Seu destino: Nova York, o coração econômico, cultural e multiétnico da América.
Este é o cenário em que se desenvolve o livro "Fúria", de Salman Rushdie. A história aborda o século 21, dominado por bonecos massificados, que a cada dia ganham novos rostos, novas personalidades, novos ideais. Uma rotatividade essencial para garantir a sobrevivência quando o "novo" é aclamado como rei. "Fúria" nos remete à Indústria Cultural, que invadiu o nosso cotidiano. Theodor Wiesegrund Adorno, filósofo, sociólogo e musicólogo alemão, a definiu muito bem: "Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo.”
Adorno conceitua produção cultural a partir do momento em que ela é inserida nas massas e, conseqüentemente, na reprodução em larga escala. Para ele, a Indústria Cultural neutraliza as pessoas, impendido-as de pensar sobre sua própria condição social. Suas várias forma de expressão, seja por meio da televisão, cinema ou música, entre outras, consistem em um sistema manipulador que não atinge somente o receptor, mas que influencia também os criadores. A obra de arte se transforma em mercadoria, como aconteceu com a boneca intelectual do professor Solanka. A Globalização atinge a produção cultural fazendo com que a "cultura" seja freqüentemente modificada e os artistas percam o controle de suas criações.
Little Brain foi fruto de uma visão pessoal. Representava o conhecimento, percepção e interpretação do mundo sob a ótica de Malik Solanka. Quando a levou para a televisão, seu objetivo inicial era levar à população um pouco de história e filosofia. No entanto, sua criação foi além desta premissa. Tornou-se um objeto cultuado pelas massas. Isso exigiu algumas adaptações na estrutura do programa, de forma a satisfazer as necessidades audiovisuais dos telespectadores.
"Malik Solanka assistiu a tudo isso de longe com crescente horror. Essa criatura de sua própria imaginação, nascida do seu melhor e mais puro empenho, estava se transformando, diante de seus olhos, no tipo de monstro de espalhafatosa celebridade que tão profundamente abominava." (Salman Rushdie, página 119)
Para Adorno, o consumidor não é rei, como sugere a Indústria Cultural. Os produtos não são adaptados segundo estilos individuais. Não é o receptor quem dita as regras do que deve ou não se tornar um produto de massas. "O consumidor não é o sujeito dessa indústria, mas seu objetivo". Trata-se de um mero coadjuvante de um filme que tem como ator principal o lucro, fabricando uma falsa identidade do indivíduo com o universal, dando a errônea impressão de que as pessoas identificam-se com os produtos culturais.
Entretanto, há outro ponto a ser considerado. Se por um lado existe uma indústria manipuladora e atenta a todos os detalhes que possam fazer de uma mercadoria algo massificado, por outro, encontra-se um público desmotivado para seguir seus verdadeiros princípios. O conformismo, também citado por Adorno, que faz com que as pessoas aceitem a realidade como ela se apresenta, é o grande responsável pelo domínio imperialista. A partir desta fraqueza e falta de iniciativa, o público tende a consumir tudo o que lhe é imposto. Em tal contexto, é muito mais cômodo esticar os braços e agarrar algo já pronto, e que não exige grande habilidade de manuseio ou riscos aparentes, em vez de disponibilizar um tempo extra para leituras mais profundas, pesquisas e ensaios de uma consciência mais crítica em relação ao que acontece ao redor.
Sem ocupar-se dos mesmos problemas, o pensador alemão Friedrich W. Nietzsche já descrevia perfeitamente no fim do século 19 esse comportamento. Em "Assim Falou Zaratustra - Um livro para todos e para ninguém" ele, sem saber, prevê o papel desempenhado pelos consumidores do século 21. "Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.”
Um século antes, Nietzsche já nos deu o perfil do consumidor apático que busca entretenimento fácil e sem questionamentos. Que não gosta de ir ao cinema para pensar. Que gosta apenas de programas sensacionalistas. Que não escolhe livros com mais de cem páginas, letras pequenas e sem imagens. Do consumidor que associa o lazer a um momento em que devem apenas relaxar, e sempre na mesma direção que os outros.
“Vede! Eu vos mostro o último homem. 'Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?' - Assim pergunta o último homem, piscando o olho... Quem, ainda, deseja governar? Quem, ainda, deseja obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas. Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio. 'Outrora todo o mundo era doido' - dizem os mais sutis, piscando o olho.” (Friedrich W. Nietzsche, página 34)
Infelizmente, o "último homem" não é exclusivo da obra do filósofo alemão, que tem em seu Zaratustra - inspirado inversamente no Zaratustra histórico, profeta iraniano do século VII e grande moralista - um promotor de uma completa transformação cultural, que despreza o conformismo e prega a criação, a espontaneidade e a arte como características essenciais da nova cultura.
Na verdade, esse indivíduo desprovido de motivação é mais real que nunca. Encontra-se agora diante de um aparelho de televisão vendo o noticiário camuflado. Está ouvindo o último "hit" das paradas de sucesso. Está lendo o caderno de atualidades do jornal de sua cidade. Esta, de uma forma ou outra, comprando uma das “novidades” apresentadas por Little Brain.
“Dia a dia, foi se tornando uma criatura do microcosmo do entretenimento, seus clipes musicais (sim, ela agora era cantora!) mais sensuais que os de Madonna, suas aparições nas premières super-huleyando toda starlet que já pisou o tapete vermelho num vestido perigoso. Era estrela de videogame e capa de revista, e tratava-se, não esqueçam, quanto à sua aparência pessoal, pelo menos, de uma mulher cuja cabeça ficava completamente escondida dentro da cabeça da boneca irônica.” (Salman Rushdie, página 119)
O poder do questionamento foi minimizado numa era em que a padronização determina as tendências. Qualquer indústria vai lançar um produto sabendo que há um público interessado. E para as mercadorias com essas características de fácil assimilação, hoje, temos um grande número de adeptos.
A boneca do professor Solanka chegou ao sucesso por meio da televisão, principal forma que o neoliberalismo, definido pelo professor e pesquisador norte-americano Robert W. McChesney como "o conjunto de políticas nacionais e internacionais que exigem a dominação empresarial de todas as questões sociais com mínima forma de reação, encontrou para se propagar. A televisão revela, estimula, molda, conquista. "Com os valores neoliberais, a televisão que foi uma reserva não comercial em muitas nações, tornou-se repentinamente sujeita à evolução comercial multinacional. Ela está no centro do sistema de mídia global emergente.” McChesney defende a mídia comercial e os mercados de comunicação como as grandes parceiras das políticas neoliberais, responsáveis pela Indústria Cultural e manipulação em massa.
O mesmo pensamento é compartilhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que aponta a televisão como a vilã dos meios de comunicação, que põe em risco à população e todas as esferas da produção cultural, artística, literária, científica, filosófica e até judiciária. Ela expõe ao perigo a vida política e a democracia ao visar, sempre, os altos índices de audiência. Bourdieu fala, ainda, de um controle político, sobretudo pelos verdadeiros donos da televisão, em muitos casos as grandes organizações. Isso faz com que certos assuntos sejam proibidos a fim de não ferir a imagem dos reais patrocinadores das emissoras.
As grandes fusões e aquisições na mídia global resultam em gigantes conglomerados. Isso faz com que as indústrias específicas de mídia se tornem cada vez mais concentradas nas mãos de poucos controladores. Para McChesney, uma verdadeira ameaça à democracia, que se encontra diante do esvaziamento da cidadania e da política consciente em busca do poder, lucro e ascensão de raros privilegiados. Neste universo, "a verdadeira força motriz tem sido a busca incessante de lucro que marca o capitalismo, e que fez pressão em prol de uma mudança para a desregulamentação neoliberal. Na mídia, isto significa o relaxamento ou a eliminação de barreiras à exploração comercial e à propriedade concentrada dos meios de comunicação."
No entanto, Bourdieu chega a insinuar que a manipulação acontece sem que os envolvidos tenham consciência do que se passa. É a “mentalidade-índice-de-audiência”, que atua inconscientemente ao exercer uma forte pressão econômica ou, o que o sociólogo chama de violência simbólica: “que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e, também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”
"Em fins dos anos 70... A indústria da cultura, nas décadas seguintes, tomaria o lugar da ideologia, passando a ser 'primária' no sentido em que a economia costumava ser, gerando toda uma nova nomenklatura de comissários culturais, uma nova raça de burocratas em grandes ministérios de definição, exclusão, revisão e perseguição.” (Salman Rushdie página 32)
Ainda dentro desta ótica, podemos afirmar que a Indústria Cultura coloca à disposição uma mercadoria feita de impressões, sensações e que tende a ser cada dia mais gratuita, pois é paga pela publicidade. Para McChesney, esta dependência de anunciantes, associado a um quase monopólio do sistema de mídia global tem um outro agravante: a violação da imprensa livre e neutra. "O ataque à autonomia profissional do jornalismo é apenas a parte mais evidente da transformação neoliberal da mídia e das comunicações. Todos os valores e instituições de serviço público que interfiram na maximização do lucro estão no paredão". O autor norte-americano complementa sua idéia citando o declínio da televisão pública em todo o mundo, fenômeno que pode ser observado perfeitamente no Brasil.
O jornalismo também é atacado por Bourdieu, que o descreve como um depósito de notícias de variedades dentro de uma sociedade em que “o sangue e o sexo, o drama e o crime sempre fizeram vender.” São notícias que elevam o índice de audiência e que distraem: os fatos-ônibus, assuntos de interesse comum, que não envolvem disputa e que geram consenso.
Como sempre, as verdadeiras vítimas são as classes menos favorecidas, norteadas por uma política fraca e ineficiente, caracterizada por um alto grau de despolitização e que não tem nas tradições e costumes uma barreira no caminho do lucro e poder. Nestes casos, a solução é simples, conforme explica McChesney: "Quando as platéias parecem preferir a produção local, as empresas de mídia global, em vez de fugir em desespero, globalizam sua produção".
Foi justamente esta manipulação, regada a um capitalismo agressivo que impõe regras, pensamentos e costumes, que casou a fúria do professor Solanka, nosso ponto de apoio para abordar a Indústria Cultural. Sua criação torna-se insuportável para seus olhos e sentimentos. A simples presença de uma boneca, escondida em um quarto, é a gota que faltava para que o oceano de angústia do professor transbordasse, quase culminando em um duplo assassinato. Para aqueles que não leram o livro, faremos uma alusão metafórica ao quase fim da consciência e essência do criador. Ele estava se transformando definitivamente no "último homem" ridicularizado por Nietzsche. Felizmente (ou não), ao "piscar o olho" foi tirado do transe no qual se encontrava e levado a uma avaliação mais crítica de seus atos e pensamentos. Para entender melhor essa situação não poderia entrar para melhor escola: Nova York, a mais perfeita representação do imperialismo moderno, que muito terá a ensinar e a enfurecer o personagem principal da obra de Salman Rushdie. Para conhecer o que o aguarda e como a história termina, não percam os próximos capítulos.
"Ele sentiu a velha raiva brotar de dentro enquanto ela falava, a imensa, insaciável raiva de Little Brain que permanecera inexpressada, inexprimível, todos esses anos. Era essa raiva que havia levado diretamente ao episódio da faca... Fizera um imenso esforço para esconder isso. Estava no primeiro dia de sua nova fase. Hoje não haveria névoa vermelha, nem tirada obscena, nem apagamento de memória induzido pela fúria. Hoje encararia o demônio e lutaria com ele até jogá-lo na lona. Respire, disse a si mesmo. Respire" (Salman Rushdie, página 111)
Referências bibliográficas
ADORNO, T.W. - Adorno. São Paulo, Editora Ática, Col. Grandes Cientistas Sociais 54, 1986.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. São Paulo, Jorge Zahar, 1997.
McCHESNEY, Robert W. - "Mídia Global, neoliberalismo e imperialismo" in Dênis de Moraes (org.) Por uma Outra Comunicação. Bauru, EDUSC, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich W. - Assim Falou Zaratustra - Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 9ª edição, 1998. Tradução de Mario da Silva.
RUSHDIE, Salman - Fúria. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.