Olhar uma imagem e interpretá-la somente com nosso repertório pessoal. Talvez com alguma pesquisa sobre a época em que foi criada. Talvez apenas permitindo que ela nos toque. Talvez somente ouvindo o que a imagem tem a nos dizer. Essa é a proposta de Alberto Manguel: olhar uma imagem sem a preocupação de seguir as estruturas formais das escolas de arte.
O livro, escrito pelo argentino com cidadania canadense, foi lançado em 2000 com o título original “Reading Pictures: a history of love and hate”. É uma espécie de manifesto a favor dos espectadores comuns, que devem ter o direito de ler imagens sem métodos ou teorias da história da arte.
Manguel conta que até aquele momento estava acostumado com livros de estórias infantis ilustradas. Texto e imagens se completavam. Agora, estava diante apenas de imagens. O pouco texto que existia, se restringia à vida do pintor, título e data das obras. “Em um sentido muito categórico, aquelas imagens se mantinham isoladas, desafiadoras, me aliciando para uma leitura. Nada havia para fazer exceto olhar para aquelas imagens: a praia cor de cobre, o barco vermelho, o mastro azul. Olhei para elas demorada e atentamente. Nunca as esquecerei.”
Para ele “as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos.” Não importa se são símbolos, alegorias, sinais, mensagens. Ou se são coisas vazias que precisam ser completadas por nossos desejos, experiências, questionamentos, remorsos. Isto é, por nossa interpretação. Sem esquecer que a mesma imagem ganha e perde significados com o tempo e com nosso sentimento no momento em que a estamos contemplando.
Na tentativa de mostrar que é possível para um leigo admirar uma imagem, ele começa sua jornada com um exemplo da infância, quando tinha apenas nove anos. Por meio da tia, que era pintora, cai em suas mãos um livro sobre Vincent van Gogh, aberto na imagem da tela “Barcos na praia de Saintes-Maries”, de junho de 1888.
Para ele “as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos.” Não importa se são símbolos, alegorias, sinais, mensagens. Ou se são coisas vazias que precisam ser completadas por nossos desejos, experiências, questionamentos, remorsos. Isto é, por nossa interpretação. Sem esquecer que a mesma imagem ganha e perde significados com o tempo e com nosso sentimento no momento em que a estamos contemplando.
O livro é divido em onze momentos, cada um a desvendar uma imagem diferente. Sem falar em escolas, técnicas, perspectivas, claro/escuro. Mas, mesmo para um passeio despretensioso, o autor lança mão de historiadores e filósofos para dar conta das análises que faz de algumas obras. Destaco, aqui, cinco delas. Em todas, incita-nos a conhecer a essência de tudo o que vemos e o quanto uma imagem pode nos mostrar sobre determinada época, sobre determinado pensamento.
A imagem como ausência e Joan Mitchell
Aqui, Alberto Manguel discorre sobre o abstracionismo e como encontrar significado na ausência de algo real num quadro ou quando não estamos diante de algo reconhecível. Usa como base a tela “Dois Pianos”, de 1980, da artista norte-americana Joan Mitchell, que viveu entre 1926 e 1992, e que fez parte do expressionismo abstrato americano.
A tela tem 3 metros de altura por 3,5 metros de largura. A primeira impressão do autor diante da pintura foi essa: “contra um fundo branco, visível apenas em trechos isolados, uma tempestade de pinceladas verticais recobre a tela inteira com tonalidades vivas de amarelo e de lilás – o amarelo se desbota até o limão em certos pontos, o lilás se escurece quase até o preto, em outros trechos.”
Como esta confusão pode ser lida? Será que ela vai além de pinceladas coloridas? Ou melhor, será que ela quer e precisa ser lida? A resposta se dá com o pintor, também norte-americano, Jackson Pollock, conhecido por suas pinturas respingadas, sem referências a objetos, pessoas ou história. Seus quadros não têm começo nem fim, segundo um crítico de arte. Pollock agradeceu o ‘elogio’. Ele e seus companheiros queriam encontrar uma forma para “responder emocionalmente ao mundo, e não copiá-lo ou melhorá-lo.”
Também não estavam interessados em comunicar coisa alguma sobre o universo. Queriam apenas compartilhar o impulso criativo, “trazendo o artista e o espectador para dentro da própria pintura.” Criaram, na verdade, um sistema de signos no qual não havia mensagens ou sentido. Mas se, em todo caso, o leitor fizer questão de uma interpretação, a responsabilidade é dele e não do artista.
O fato de insistirmos na busca de significado reforça a frase de um dos nomes do teatro do absurdo, Eugène Ionesco, que o argentino cita no seu livro: “o mundo impede que o silêncio fale.”
Robert Campin. A imagem como enigma.
A imagem “A virgem e o menino à frente de um guarda-fogo”, atribuída a Robert Campin, pintor flamengo que viveu entre os séculos XIV e XV, é uma oportunidade para falar sobre um quadro no qual cada elemento tem forte significado.
A pintura mostra uma cena conhecida: Virgem Maria alimentando seu filho. O autor chama a atenção para as pistas que levam à sua decifração. Será que quatro séculos depois de ter sido concebida, ela ainda é legível para nós? Será que um observador dos nossos dias consegue ler e entender o que está por trás de cada elemento da obra?
Alberto Manguel, ao longo do capítulo, vai decodificando alguns símbolos presentes na tela. O seio, por exemplo, tem inúmeros significados: desde o vínculo com a maternidade até uma conotação erótica. No caso dessa pintura, pode expressar a adoção do filho de Deus por essa mulher e o cuidado que teve com ele, mantendo-o vivo. A auréola surge como um símbolo inconfundível no cristianismo, e que teve sua origem no Império Romano, onde os raios de sol eram usados para coroar Apolo, o deus do Sol. Há também o banco de três pés: santíssima trindade – o pai, o filho e o espírito santo. O livro em cima da almofada vermelha está aberto, uma relação com a Anunciação, ou seja, Maria toma conhecimento do destino trágico que aguarda seu filho.
Outro fato interessante, apresentado pelo argentino, é que exames de raio X mostraram que a genitália de Jesus foi propositalmente exposta pelo pintor. Mas escondida durante uma restauração no século XIX, fato só revelado recentemente. Para completar a leitura, Manguel observa que o órgão sexual de Cristo não está circuncidado. No entanto, trata-se apenas de uma questão de tempo, pois os ladrilhos negros octogonais, abaixo do vestido da mulher, indicam o oitavo dia da tradição judaica: após oito dias de seu nascimento o menino é circuncidado, momento em que a criança está mais forte. São vários os enigmas e detalhes que compõem a imagem e que anseiam por serem decifrados. Tarefa difícil e quase impossível para um leitor leigo.
Tina Modotti. A imagem como testemunho.
A foto para este tema foi tirada em 1927 por Tina Modotti, uma atriz que se tornou fotógrafa. Filiada à Ajuda Vermelha Internacional, uma versão comunista da Cruz Vermelha, ela era uma ativista que levantava a bandeira dos direitos individuais e de uma vida decente.
Esta fotografia, que não tem título, expressa sua crença. Nas palavras de Manguel: “o que vemos quando olhamos essa cópia fotográfica é algo inequívoco: os pés com sandálias de um camponês mexicano, de roupa branca, própria para o trabalho, unhas quebradas e pele impregnada de poeira, enquanto as mãos estão cruzadas sobre os joelhos, a linha superior da moldura corta o resto do corpo do homem: o único elemento adicional na foto é um relance do pé e da perna de outro homem, muito pouco visíveis no lado esquerdo, impedindo que a composição se torne confortavelmente simétrica demais.”
Ele vai além em sua interpretação, dizendo que quando a fotógrafa retratou esses pés, ela, mesmo que inconscientemente, estava “situando o seu camponês mexicano na cadeia de uma longa tradição de sofredores e de conquistadores presos à terra.” A foto foi tirada durante uma revolta dos camponeses mexicanos contra uma lei que restringia cultos religiosos. As reivindicações deles, que tinham como grito de guerra a expressão “Viva Cristo Rei”, eram o direito ao culto e à terra onde trabalhavam. Eles eram associados aos soldados de Cristo, que calçavam sandálias. Histórias e fatos que não sabemos quando apenas contemplamos a imagem, sem nenhuma referência. Pode ter sido uma forma de denúncia. Quiçá, por este motivo, Tina Modotti tenha sido alvo de um atentado. Não se sabe ainda a causa exata de sua morte. Segundo laudos oficiais, foi um ataque cardíaco, uma vez que sofria do coração. Neste ponto, o autor coloca reticências.
O que diz esta imagem? Um retrato de alguém que sofre da doença do menino lobo ou apenas uma pintura surreal?
Manguel mesmo afirma que para um olho moderno, pode não passar de uma ficção. Mas o fato é que a pintura de Lavínia Fontana, feita no século XVI, retrata uma menina, Tognina Gonsalvus. Assim como seu pai e seus três irmãos, sofre de uma doença de pele chamada hypertrichosis universalis congenita, que faz crescer pelos por todo o corpo, dando a pessoa um aspecto de animal. Como consequência, a família era uma espécie de aberração e alvo de vários cientistas e médicos que queriam estudar o fenômeno. “Sem dúvida, o rosto de Tognina parecia ter tais características animais, que corporificava uma transgressão das fronteiras humanas.”
Eles representavam o medo das pessoas, em sua época, de ultrapassar a fronteira que separa o homem dos animais tidos como irracionais. “O corpo peludo traz perigoso apelo de uma existência física sem freios.” Entretanto, ao mesmo tempo em que causa aversão, aguça a curiosidade. Todos querem e não querem ver. Ficam espiando, especulando, mas sempre por trás de portas, com o canto do olho e, em alguns casos, viram espetáculo.
Manguel se questiona como teria sido o encontro de Lavínia, nomeada pintora do papa Gregório XII, com a menina lobo. Chega a ironizar alguns pontos da vida da artista: casada com um tolo, tinha um único filho que sofria de retardamento mental, um irmã cega devido a um acidente e um pai falido, ou seja, ela também era uma estranha em seu próprio ninho. “Será que conversaram sobre sua solidão, sobre o peso de serem algo fora do comum, de um monstro para o outro, de uma criança-lobo para uma mulher pintora? Será que Tognina lhe falou de seus sonhos e talvez do rosto que sonhava em ter?”
O quadro de Fontana responde a estas questões, com consolo e conformismo: “o aberrante não precisa se esconder, o ser social não precisa fingir, o lado claro e o lado escuro podem se expor a céu aberto. Na pintura esplendidamente compassiva de Fontana, os dois lados se fundem em um só e olham firmes para o passado, para o presente e para o futuro do espectador, em uma afirmação absoluta do seu ser polimorfo.”
Picasso. A imagem como violência.
O quadro que abre o capítulo é “Mulher Chorando”, de 1937, de Pablo Picasso.
O pintor é definido como avarento, mulherengo, sem sentimentos, uma pessoa que não se importava com quem estivesse ao seu redor. Tão individualista que colocava nas pinturas seu próprio eu. Chegou a dizer: “Ninguém tem real importância para mim. No que me diz respeito, as demais pessoas são como aqueles pequenos grãos de poeira que flutuam na luz solar.” Um desses grãos é a mulher que deu origem à tela estudada e que figura também no famoso painel “Guernica”.
“Mulher Chorando” é, e não é, o retrato de Dora Maar, uma de suas amantes. Submissa e apaixonada, estava sempre disponível para quando ele a chamasse e se autointitulava sua ‘musa particular’. Brigavam muito. Muitas dessas brigas eram provocadas pelo próprio Picasso que a acusava de infidelidade, imaginária, segundo Manguel. Para ele, poderia ser uma acusação intencional, apenas para fazer a amante chorar. E quando ela irrompia em lágrimas, Picasso pegava seu caderno e se lançava a desenhar. O artista dizia que não conseguia imaginar Dora Maar de outra forma a não ser chorando. De todas as mulheres que teve, foi a única que ele retratou desta forma: desfigurada, machucada, “despedaçada pela tristeza”. Suas outras amantes eram retratadas com curvas suaves, mas Dora Maar tinha todas as suas faces violentamente retratadas num só plano. Aliás, ela alegou que essas faces, tidas como dela, eram na verdade as dele.
Quem sabe não estivesse certa: a violência do amante bruto esboçada na tela. De tanto ser atormentada e de tanto abdicar de sua própria identidade em prol das vontades do pintor, ela enlouqueceu. Chegou até a ser encaminhada ao psiquiatra amigo de Picasso, Jacques Lacan. Dora foi vítima de uma violência que lhe tirou a identidade, a alma. Mas, no fundo, é possível que este fosse seu objetivo de musa: doar-se em nome da arte do amante.
Adorei essa colocação do livro lendo imagens. Você vai postar o restante do livro?
ResponderExcluirAbraços
Maricele
Oi!! Por enquanto, não. Mas é uma ideia! O livro é muito bom e vale a pena. Abraços!
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