Páginas

sábado, 30 de dezembro de 2023

holidays romance


"Mesmo que não saia exatamente como planejado, o destino tem uma maneira de resolver as coisas no final."


Para fechar o ano, como costumo fazer, escolhi um romance que traz o clima das festas de fim de ano, especialmente o Natal. Esse foi o mote de "Holidays Romance", chick-lit da irlandesa Catherine Walsh. A história é leve e previsível, com alguns momentos divertidos, mas não tanto quanto outras narrativas irlandesas do mesmo estilo, como a série da família Walsh de Marian Keyes, sua conterrânea. A coincidência do sobrenome da autora de "Holidays Romance" me fez lembrar da série de Keyes, que a cada livro traz um personagem. E nossa Walsh aqui fez o mesmo. Vi que já há outro volume com a história dos irmãos dos protagonistas.

O romance, porém, é um pouco cansativo. Entendo que poderia ser reduzido pela metade, pois é bem repetitivo em muitos momentos. Vale destacar que é estável. Quando digo estável, quero dizer que não há reviravoltas ou vilões. O que temos é a vida simples, sem grandes complicações, seguindo as narrativas que vemos em filmes natalinos. Claro, há dúvidas e dilemas, mas o foco é em duas pessoas que querem apenas passar as festas de fim de ano com suas famílias na Irlanda. Andrew e Molly moram em Chicago; ela é advogada em um grande escritório, mora em um apartamento bacana, mas está sobrecarregada e questionando sua carreira. Ele é um fotógrafo que sonhava em trabalhar para a National Geographic, mas mudou seus planos para ganhar mais dinheiro com eventos sociais.

Eles se conhecem através de uma amiga de Molly, que namora Andrew, mas planeja terminar. Molly fica revoltada com o descaso da amiga. Coincidentemente, eles se encontram no avião rumo à Irlanda, bem no momento em que a amiga está ligando para contar seus planos de terminar o namoro. Molly, impulsivamente, tira o telefone das mãos dele, e assim surge uma amizade de voo. Dez anos depois, eles continuam combinando de se encontrar no aeroporto para ir juntos à Irlanda. Acompanhamos cada um desses momentos, alternando com o presente, quando uma tempestade os impede de entrar no décimo voo. Eles decidem embarcar em uma odisséia de escalas para desviar da tempestade e alcançar seu destino. Claro que se apaixonam, descobrindo que sempre tiveram sentimentos além da amizade. A jornada passa pela Argentina, Inglaterra e País de Gales, algo impensável do ponto de vista racional, mas que faz todo o sentido no contexto do Natal e da família de ambos. Há momentos divertidos aqui e ali, mas o livro não é inesquecível, como "Melancia" foi para mim. Mas, confesso, deu um quentinho lá no fundo do coração.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

antes que o café esfrie 3




E assim, sem parar, cheguei ao terceiro volume, que, particularmente, foi o melhor e mais bonito, emocionalmente falando. Não estamos mais no Funiculà Funiculà, cenário dos dois primeiros volumes. Agora estamos no Donna Donna, em Hokkaido, estabelecimento da mãe de Nagare, localizado precisamente aos pés do Monte Hakodate.


Imaginei algo assim para a bela vista descrita do café: 


"O outono chegou à grande janela do Donna Donna, de onde se avistam um céu azulzinho e o Porto de Hakodate. As folhagens, que se exibem em diferentes tons de vermelho, conferem um toque de romantismo ao ambiente interno do café."


Yukari Tokita é a mãe de Nagare, pessoa bastante excêntrica. Ela guarda um enigma em torno de si, sabendo conectar pessoas, independentemente do momento em que estejam. Ela se mudou para os Estados Unidos para ajudar um rapaz e pediu ao filho que desse uma olhada no seu café. E com ele vieram Kazu e sua filha, agora com sete anos, ou seja, apta a servir o café que leva as pessoas para o passado e o futuro. Ah, algo importante que eu não mencionei antes é que a pessoa só pode viajar no tempo uma única vez, portanto, é preciso muita prudência na escolha do momento certo. Contudo, conforme lemos as histórias, o momento é que nos escolhe.

Todas as histórias são entrecortadas com o bate-papo que ocorre no café, principalmente em torno de um livro que os personagens fixos estão lendo. Quando digo "fixo", quero dizer Nagare; Kazu; sua filha Sachi, que acaba de completar sete anos; Saki, médica frequentadora do local; Nakano, universitária que também está sempre por lá, e Reiji, que trabalha meio período no local, mas sonha em ser um comediante famoso.

Juntos, e muitas vezes puxados pela menina, que se mostra uma leitora assídua, eles respondem às 100 perguntas sobre o que fariam se o mundo acabasse amanhã. São perguntas simples e até bobas, mas que servem de base para as viagens que acontecerão.

A primeira traz a jovem que quer voltar ao passado para conhecer os pais que morreram quando ela ainda era pequena. Ela os culpa por todas as dificuldades que passou na vida, mudando de casa em casa e de família em família, sem nunca ter tido carinho e afeto.

Temos ainda o famoso comediante que volta ao passado para reencontrar a esposa que morreu. Ela, que sempre apoiou sua carreira, adoraria saber que agora ele está consagrado na profissão. Contudo, a intenção do homem é nunca retornar dessa viagem. Caberá aos personagens ajudarem a mudar sua opinião.

Em outro momento, uma mulher surge no café procurando pela irmã que lá trabalhou em alguns períodos. Ocorre que ela morreu e custa muito para a outra aceitar a perda. Neste caso, teremos uma visita do passado para consertar as coisas.

Reiji também volta ao passado (bem) recente para reencontrar Nakano. E esta, senhoras e senhores, é a parte mais triste e bonita da série até agora. Há um filme baseado no café produzido no Japão. Em breve, teremos outras versões pelo mundo. Sei que já temos o quinto volume. Mas decidi parar por aqui. E digo que valeu muito a experiência.

"O verão em Hakodate é breve. Quando se imagina que as folhas das árvores já começaram a cair, o Monte Hakodate, num piscar de olhos, se tinge de vermelho outonal como se ardesse em chamas."


Trechos

"Eis o que penso. A morte jamais deveria causar infelicidade. O destino de todos nós é morrer um dia. A razão deste meu pensamento é simples: se a morte de uma pessoa for motivo de infelicidade, isso significa que nós, seres humanos, nascemos para ser infelizes. Muito pelo contrário, isto está longe de ser verdade. As pessoas sempre nascem para ser felizes. Sempre."

"Dizem que é bom a gente oferecer o que se tem de mais precioso a alguém que está se esforçando para realizar seus sonhos. Porque haverá com certeza momentos em que essa pessoa se sentirá sem forças para prosseguir. Será difícil, doloroso e ela terá que colocar numa balança seus sonhos e a realidade, e fazer uma escolha. Nesse momento, a pessoa que recebeu esse presente tão valioso vai se convencer de que ela pode se empenhar um pouco mais. Porque ela perceberá que no final das contas não está sozinha. Ganhará ainda mais coragem por saber que há alguém torcendo por ela."

"Dentre as muitas paisagens, a Ladeira Daisan é um dos famosos pontos turísticos devido à beleza de seu pavimento de pedras e ao exotismo das muitas tonalidades de vermelho das folhagens dos freixos ladeando o caminho imprimindo à paisagem ares de país estrangeiro."

"O mais difícil é viver sem mentir", escreveu Fiodor Dostoiévski. Mente-se por diversas razões. Para parecer melhor do que se é ou com o intuito de ludibriar. Certas mentiras ferem, outras salvam. Na maioria dos casos, no entanto, quem mente se arrepende."

sábado, 23 de dezembro de 2023

antes que o café esfrie 2



"Ver a alegria estampada no rosto da outra pessoa. Essa é a emoção natural de quem oferece um presente. O tempo passa rápido quando se escolhe algo com a intenção de alegrar a outra pessoa, imaginando sua reação ao recebê-lo."

E cheguei no segundo volume da série japonesa "Antes que o café esfrie". Aqui reencontramos Nagare e Kazu. Kei, a esposa de Nagare, já não está mais presente. Mas conhecemos a filha do casal, Miki, de sete anos. Outros clientes habituais do café são apresentados, como Kyoko, que passou a frequentar o estabelecimento por conta da sua mãe, que também é professora de Kazu, mas que está doente e acaba morrendo. Aliás, a história dela é tema de um dos capítulos. Lembrando que cada capítulo diz respeito a uma viagem ao tempo. Claro que no meio de tudo isso, conhecemos um pouco mais sobre os personagens principais, sempre presentes na cafeteria.

E assim ficamos sabendo que apenas as mulheres da família Tokida são aptas a servir o café. Mas isso somente até engravidarem. E quando dão à luz uma menina, o "poder" é automaticamente transferido para a nova garota quando ela completar sete anos. Exatamente o que acontece lá pelas tantas, já que Kazu engravida, perdendo seus poderes.

Voltando aos personagens viajantes, começamos com um homem que mentiu para a filha. Na verdade, ela não é sua filha, e sim de seu amigo, que morreu junto com a esposa em um acidente. Mas agora chegou o momento de esclarecer a situação e ele não sabe exatamente como agir, por isso, decide voltar ao passado para rever o amigo e pedir conselhos. Na sequência, o irmão de Kyoko surge no café, após a morte da mãe, para se despedir, já que diversas circunstâncias (e fracassos da vida) o impediram de participar, inclusive, do funeral.

Em outro momento, um homem surge na cadeira vindo direto do passado. Ele quer se encontrar com a namorada. Ao que tudo indica, ele morrerá e quer se certificar de que ela seguirá a vida feliz. Vale dizer que ele é amigo de outra pessoa que usou a mesma cadeira no volume um. Aliás, nesse sentido, o livro é bem prolixo, resumindo todas as histórias anteriores aqui. E, claro, nem preciso dizer das regras, relembradas a todo momento. Um pouco chato isso, devo dizer.

Por fim, temos um detetive aposentado que traz um presente para sua esposa. No entanto, faz anos que ela morreu sem que ele tivesse tido a oportunidade de lhe dar um presente de aniversário. O remorso o acompanhou durante todo este tempo, até que resolve, finalmente, viajar para resolver o mal entendido, mesmo sabendo que seja lá o que fale ou faça no passado, não poderá mudar o fato de que ela morreu em um assalto. 

Em paralelo a estas histórias, também acompanhamos o dilema de Kazu, que serviu café para a mulher de branco, Kaname, sua mãe. Ela deixou o café esfriar e não retornou da viagem, ficando condenada a passar os dias sentada na cadeira. Como distração ou seja lá o que for, ela sempre está lendo um livro. O MESMO LIVRO. Até que um dia Kazu resolve dar outro romance para ela. Depois disso, sempre está a buscar livros que a mãe, mesmo sendo um fantasma, possa gostar. Aliás, esta mulher também é bem caricata. Sempre mal humorada, quando encontra alguém na sua cadeira, grita: "Sai daí!", além de ter o poder de fazer o intruso congelar. Contudo, lá pelas tantas, descobrimos que ela não era bem assim. Ainda é um mistério o que de fato aconteceu com ela, por que vai ao banheiro uma vez por dia, o que acontece quando surge alguém do futuro na cadeira. Temos muitas coisas para descobrir. Vou para o terceiro volume, do que percebi ser uma série. Até lá.

domingo, 10 de dezembro de 2023

antes que o café esfrie



"O presente não tinha mudado - mas essas duas pessoas tinham. Tanto Hirai quanto Kohtake voltaram para o presente de coração mudado, prontas para seguir em frente."

Comecei a ler este livro sem expectativas. Aliás, faz tempo que o vi aqui e ali, mas sem chamar muita atenção a ponto de comprá-lo. Mas eis que começou a aparecer com frequência (olha o que é uma boa distribuição). Gosto de café quente e resolvi entrar, mesmo que num romance, nesta cafetaria escondida em Tóquio, cenário da história criada por Toshikazu Kawaguchi, originalmente uma peça de teatro.

Lá, podemos voltar ao passado e reencontrar pessoas com as quais temos questões pendentes. Mas não é tão simples assim. Há várias regras que precisam ser entendidas e aceitas. A principal delas é que somente é possível encontrar quem já esteve naquele café. Outra importante: independentemente do que se fale ou faça nessa viagem ao tempo, o presente não será alterado. Há vários fatores que farão com que ele permaneça exatamente igual. Ou seja, se voltarmos para encontrar alguém que já morreu, não adianta dizer para a pessoa ficar em casa para evitar um acidente de carro. O destino fará com que ela morra de qualquer jeito. A pessoa também só pode voltar ao passado ao se sentar em determinada cadeira. O problema é que lá está uma mulher vestida de branco lendo, bem concentrada, seu livro. E ela só se levanta de lá uma vez por dia. Logo, descobrimos que é um fantasma, mais uma curiosidade deste local mágico. Enfim, a viagem começa quando o café é servido ao viajante e só dura até que ele esfrie. Portanto, o tempo é curto e precisa ser aproveitado da melhor forma possível.

Esses são os principais requisitos. E logo conhecemos pessoas que se encaixam super bem nessas regras. A primeira é uma moça que acabou de levar um fora do namorado. Ela quer voltar exatamente para o momento em que tiveram a conversa final, na expectativa de dizer coisas que ficaram presas em sua garganta. Temos ainda a enfermeira que quer voltar ao passado para falar com o marido que hoje tem Alzheimer e não a reconhece mais. Outra a sentar-se naquela cadeira é uma frequentadora do café, que deixou escapar a chance de atender ao pedido de sua única irmã, morta num acidente de carro. Por fim, conhecemos a proprietária do café que também resolve viajar no tempo para encontrar a filha que talvez jamais chegue a conhecer. O bacana do livro é que parecem vários contos interligados pelo café mágico.

Logo de cara, nossa atenção é atraída pelos personagens, muitas vezes caricatos, que frequentam o Funiculà Funiculà, nome do café. Temos Naguro, o proprietário; Kazu, sua prima enigmática - a única apta a servir o café que permite a tal viagem; Key, esposa de Naguro; a mulher de vestido branco, que mais tarde descobrimos ser a mãe de Kazu, além dos clientes habituais da cafeteria.

Vou seguir com o volume dois, pois realmente me empolguei com as histórias, apesar de ser repetitivo - especialmente em relação às regras, como se estivéssemos chegando na história junto com a pessoa disposta a viajar no tempo. É tudo bem previsível, ainda assim, gostoso de ler. Literatura fantástica que mostra a importância das relações. Até o próximo post.

sábado, 4 de novembro de 2023

entre cabras e ovelhas


"Minha mãe diz que o calor faz
as pessoas terem comportamentos estranhos."


Toda a história de "Entre cabras e ovelhas", de Joanna Cannon, se passa durante o verão escaldante na Inglaterra de 1976. E este é o motivo dado para o desaparecimento da Sra. Creasy, mistério que vai permear toda a trama. O cenário é uma vila bem peculiar. Logo, imaginei uma espécie de condomínio com uma rua larga e várias casas dispostas em cada lado. Lá, todos se conhecem e se intrometem uns na vida dos outros. Eu me lembrei da vila do seriado mexicano Chaves, talvez porque as casas sejam todas numeradas e assim referenciadas quando falamos dos personagens que lá habitam. Quem não se lembra da "bruxa do 71", por exemplo? Na narrativa de Cannon, temos Walter Bishop, que mora no número 11, residência mostrada como sinistra e que levanta várias suspeitas. As crianças cresceram sendo orientadas a passarem longe daquele lugar.

A narrativa é, principalmente, sob o ponto de vista de Grace, que tem 10 anos. Enquanto os adultos estão perdidos em fofocas e conjecturas, ela e sua melhor amiga, Lilly, decidem começar sua própria investigação para descobrir onde a Sra. Creasy foi parar. Com o sol brilhando incansável no céu, batem de porta em porta atrás de pistas. O pretexto para abordar as pessoas é Deus, já que a religião está bem presente entre os moradores. Mas, conforme a leitura avança, percebemos que é, na verdade, fachada para esconder suas verdadeiras motivações. Após assistirem a uma missa, as meninas se questionam sobre Deus, e querem descobrir se ele mora na vizinhança, afinal, é o único que poderia saber do paradeiro da desaparecida.

"Olhei fixamente para a grande cruz dourada no altar. Ela refletia todos nós: os piedosos e os imorais, os oportunistas e os devotos. Cada um de nós tinha sua razão para estar ali, silenciosos, expectantes e ocultos entre as páginas de um hinário. Como Deus conseguiria ouvir a todos nós?"

Mas o que encontram são histórias, mágoas e remorsos. Somos apresentados a vários personagens, seus segredos e relações com a Sra. Creasy. Ao que tudo indica, ela era uma espécie de conselheira na comunidade e, por isso, conhecia profundamente as mazelas que lá pairavam. Portanto, seu sumiço poderia interessar a muitos. Não sabemos o quanto das mensagens as duas garotas conseguem apreender por conta da idade e da inocência.

Contudo, à medida que a trama avança, as meninas começam a questionar os julgamentos que, de acordo com a metáfora bíblica, rotulam as pessoas como cabras ou ovelhas (bem e mal, respectivamente). E, frequentemente, essas categorizações são feitas com base em mal-entendidos ou informações incompletas, como vemos nas fake news. Até mesmo Grace se depara com um momento de julgamento ao roubar a atenção de sua amiga, que está gravemente doente, durante um "encontro" com Jesus. Sim, Jesus também faz uma aparição marcante no romance, contribuindo para reunir os vizinhos e aliviar algumas tensões. Entretanto, como sempre acontece, basta outro acontecimento para que os olhares e as atenções se desviem.

No final, não sabemos por onde andou a Sra. Creasy, mas somos levados a supor que seu desaparecimento esteja ligado a uma tentativa de expor as questões não resolvidas entre os moradores e, assim, buscar uma reconciliação com o passado. Isso nos leva a uma profunda reflexão sobre a natureza da comunidade e como todos são, ao mesmo tempo, cabras e ovelhas.


O calor é real

Ah, sim, o verão de 1976 na Inglaterra é historicamente conhecido por ter sido excepcionalmente quente. Ele é frequentemente referido como o "Verão da Seca" porque, além das temperaturas elevadas, não chovia.

Joanna Cannon utilizou esse cenário real para criar a atmosfera opressiva e tensionada de "Entre Cabras e Ovelhas". O calor intenso e a seca não são apenas pano de fundo para a história, mas também amplificam a sensação de desconforto e tensão na comunidade retratada no livro. A situação climática excepcional serve como metáfora para os sentimentos reprimidos e os segredos escondidos pelos personagens.


Cabras e ovelhas

Vale também falar sobre a metáfora utilizada utilizando cabras e bodes. No Novo Testamento da Bíblia, há uma parábola contada por Jesus sobre o Julgamento Final em que as pessoas são separadas como "ovelhas" e "cabras". De acordo com Mateus 25:31-46, no dia do julgamento, Jesus separará as pessoas, assim como um pastor separa as ovelhas das cabras. As ovelhas, à sua direita, serão abençoadas e entrarão no Reino dos Céus, enquanto as cabras, à sua esquerda, serão amaldiçoadas e enviadas ao "fogo eterno".

"Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo.

…..

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar'. Também estes responderão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?' Então o Rei responderá a esses: 'Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizerem isso a um desses pequeninos, foi a mim que não fizeram'. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna."

Nesta parábola, as ovelhas representam os justos, aqueles que ajudaram os necessitados, enquanto as cabras representam aqueles que os negligenciaram.

"Como é que Deus pode saber quais pessoas são cabras e quais são ovelhas. Olhei para Eric Lamb e para o sr. Forbes, que arrumava o hinário da sra. Forbes para ela. Olhei para a sra. Roper esfregando os pés, para o garçom do bar da Legião, para os dois velhos, que ainda estavam de cabeça baixa e sussurravam para si mesmos. E depois olhei para o pároco, que nos olhava do alto do seu pequeno lance de escadas. — Acho que é aí que está o problema — retruquei. — Nem sempre é fácil saber a diferença."

As cabras e bodes são frequentemente percebidos de forma mais negativa em comparação às ovelhas, e isso pode ser atribuído a diversas razões. Uma delas é sua natureza física e comportamental. Eles têm uma reputação de serem teimosos e independentes. Em contraste, as ovelhas são muitas vezes vistas como criaturas dóceis e mais fáceis de serem 'gerenciadas'.

No Antigo Testamento, temos o ritual do "bode expiatório". Os pecados da comunidade eram simbolicamente colocados sobre um bode que era mandado para o deserto, carregando esses pecados. Esse ritual, ao longo do tempo, solidificou a conotação negativa para o bode, como algo que carrega o mal ou o pecado.

A prática do "bode expiatório" é descrita no livro de Levítico, especificamente no capítulo 16. Esta passagem detalha o ritual do Dia da Expiação, em que dois bodes eram selecionados: um para ser sacrificado e o outro para ser enviado ao deserto. A prática simbolizava a purificação dos pecados do povo e o restabelecimento de seu relacionamento com Deus. O bode que era enviado ao deserto carregava consigo os pecados da comunidade, simbolizando a remoção do pecado do meio do povo.

"Depois de oferecer o bezerro como sacrifício pelo seu próprio pecado, e de ter feito a expiação por si mesmo e pela sua família, Aarão pegará os dois bodes e os apresentará diante de Javé, na entrada da tenda da reunião. Tirará a sorte sobre os dois bodes: um será de Javé e o outro de Azazel, pegará o que foi sorteado para Javé e o oferecerá como sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode que foi sorteado para Azazel, será colocado vivo diante de Javé, para fazer a expiação, e depois será mandado para Azazel no deserto. Aarão oferecerá o bezerro do sacrifício pelo seu próprio pecado. Em seguida fará o rito de expiação por si mesmo e por sua família, e imolará o bezerro."


No livro de Joanna Cannon, o título serve como uma metáfora para julgamento, pertencimento e compreensão. Certamente, é um excelente ponto de partida para uma análise sobre animais na literatura e suas conexões simbólicas e metafóricas.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

trança



"Como milhares de mulheres país afora, Sarah Cohen era partida em duas. Era uma bomba prestes a explodir."

"A menininha, de repente, parece perdida, tão frágil que Smita tem vontade de pegá-la no colo e nunca mais largá-la."

"Giulia então lê, durante horas, poesia, prosa, romance. Chegou minha vez de ler histórias para ele, pensa. Ele leu tantas para mim. E ela sabe que, lá onde está, seu papa está ouvindo."


Essa foi a indicação de uma amiga. Imediatamente, me apaixonei pela edição linda, em especial a capa e as páginas douradas. O romance de estreia da francesa Laetitia Colombani nos apresenta três mulheres em três diferentes países. A primeira é Smita, indiana da casta mais baixa. Ela é recolhedora, ofício transmitido de mãe para filha. Em poucas palavras, ela recolhe diariamente a merda das castas mais altas. Casada, tem uma filha de seis anos. Seu sonho é que Lalita não tenha que sentir o nojo desse trabalho, e que ela possa estudar e ter outras oportunidades. Para isso, consegue economizar para que a filha possa ir para a escola, porém, as coisas não saem como planejado e elas precisam fugir. Na Itália, encontramos Giulia, que segue os passos do pai. Ela trabalha no estúdio dele, um lugar super especializado na produção de perucas a partir de cabelos naturais das sicilianas. Ocorre que ele sofre um acidente e com isso vem à tona que o lugar, passado de geração em geração, está afundado em dívidas. Caberá a Giulia a decisão de fechar as portas considerando a tradição da região em que vive ou enfrentar os preconceitos e partir para mudanças que possam garantir a sobrevivência do seu ofício. Por fim, somos apresentados à Sarah, advogada canadense. Ambiciosa, ela não mede esforços para ascender na carreira. Está prestes a assumir o posto mais alto da firma que trabalha quando é detida por uma doença. Ela até tenta disfarçar e seguir adiante, sabendo que não pode se mostrar fraca, mas o ambiente corporativo tem outras prioridades e, aos poucos, a descarta. Isso faz com ela repense sua vida e o relacionamento com os três filhos, que sempre ficaram em segundo plano. Tudo é contato de um jeito tão leve, sucinto e tocante. No fim, as três vão, de algum modo, se encontrar. Ou melhor, se entrelaçar, mostrando a força que as nossas escolhas têm para mudar destinos até então tidos como certos. Basta dar o primeiro passo e não olhar para trás. Até pode, desde que isso não lhe impeça de recuar. Recomendo e já quero ler mais de Colombani.




Palermo, Itália


Montreal, Canadá 


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

relatos de um gato viajante


Por conta da leitura de "O gato que amava livros", de Sosuke Natsukawa, cheguei até "Relatos de um gato viajante", romance lindo de chorar da escritora japonesa Hiro Arikawa. A maior parte da narrativa é feita por Nana, gato que ganhou este nome por conta de seu rabo em formato de sete. Nana é sete em japonês. A associação foi feita por Satoru Miyawaki, que foi quem salvou o gatinho após ele ser atropelado. Antes disso, a relação entre ambos já existia, uma vez que Nana dormia em cima da van de Satoru. Ao se acidentar, o felino não teve dúvidas a quem pedir ajuda. Resultado: foram cinco anos juntos. Cada um respeitando o espaço do outro, como pede um bom gato de rua, nas palavras do próprio Nana.

Até que um dia, Satoru disse que precisavam encontrar outro lar para Nana. Algo irreversível impedia que os dois continuassem juntos. "Não precisa dizer mais nada. Sou um gato muito sagaz, já entendi tudo." Sim, de fato ele sabia como vamos descobrir mais tarde.

E, dessa forma, sem mais explicações, partem na van para uma viagem pelo Japão. A cada parada, Nana é apresentado ao seu suposto novo lar e tutores, enquanto Saturo revê amigos e relembra sua própria história. Temos ainda as divertidas impressões de Nana sobre o que está acontecendo e sobre sua relação com o seu humano, por quem tem grande respeito e amor.

Monte Fuji: paisagem que encantou Nana

Nana, mesmo tendo traços humanizados e estereotipados comumente atribuídos aos gatos - orgulho, sagacidade, uma pitada de arrogância -, destila para o leitor o coração emocional de um gato: são companheiros leais, afetuosos e incrivelmente perspicazes. Não tenho dúvida sobre o que Nana disse sobre os gatos serem verdadeiramente poliglotas, compreendendo todos os idiomas, enquanto nós, humanos, muitas vezes falhamos em decifrar a linguagem dos animais. Jornada emocionante e sem apelos, mesmo quando descobrimos os motivos da viagem. O livro toca temas profundos como o luto, amizade e a beleza efêmera dos momentos cotidianos. Fiquei inspirada para explorar lugares como o Monte Fuji e Hokkaido, tão bem retratados na obra. Virou filme no Japão. Já gostei do trailler.

sábado, 30 de setembro de 2023

o gato que amava livros



"Livros têm alma.
Um livro querido sempre terá uma alma.
Voltará para ajudar o leitor em tempos de crise."


Em "O gato que amava os livros", o escritor japonês Sosuke Natsukawa nos apresenta a literatura fantástica japonesa voltada ao público jovem adulto. Leitura rápida e instigante, conta a história de Rintaro Natsuki, garoto do ensino médico bastante recluso, que passa a maior parte do tempo na livraria do avô. Leitor assíduo, conhece, com riqueza de detalhes, grandes obras literárias e filosóficas, especialmente as do ocidente.

Seu avô acaba de morrer, e ele terá que abandonar a livraria para morar com uma tia distante. Diante desse cenário, sua introspecção intensifica-se, chegando ao ponto de se recusar a ir à escola. Ele é um hikikomori, palavra japonesa para definir jovens totalmente avessos ao convívio social.

Eis que surge Sayo, amiga de sala que insiste que ele saia de casa (ou da livraria) e volte às aulas. Mas quem realmente vai movimentar a vida do rapaz é um gato falante, claramente inspirado no gato de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, um dos pseudônimos do escritor britânico Charles Lutwidge Dodgson. O felino aparece para pedir que o rapaz o ajude a resgatar livros que estão em perigo. A partir daí, partem para aventuras em labirintos no fundo da loja. Juntos, enfrentarão quatro situações bem curiosas.

No primeiro labirinto, os livros estão condenados a ficarem sempre guardados a sete chaves após terem sido lidos uma única vez. No segundo, os livros são destinados a perder todos os seus detalhes e características que os fizeram grandes obras, pois a ideia ali é resumi-los ao máximo possível (alguns em apenas uma linha), para que mais pessoas possam ter acesso a eles. Na terceira empreitada, vão parar na maior editora do mundo. Lá, os livros literalmente despencam das grandes torres. A premissa é que se deve escrever apenas o que vende. Caso contrário, os livros perecerão, já que a demanda é por autoajuda e temas de consumo rápido. Cabe a Rintaro convencer os responsáveis por cada local a mudar de ideia, reforçando a importância da leitura.

Já no quarto labirinto, é recebido por uma mulher misteriosa e, aparentemente, sem emoção, que vai colocar na balança todos os prós e contras do que foi visto antes. Seria ela a voz da razão mostrando que, afinal de contas, o que estava acontecendo nos ambientes anteriormente visitados refletem a realidade do mundo editorial? E que mais do que se prender ao passado, é preciso explorar outras possibilidades para garantir a sobrevivência dos livros? Ou indo além? A tradição é importante, porém, precisamos nos abrir ao novo.

Rintaro está preso à tradição e aos costumes, especialmente os passados pelo avô, a quem muito admira e respeita. Durante seus argumentos contra os que "destruíram" os livros (guardando-os para que ninguém os visse, cortando-os para resumir ou aceitando o supérfluo), as lembranças do avô sempre emergiram, dando a ele respostas para reverter as situações e salvar as obras. Em dois dos labirintos, ele é acompanhado pela amiga Sayo. Segundo o gato, apenas algumas pessoas especiais conseguem vê-lo e ela é uma delas, consequentemente está apta a visitar esses lugares mágicos.

A mitologia grega apresenta o Labirinto de Creta, não apenas como um espaço para confinar o Minotauro, uma figura indesejada pela sociedade, mas também como um caminho tortuoso de desafios e autodescoberta. Neste romance, os labirintos não apenas guardam os livros, eles representam a jornada interior de Rintaro, refletindo sua evolução e crescimento ao longo da narrativa.

Interessante a figura do gato. Sarcástico, some e aparece sem dar satisfações, age como se fosse a própria consciência de Rintaro trabalhando para que ele possa dar conta de seus dilemas. Com a morte do avô, ele precisa deixar a livraria, local onde estão todas suas memórias afetivas. Apesar de não ser o que quer, sabe que para um garoto de ensino médio não é viável ficar sozinho. Ao mesmo tempo há as obrigações da idade, como a escola. Em contraponto, tem Sayo, por quem começa a ter sentimentos que vão além da amizade. No meio de tudo, chama a atenção outro personagem, o cara mais popular da escola, que contrariando as expectativas de Rintaro e Sayo, admira o nosso hikikomori e tem nele e na livraria Natsuki a inspiração para ler grandes clássicos. Importante observar que, em japonês, natsu significa verão. E ki significa esperança ou raro. Portanto, uma tradução aproximada do nome poderia ser "Esperança de Verão" ou "Raridade de Verão".

Há esperança para a literatura? "O gato que amava os livros" mostra que sim, principalmente ao apontar o quanto perdemos ao deixar de lado livros considerados difíceis, por exemplo. Lá pelas tantas, Rintaro provoca a amiga ao lhe indicar Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Ela diz que está com dificuldades na leitura e ele afirma que isso é bom, pois o livro está lhe mostrando outras perspectivas. Quando a leitura é fácil, é porque tudo o que está ali já foi visto e aceito. É linda a passagem em que o protagonista relembra um diálogo com o avô, que compara a leitura com uma escalada? 

" Se você vai escalar, escale uma montanha alta. A vista do topo será muito melhor."

Há outros trechos bem instigantes sobre como temos nos livros amigos fiéis, que sempre nos darão as respostas que precisamos.

"Existem histórias atemporais, poderosas o suficiente para sobreviverem ao longo dos anos. Leia muitos desses livros; serão como amigos para você. Eles vão te inspirar e dar apoio."

Contudo, sabemos as dificuldades que os livros enfrentam, o quanto os grandes clássicos são ignorados em prol de leituras mais fáceis e vendáveis. Mas não será isso que vai nos fazer desistir de uma boa história ;-)
 

Trechos

"Os livros têm um poder extraordinário. Esse era o mantra de seu avô. Para dizer a verdade, o velho não era muito falante, mas, quando o assunto eram livros, de repente ele se enchia de vida. Os olhos quase cerrados abriam caminho para um sorriso largo, e as palavras voavam da boca com uma energia extasiada: — Existem histórias atemporais, poderosas o suficiente para sobreviverem ao longo dos anos. Leia muitos desses livros; serão como amigos para você. Eles vão te inspirar e dar apoio."


"Ler um livro é muito parecido com escalar uma montanha."

"Ler não é só um prazer ou entretenimento. Às vezes, você precisa examinar as mesmas linhas a fundo, ler as mesmas frases várias e várias vezes. Às vezes, você fica lá sentado com a cabeça nas mãos e só progride em um ritmo árduo e lento. E o resultado de todo esse trabalho duro e desse estudo cuidadoso é que, de repente, seu campo de visão se expande. É como encontrar uma bela vista ao final de uma longa escalada. Sob a luz da lâmpada antiquada, o avô de Rintaro tomou um gole de chá, calmo e confiante, parecendo um velho mago sábio de algum romance de fantasia. — Ler pode ser exaustivo. Os olhos do velho cintilaram por trás dos óculos de leitura. — Claro que é bom ter prazer em ler. Mas as vistas que se pode ter em caminhadas leves e agradáveis são limitadas. Não condene a montanha pelas trilhas íngremes. Também é uma parte valiosa e agradável da escalada o esforço de subir uma montanha passo a passo. Ele esticou a mão fina e ossuda e a colocou sobre a cabeça do garoto. — Se você vai escalar, escale uma montanha alta. A vista do topo será muito melhor. Apressar-se implica perder muitas coisas. Andar de trem pode levar ao longe, mas é um equívoco pensar que isso permitirá ver mais coisas. Flores na sebe e pássaros no topo das árvores são acessíveis apenas a quem vai caminhando com os próprios pés. Rintaro ponderou tudo isso antes de se aproximar do estudioso."

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

de repente, nas profundezas do bosque



"A professora Emanuela explicou à classe como é um urso, como os peixes respiram e que sons a hiena produz à noite. Ela também pendurou na sala gravuras de animais e aves. Quase todos os alunos debocharam dela, porque nunca na vida tinham visto um animal sequer. E muitos deles não acreditaram que existissem no mundo tais criaturas. Pelo menos nas redondezas."


(Esta é uma leitura, à luz da literatura animalista, de um livro lido há bastante tempo. Inclusive com menção aqui neste blog.)


"De repente, nas profundezas do bosque", do israelense Amós Oz, beira a literatura fantástica. É uma fábula sobre como nos relacionamos com o diferente por meio de uma alegoria animalista.

Imagine uma aldeia onde não existe bicho algum? Nada no ar, na terra ou no rio. Nem mesmo insetos ou vermes. Lá, a ideia do que é animal passa somente pela oralidade, pelos desenhos da professora Emanuela e pelas esculturas em madeira do ex-pescador Almon, que agora cuida do seu pomar e horta, já que não há mais peixes nos rios.

"Somente por essas estatuetas, bem como pelos desenhos feitos pela professora Emanuela na lousa, as crianças conheciam o aspecto de um cachorro, do gato, da borboleta, do peixe, do pintinho, do cabrito e do bezerro. A professora Emanuela também ensinou a algumas crianças as vozes dos animais, vozes que os adultos da aldeia com certeza ainda lembravam da infância, antes que as criaturas desaparecessem, mas as crianças jamais as ouvira em toda a vida." 

Ninguém sabe dizer por que os animais desapareceram. O que se conta é que certa noite, há muito tempo, todos os animais saíram da aldeia seguindo o demônio Nehi, que habita o bosque vizinho. Há quem diga que tudo não passa de lenda, pois as pessoas têm certo desconforto em afirmar que já existiram outras formas de vida na aldeia. Ao mesmo tempo em que param para refletir sobre seus animais de estimação, pássaros etc, elas imediatamente sacodem a cabeça para espantar essas lembranças, envergonhadas. Seria culpa? Medo? Ou consciência coletiva da responsabilidade pelo sumiço inexplicável.

"Já fazia muitos anos que todos os animais dessa aldeia e das redondezas haviam desaparecido, vacas, cavalo e carneiros, gansos, gatos e canários, cachorros, aranhas domésticas e lebres. Nem mesmo um pintassilgo vivia lá. Nenhum peixe restara do rio. As cegonhas e os grous rodeavam os vales em suas jornadas errantes. Até mesmo os insetos e os vermes, até as abelhas, moscas, formigas, minhocas, mosquitos e traças não eram vistos havia muitos anos. Os adultos que ainda lembravam em geral preferiam calar-se. Negar. Fingir" 

A professora Emanuela perdeu sua gatinha Tigresa que tinha acabado de ter três filhotes. Naquela fatídica noite, eles sumiram deixando apenas dois fios de bigode, a bolota de lã que brincavam e o cheirinho azedo das lambidas. Foram dias de sofrimento para a pequena Emanuela, na época com dez anos. Hoje, ela não é mais "tão nova". O fato de não ter conseguido o marido, apesar das aparentes tentativas, e sua insistência em retratar os bichos fazem com que seja ridicularizada. Fora da escola, está sempre sozinha.

"Certa noite, noite de tempestade, desapareceram todos os animais da aldeia, mamíferos, aves, peixes, répteis e larvas, e no dia seguinte de manhã restaram apenas os habitantes e seus filhos. Emanuela, que naquele tempo tinha dez anos, chorou semanas e semanas de saudades da sua gata tigresa Tima, que teve três filhotes, dois listrados como a mãe, e um amarelinha e travesso, que gostava de se disfarçar de meia enrolada e se esconder dentro de uma bota. Naquela noite terrível desapareceram a gata e os filhotes, e deixaram para trás a gaveta de sapatos estofada vazia debaixo do armário de roupas." 

O mesmo acontece com o pescador, ou ex-pescador, Almon, que distribui figuras de animais entalhadas na madeira para as crianças. Por rememorar de forma intensa os velhos tempos com animais, ele, que perdeu, além dos peixes dos rios, seu cachorro Zito, é tido como louco, principalmente porque fala muito e tem como confidente um espantalho, que fincou nas suas plantações.

"Almon discutia com o espantalho, às vezes longamente e com raiva. Ajeitava-o, repreendia-o, abandonava-o completamente, e logo voltava, trazendo uma velha cadeira; sentava-se diante do espantalho e tentava, com uma paciência infinita, convencê-lo, ou pelo menos fazê-lo alterar um pouco as suas opiniões inflexíveis."

Há ainda uma terceira pessoa que também acredita nos animais: Nimi, garoto desgrenhado, sujo, com roupas rasgadas, nariz escorrendo, e que vive falando sobre seus sonhos com os animais retratados pela professora, o suficiente para ser considerado excêntrico. Até que ele desaparece por dias e volta com a doença do relincho, nome dado à transformação de algumas pessoas em animais. No caso de Nimi, ele volta literalmente relinchando como um cavalo, mostrando seus dois dentes protuberantes e separados da frente, o que reforça o simbolismo da transformação, evocando a própria natureza humana e sua relação intrincada com a animalidade, o que aproxima essa passagem do romance "A Metamorfose" de Franz Kafka, no qual o protagonista acorda metamorfoseado em um inseto gigante.

"A turma ria dele quando chegava contando, logo pela manhã, como seus sapatos marrons, que durante a noite ficavam ao lado da sua cama, se transformava em dois ouriços que se arrastavam e examinavam o quarto a noite inteira, mas de manhã, quando ele abria os olhos, os ouriços voltavam de repente a ser um simples par de sapatos ao lado da cama." (p.8)

Os personagens são marginalizados não apenas por acreditarem na existência dos animais, mas também por outras características estigmatizadas: a solteirice, o ato de falar sozinho e o rótulo de "sujo". Esses elementos atuam como símbolos das normas sociais restritivas que promovem a conformidade e marginalizam o diferente. A solteirice questiona padrões sociais, falar sozinho pode representar a busca por uma voz autêntica, e o rótulo de "sujo" aponta para a visão preconceituosa que categoriza certos grupos como inferiores ou menos dignos de aceitação. Juntos, esses símbolos oferecem uma crítica à rigidez e à intolerância social.

Outro que contraiu a doença do relincho foi Guinom, o pastor de ovelhas e marido de Solina, a costureira. Dizem que naquela noite ele saiu em busca de seus animais e voltou contaminado. Parou de falar, definhando aos poucos e passando a viver como um cabrito. Cabe à sua esposa cuidar dele como se fosse um bebê.

"Solina, a costureira, passeava com o marido inválido pelas ruelas da aldeia. O homem inválido, Guinom, se curvou tanto com o passar dos anos que Solina podia, sem nenhuma dificuldade, acomodá-lo num velho carrinho de bebê para levá-lo até a margem do rio.


Durante o trajeto, tanto na ida como na volta, Guinom emitia um balido fino e choroso, porque a doença do esquecimento fez com que ele pensasse que era um cabrito." 

A pequena comunidade tem ainda o jovem Danir, o consertador de telhados, que, no fim da tarde, encontra-se com os amigos para se divertir. Ele sempre diz que vai atrás dos animais com seus ajudantes, o que inevitavelmente acaba com a conversa, deixando os demais assombrados com suas palavras. Outra personagem que sente pelos animais é Lília, padeira e mãe de Maia, que insiste em jogar migalhas de pão para os peixes inexistentes do rio.

"... ele jurava que dali a pouco, uma semana, um mês, acompanhado de seus ajudantes ele haveria de descer os vales distantes, e dos vales não voltariam a pé, mas num comboio de carroças atreladas a cavalos e carregadas de cem tipos de aves, animais, peixes e insetos, e passariam de casa em casa, espalhando animais por toda parte e despejando peixes vivos no nosso rio. Assim a aldeia voltaria a ser exatamente como era antes daquela maldita noite, e pronto. Ao ouvir uma conversa como essa, o grupo se calava de tanto assombro: as palavras que Danir pronunciava não divertiam o grupo, mas cobriam a praça de uma sombra carregada e repentina." 

A população cultiva crenças sobre o bosque, local proibido e temido. Lar do demônio Nehi, que toda noite volta para capturar os desprotegidos. Por isso, todas as portas são trancadas ao escurecer, e não sobra viva alma nas ruas. Durante o dia, todos seguem a rotina de casa, trabalho, escola e passeios em horários pré-definidos. A narrativa sugere que tudo na vila ocorre de forma automática. Cada um possui seu papel definido e realiza o esperado, como deve ser. O que se desvia disso é considerado errado, motivo de deboche.

Observando e refletindo sobre esse cenário, temos duas crianças. A menina Maia e o menino Mati. Eles são amigos e planejam adentrar o bosque para investigar o que está por trás do desaparecimento dos animais, principalmente após se depararem com um peixe vivo que os encara, expondo-se e expondo-os, assim como o gato de Jacques Derrida, que nos leva a questionar o olhar do animal e a complexidade do seu mundo interior, como abordado em "O Animal que Logo Sou". Nesta obra, o pensador francês desafia os paradigmas tradicionais da filosofia ao se aprofundar na relação entre seres humanos e animais. Ele provoca reflexões sobre o olhar do animal, questionando se podemos verdadeiramente compreender a profundidade dos pensamentos e emoções que residem por trás dele. Derrida nos leva a considerar o "olhar do outro", especialmente o olhar do animal, como uma abertura para uma vastidão de significados e sentidos que escapam à nossa compreensão limitada. Assim como o gato que olha e é olhado por Derrida, Maia e Mati são confrontados com a mesma questão: o que será que reside no olhar desse peixe? Esta conexão intrincada entre a observação, a interpretação e a possibilidade de uma subjetividade animal mais profunda é uma linha de investigação que Derrida empreendeu, e que também ecoa nas explorações das crianças.

"Que me dá a ver esse olhar sem fundo? Que me `diz`ele que manifesta em suma a verdade nua de todo olhar, quando essa verdade me dá ver nos olhos do outro, nos olhos vendo e não apenas visto pelo outro? Penso aqui nesses olhos que veem ou nesses olhos de vidente cuja cor seria preciso ao mesmo tempo ver e esquecer." 

"Era um peixe pequeno, um peixinho, com comprimento de meio dedo, com escamas prateadas e nadadeiras delicadas, branqueadas, espelhadas e trêmulas. O olho de peixe redondo e arregalado ao máximo mirou os dois por um instante como se sugerisse a Maia e Mati que todos nós, todos os seres vivos sobre este planeta, pessoas e animais, aves, répteis, larvas e peixes, na realidade todos nós estamos bem próximos um dos outros, apesar de todas as muitas diferenças entre nós: pois quase todos temos olhos para ver formas, movimentos e cores, e quase todos nós ouvimos vozes e ecos, ou pelo menos sentimos a passagem da luz e da escuridão através da nossa pele. E todos nós captamos e classificamos sem parar cheiros, gostos e sensações." 

Eles cumprem a promessa, entram no bosque e, no caminho, encontram o esconderijo de Nimi. Para surpresa de ambos, ele não está relinchando. Fala normalmente e afirma que a doença foi uma desculpa para se ver livre da escola, dos pais, dos vizinhos e, especialmente, das zombarias. Assim, ele pode se refugiar na caverna sem ter que dar satisfação a ninguém. Mais um motivo para os dois amigos refletirem sobre seus próprios atos. Afinal, não teriam eles próprios debochado de Nimi?

Seguindo o caminho, encontram o que procuram. Pássaros, peixes, vacas, ratazanas e todo tipo de bicho vivendo juntos com Nehi. O demônio que a vizinhança tanto temia é, na verdade, Neman, garoto que fora motivo de chacotas por ser diferente, esquisito. Apesar de seus esforços, jamais conseguiu ser como os demais, encontrando apenas nos animais o consolo que precisava. Rapidamente, aprendeu a falar cachorrês, gatês e outros idiomas que lhe permitiram se aproximar de todas as espécies. Até que decidiu partir. E junto com ele foram todos os animais. Hoje, bem mais velho, vive rodeado de todas as espécies, vivendo pacificamente.

"Mati ergueu os olhos em direção às copas das densas árvores, e viu e ouviu pela primeira vez na vida a tagarelada de multidões de pássaros, as variadas vozes que cantavam e pulavam, e o farfalhar das asas e o movimento inesperado daquelas criaturas que saltavam e pulavam de galho em galho. Às margens do riacho e nas piscinas naturais que se formavam, repousavam as aves aquáticas, com uma perna mergulhada na água e a outra dobrada, o bico cor-de-rosa a afundar de repente na água em busca de alimento. Uma profunda e suave calma encheu o peito de Mati, uma calma da qual não tinha lembrança em toda a sua vida, a não ser, talvez, na memória oculta e obscura, memória por trás de toda memória, memória que continha o sossego de um bebê de fraldas saciado, com os olhos fechados, envolvido em doçura, adormecendo junto ao peito da mãe enquanto ela murmurava com sua voz quente uma canção de ninar." (p 90/91)

Na sua jornada pela floresta, Nehi se depara com a carnemônia, planta cujo sabor se assemelha ao da carne. É essa descoberta que vai permitir que presas e predadores vivam juntos, sem um ter que matar o outro para sobreviver. Ao trazer esse tema à tona, Oz levanta os dilemas éticos presentes na alimentação humana. A organização Humane Society International (HSI) estima que o número de animais criados e abatidos para consumo por ano no mundo chegue a 88 bilhões. Essa preocupação ética ressoa com a obra de J.M. Coetzee, "A Vida dos Animais", na qual a personagem Elizabeth Costello argumenta que "somos todos animais" e questiona o "túmulo humano que criamos para eles [os animais]" em nossas práticas alimentares. A descoberta da carnemônia por Nehi pode ser interpretada como intervenção literária nesse debate ético. Assim como Elizabeth Costello nos incita a repensar a dieta onívora, a introdução da planta na história de Oz desafia nossas justificativas habituais para práticas que resultam em abate em massa. A obra de ambos os autores nos convida a contemplar a possibilidade de um mundo onde alternativas à carne, e coexistência pacífica, sejam não apenas imagináveis, mas também viáveis.

"Muitos anos atrás, em um vale escondido, atrás de sete cordilheiras e depois de sete vales profundos, numa de suas excursões solitárias Nehi descobriu um pequeno arbusto que dava umas frutinhas brancas e roxas com sabor muito parecido com o da carne. Nehi denominou as frutas desse arbusto carnemônias. Ele plantou sementes de carnemônia por todo bosque, cultivando e disseminando os arbustos, porque entendeu que todos os animais carnívoros gostavam do sabor da carnemônia, e se alimentavam dela com gosto, e assim não precisavam mais abater criaturas mais fracas do que eles. E também não sentiam mais o desejo de abater. Assim Nehi conseguiu aos poucos habituar o tigre a se divertir com cabritos pequenos, e logo a cuidar de rebanhos de carneiros, e até adormecer entre eles, de modo que a lã macia lhe esquentasse o corpo nas noites frias. Assim nenhum animal nunca mais abateu outro em toda a extensão dessas matas, e animal nenhum nunca mais teve medo dos predadores. Mas não esqueceram completamente."

Lá nas profundezas do bosque, todos encontram um lugar onde são aceitos pelo que são. Não há mais sofrimento, zombarias, deboches e intolerância (até a questão da alimentação foi resolvida). Maia e Mati, porém, argumentam que ao tirar os animais de cena, Nehi também causou muita dor. A professora Emanuela sofreu. Almon sofreu. Não sentiria ele próprio saudades do convívio humano? Por um instante, Nehi reflete e afirma que sente falta das pessoas, do aconchego de um lar. Que vira e mexe ele volta à aldeia para ver como todos estão vivendo. Que ao observar as famílias reunidas, sente um aperto no coração. Mas que seu lugar é realmente ali no bosque. E que não voltará pelos animais, que muito padeceram nas mãos humanas. Ele não tem dúvida de que as pessoas ficarão felizes em receber seus cães, gatos e cavalos. Mas o que acontecerá com os ratos, insetos e vermes?

"Noite após noite Nehi, o demônio da montanha, desce de seu palácio negro atrás dos montes e dos bosques, visita as casas como um mau espírito, procura sinais de vida, e se por acaso encontra um grilo perdido, ou um único vaga-lume que veio parar aqui arrastado sabe-se lá de que distância pelos ventos do inverno, ou até mesmo um besouro ou uma formiga, imediatamente estende seu manto escuro, envolve e aprisiona toda criatura viva, e antes de o sol nascer retorna voando ao seu palácio assombrado, para além dos últimos bosques nas alturas dos montes eternamente cercados de nuvens." 

Pode ser que a ideia de Amós Oz tenha sido usar os animais para falar sobre a intolerância de humanos para outros humanos (ou outros considerados menos humanos), mas seu livro traz importantes pontos que nos ajudam a entender a forma com que nos relacionamos com os animais.

Enquanto escrevo, minha atenção é capturada por Billy, meu cachorrinho, que retribui o olhar. Nele, encontro o mesmo olhar que Maia e Mati trocaram com o peixe. O que reside no olhar dos animais? Este olhar nos convida a questionar a profundidade dos pensamentos e emoções dos animais. Portanto, quando nos deparamos com o olhar desses animais na história, somos convidados a enxergar para além do óbvio, a explorar as camadas ocultas de significado e a considerar a riqueza da experiência animal que, de acordo com Derrida, permanece em grande parte inexplorada e incompreendida pelos humanos.

Tanto que neste exato momento, milhares de animais estão sendo mortos para diversos fins: alimento, vestuário, entretenimento. Em que momento o homem se viu no direito de se colocar acima de todos eles?

Repleta de simbolismos, a narrativa retrata uma sociedade que expulsa o diferente e que ridiculariza quem não se enquadra, falando não apenas dos animais, mas de qualquer ser que porventura seja diferente da maioria. E usa, para isso, o recurso de uma literatura quase fantástica, mas que não deixa de ser realista, por trazer em suas entrelinhas a intolerância cotidiana e banal, que ridiculariza, isola e mata.

"E o que acontecerá se os grandes e ricos camponeses, esses cujos pais estudaram comigo na sala da professora Rafaela, a mãe da professora Emanuela, o que acontecerá se eles começarem outra vez a bater nos cachorros com bastão, e a açoitar os cavalos com chicotes de couro, e a envenenar os gatos de rua, e a afogar os ratos em tonéis de água, e se de novo tornarem a sair com suas espingardas para matar gazelas, corças e raposas para comerciar suas peles, e armarem todo tipo de armadilhas para as lebres e para os gansos selvagens? E se de novo estenderem suas redes para pescar os peixes do rio?"

Nas profundezas do bosque, todos vivem juntos. Ilustração: Freepik

sábado, 29 de julho de 2023

contos de fada


"Acho que às vezes nós sabemos aonde estamos
indo mesmo quando achamos que não sabemos."

Suspense de primeira. Apesar do título, não estamos diante de uma história bonitinha. Afinal, é um romance de Stephen King, autor de O Iluminado, It: a coisa e outros tantos romances de dar medo. Mas há conto de fadas e é bem bonito. Fala sobre um garoto de 17 anos, Charlie Reade, que perdeu a mãe muito cedo de forma bem trágica. O pai, como consequência, teve sérios problemas com a bebida, de modo que o filho teve que se virar sozinho, o que inclui cozinhar, cuidar da casa e ainda dar conta das obrigações da escola. Depois de alguns episódios de rebeldia, que são contados ao longo da narrativa, seu foco foi para o esporte, no qual teve grande destaque.

Estava num momento até que bom da vida, com o pai recuperado do alcoolismo, quando ao passar na frente da casa do seu vizinho mais hostil, ouve latidos que chamam a sua atenção. Era algo parecido com um pedido de ajuda, uma súplica. Sem pensar, ele invade a residência e se depara com o velho Howard Bowditch caído no chão ao lado da sua cadela, Radar. Apesar da rabugice do homem, logo eles se tornam amigos, especialmente por conta da pastora alemã, que rapidamente ganha o amor de Charlie.

Bowditch, mesmo com todos os cuidados recebidos, morre e deixa para o garoto um legado. A partir daí, sua vida dá uma reviravolta e ele vai parar em um universo paralelo para salvar a cachorrinha, que está bem debilitada. Adianto: ela não morre no final. É importante saber isso porque se você for como eu, deve fugir de livros ou filmes em que os animais morrem. No fundo da casa de Bowditch há um barracão que esconde um poço que leva a Empis, outro mundo repleto de seres fantásticos. Tudo com muita referência aos contos de fadas que conhecemos, como João e o Pé de Feijão, Mágico de Oz, Alice, A Pequena Sereia. Há ainda menções a autores do suspense e terror, como H.P. Lovecraft. Tudo é contado em primeira pessoa pelo Charlie mais velho, e escritor, relembrando seu passado e, especialmente, a grande aventura que envolve monstros, relógio do tempo que faz todos os seres rejuvenescerem, pessoas que ficam acinzentadas, que perdem, literalmente, os sentidos (sem boca, sem olhos, sem orelhas), castelos que se movem, jogos mortais (bem no estilo da série coreana Round 6). E, claro, princesas e muita magia. Nesta terra, é visto por seus habitantes como o príncipe que vai salvá-los da maldição e de Elden, o grande vilão. Quem leu (ou assistiu a adaptação para as telas) de "História sem fim", do alemão Michael Ende, também fará algumas analogias, sobretudo em relação ao jovem herói. Gostei muito da reflexão de Charlie sobre o quão crível é sua história ao comparar, por exemplo, uma pessoa do início do século passado aterrisando em uma grande cidade, com helicópteros, cinema 3D, smartphones e outras tecnologias que fazem parte do nosso dia a dia. É tudo relativo, afinal. Pensando bem, a história é bonitinha, sim. Vale a leitura! Aliás, posso dizer que é o segundo livro fofo de SK que leio. O outro foi Joyland, que recomendo.

"E a magia, você pergunta? O relógio de sol? Os soldados noturnos? Os prédios que às vezes pareciam mudar de forma? Eles consideravam normal. Se você acha isso estranho, imagine um viajante no tempo sendo transportado de 1910 para 2010 e encontrando um mundo onde as pessoas voam pelo céu em aves metálicas gigantes e andam em carros que atingem cento e cinquenta quilômetros por hora. Um mundo em que todo mundo anda por aí com computadores poderosos nos bolsos. Ou imagine um cara que só viu alguns filmes mudos em preto e branco sendo colocado na primeira fila de um cinema imax para ver Avatar em 3D. A gente se acostuma com o fantástico, é isso. Sereias e imax, gigantes e celulares. Se é no seu mundo, você aceita. É maravilhoso, né? Mas se olharmos de outra forma é horrível."


A representação dos animais

Dentro desta obra de Stephen King, a multiplicidade de relações entre seres humanos e animais evidencia uma rede de significados. Na narrativa, os animais desempenham funções diversificadas e são essenciais para o desenvolvimento da trama. Radar, a fiel cachorra, é protagonista e desempenha importante papel ao conectar Charlie ao universo paralelo. A ligação entre eles é profunda e verdadeira, tornando-os companheiros de aventura. Radar, em um momento decisivo, demonstra sua lealdade ao salvar Charlie.

Outro animal que carrega grande simbolismo, e frequentemente é referenciado pelos habitantes de Empis, é a borboleta monarca. Milhares delas caem mortas cobrindo a cidade com seus corpos quando o vilão toma o poder. Ao mesmo tempo, outras tantas sobrevivem e serão essenciais para que Empis reencontre a paz.

A jornada de Charlie neste mundo é marcada também pelo encontro com um gigante grilo vermelho, Snab, que ele salva das mãos de um anão que o estava agredindo. O seto, dito por Charlie, ser tão raro 'quanto cervos albinos', aparece de forma emblemática, carregando consigo um toque sagrado.

Já o frango é central para um dos eventos mais trágicos do romance. A busca pelo "melhor frango da região" acaba sendo o estopim para o trágico acidente que leva à morte da mãe do protagonista. Aparece frequentemente nas refeições dos personagens, inclusive em Empis. Mas em nenhum momento é tido como ser vivo que é. A associação com as refeições ressalta a dimensão onde os animais são vistos sob um prisma utilitário, reafirmando o papel que lhes é atribuído em nossa sociedade.

Há animais que são considerados repugnantes e, geralmente, associados à sujeira, ao submundo. É o caso do rato. Os ratos na obra de King, em particular, são retratados de forma poderosa e assustadora. Descritos como moradores escondidos das paredes e dos lugares escuros, eles são invocados em massa e se tornam instrumentos de uma vingança terrível contra um dos vilões. Enquanto alguns são eletrocutados pelo caminho, outros continuam a avançar, mordendo e devorando. Este evento ressalta a imagem do rato como uma criatura associada a horrores ocultos, mas também à retaliação e à justiça. Neste contexto, eles não são meramente repulsivos; têm um papel essencial no desenrolar dos acontecimentos.

Temos também a égua da princesa de Empis, Falada, cuja crina foi meticulosamente decorada, sugerindo sua importância ou até mesmo reverência. Sua participação não é apenas figurativa. Leah perdeu a boca e usa Falada para se comunicar pela técnica ventricular.

Há ainda Catriona, a desconfiada gata de um dos sobreviventes da família real de Empis. Assim como Radar, ela exemplifica o conceito mais tradicional e afetivo de animal enquanto parte da família.

A transformação do vilão em polvo e a figura da sereia, morta durante a destruição de Empis, evocam o "devir-animal", conceito discutido por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este "devir" não é uma evolução, mas sim uma série de conexões e intensidades entre diferentes entidades. Esta fusão entre identidades, onde o humano e o animal se entrelaçam, pode ser comparada com a "Metamorfose" de Kafka. Gregor Samsa, ao se transformar em inseto, confronta-se não apenas com sua nova forma, mas com toda a gama de implicações sociais e existenciais que ela carrega.

Outros animais aparecem aqui e ali, como gansos e lobos. Muitos apenas citados.

Em resumo, King, através de sua narrativa, nos instiga a refletir profundamente sobre as complexidades das nossas relações com o mundo animal, e como nossos entendimentos teóricos podem ser simultaneamente desafiados e enriquecidos por essas interações.


Trechos

"Dora colocou uma chaleira no fogo, serviu o ensopado e voltou para o fogão. Pegou canecas no armário (como as tigelas, eram meio caroçudas) e um pote do qual tirou chá. Chá comum, eu esperava, não algo que fosse me deixar chapado. Eu já estava me sentindo bem fora de mim. Ficava pensando que aquele mundo ficava abaixo do meu, de alguma forma. Era uma ideia difícil de afastar, porque eu tinha descido para chegar lá. Mas havia céu acima. Eu me sentia como Charlie no País das Maravilhas, e se tivesse olhado pela janela redonda do chalé e visto o Chapeleiro Maluco saltitando pela estrada lá fora (talvez com um gato sorridente no ombro), eu não teria ficado surpreso. Ou melhor, mais surpreso. A estranheza da situação não mudou o quão faminto eu estava; tinha estado nervoso demais para tomar um bom café da manhã antes de sair. Ainda assim, esperei até ela levar as canecas e se sentar. Era educação básica, claro, mas também achei que ela poderia querer fazer algum tipo de oração; uma versão zumbida de Abençoado seja o alimento que vamos comer. Ela não fez isso, só pegou a colher e fez sinal para eu comer. Como falei, estava delicioso. Peguei um pedaço de carne, mostrei para ela e ergui as sobrancelhas."