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domingo, 31 de março de 2013

belle

"No futuro, acharemos que participamos de uma cena de um livro barato." Já nas últimas páginas de "Belle", da britânica Lesley Pearse, um dos personagens lança essa frase que pode resumir todo o conteúdo do livro. A história se passa no início da década de 1910, apesar de encontrarmos poucos traços dessa época no texto.

Belle nasceu no prostíbulo herdado por sua mãe. A fim de preservar a filha, proíbe-a de frequentar o andar superior, local em que recebe os cavalheiros. Assim, ela cresce sem saber exatamente o que acontece naquela casa. Até que, aos quinze anos, tem sua primeira experiência com o sexo, mas apenas visual. Debaixo da cama, vê Millie, uma das garotas da casa, com seu cliente. Presencia ainda a briga dos dois e o assassinato dela. Para silenciar a única testemunha, o criminoso sequestra Belle e a vende para um bordel na França. Lá, ela é estuprada por vários homens sedentos por meninas novas. Depois é revendida para outra casa em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Arruma um amante. Perde o amante. Foge para a França. Sofre e sofre. No meio de tudo isso apaixona-se, ilude-se, é enganada, humilhada, tem seus momentos de prazer. Até que no final... Okay, não vou estragar a leitura de quem se empolgar com o enredo e quiser ler o livro. Aviso, porém: vá sem expectativas. Mesmo com a proposta de falar sobre o tráfico de mulheres para a prostituição, o óbvio é a marca registrada nas 559 páginas, que poderiam muito bem ter sido enxugadas, sem prejuízo à história.

"Pessoas respeitáveis, frequentadoras de igreja, parecem não perceber que fomos feitos para gostar de sexo. Não serve apenas para fazer bebês, querida. Amar uns aos outros no sentido físico faz bem para todos nós, é a cola que mantém um casamento em pé e torna-o feliz."


terça-feira, 12 de março de 2013

as pequenas memórias

Em “As pequenas memórias”, José Saramago nos conta um pouco sobre sua infância. É como se fosse um bate-papo no qual uma lembrança vai puxando outra. Lê-lo é como se ouvíssemos seu forte sotaque português. No meu caso, é como se eu me transportasse para a infância e adolescência, quando ouvia as histórias dos meus avós paternos que vieram de Portugal.

O autor aparece engraçado e irônico como sempre. Mas às vezes com detalhes muito particulares. Ficamos a nos questionar sobre quem, ou o que, estaria ele a falar agora. Começa o relato lamentado as mudanças na sua aldeia natal Azinhaga, antes uma terra de oliveiras, hoje tomada por um campo de milho híbrido, “com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos.” 

Fala das brincadeiras da época em que era menino, das brigas com os primos, das férias na casa dos avós, do excelente e exemplar aluno que foi desde que começou a aprender o “a e i o u”. Os primeiros namoricos e o fora que deu numa garota apenas porque o apelido dela era Bacalhau, “eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.” 

Por falar em nome, Saramago não é de fato seu sobrenome. Foi sem muita explicação inserido pelo escrivão que o registrou. Seu pai era um Sousa e só descobriu o incidente muito tempo depois. E para tentar concertar o que não tinha concerto, mudou ele próprio seu nome. Para Saramago o único caso em que o filho deu o nome ao pai. 

A ideia de escrever suas primeiras lembranças veio quando trabalha em “Memorial do Convento”, no início da década de 1980. Primeiramente denominado “O livro das tentações”, ganhou outro título e foi lançado quando tinha 84 anos. Tentações talvez sejam as memórias que insistem em aparecer, mesmo quando a queremos bem longe. Ou quando revisitamos momentos especiais que nunca mais teremos de volta. Mas como ele adianta, o negócio é se conformar, pois “também inutilmente se chorará o azeite derramado.” Leitura obrigatória para quem admira e se diverte com seus livros.


“Dizem os entendidos que a aldeia nasceu e cresceu ao longo de uma vereda, de uma azinhaga, termo que vem de uma palavra árabe, as-zinaik, ‘rua estreita’, o que em sentido literal não poderia ter sido naqueles começos, pois uma rua, seja estreita, seja larga, sempre será uma rua, ao passo que uma vereda nunca será mais que um atalho, um desvio para chegar mais depressa aonde se pretende, e em geral sem outro futuro nem medidas ambições de distância.” 

“A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: “Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!”