"Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão."
Logo na primeira frase de "Literatura e Animalidade", Maria Esther Maciel afirma que ainda estamos longe de entender os animais.
Este enunciado estabelece o tom de seu estudo, que desafia a percepção tradicional dos animais como meros objetos ou símbolos à disposição do entendimento humano.
A autora comenta ainda a maneira com que tratamos os animais, variando conforme a utilidade que apresentam para nós.
"Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados, eles não se deixam, paradoxalmente, capturar em sua alteridade radical."
Ao questionar o que é humano e o que é animal, Maciel aponta para as tentativas científicas de definir essa relação, frequentemente apoiadas na racionalidade e na "máquina antropológica do humanismo". Este termo critica a tendência do pensamento humanista ocidental de colocar os humanos no centro do universo, assumindo uma superioridade inerente sobre o mundo natural, incluindo os animais.
A separação entre humanos e animais, acentuada no Ocidente durante o século 18 com a ascensão do pensamento cartesiano, tratava os animais como meras máquinas sem alma. Sob essa visão, estudos científicos rigorosos, como a taxonomia de Lineu, começaram a moldar a investigação zoológica, influenciando também o surgimento dos primeiros zoológicos na Europa.
Após essa introdução, a atenção se volta para o campo do imaginário e para espaços considerados alternativos do saber humano, "nos quais a palavra animal ganha outros matizes, inclusive socioculturais". Maciel aborda a evolução na forma como se denomina obras literárias que trazem o animal. Antes, falava-se em bestiário, termo que ela critica devido às suas conotações negativas e medievais.
"Além disso, por suas origens medievais, o termo deriva da besta, palavra completamente contaminada pela carga simbólica negativa que lhe foi conferida pela tradição judaico-cristã ao longo dos tempos, afinando-se, por extensão, com a noção de bestialidade - qualidade daquilo que é brutal, grosseiro, monstruoso e maligno."
Assim, o termo bestiário esvazia o animal de anima, reforça sua dimensão negativa e marca sua exclusão da sociedade dos chamados "seres racionais".
Surge, felizmente, o termo zooliteratura, mais abrangente e que consolida tudo o que se diz sobre os animais nas diferentes práticas literárias.
"Conjunto de diferentes práticas literárias ou obras (de um autor, de um país, de uma época) que se voltam para os animais. Nesse sentido, é bem mais aberto e menos cristalizado que o termo bestiário, uma vez que este se inscreve sobretudo na ordem do inventário, do catálogo, designando uma série específica de bichos reais e imaginários, podendo, também - de forma mais genérica -, designar uma coleção literária e/ou iconográfica de animais imaginários ou existentes de um determinado autor ou período cultural."
A autora baseia-se, sobretudo, na obra "O animal que logo sou", do filósofo francês Jacques Derrida, que utilizou o termo zooliteratura ao abordar os animais de Francis Ponge e zoopoética para falar dos animais de Franz Kafka. Ao preferir esses termos ao do bestiário, Derrida os transforma em conceitos que abrangem obras literárias focadas nos animais.
"O termo zoopoética poderia ser empregado para designar tanto o estudo teórico de obras literárias e estéticas sobre animais quanto a produção poética específica de um autor, voltada para esse universo 'zoológico', como fez Derrida."
Dentro deste contexto, a obra de Franz Kafka, especialmente A Metamorfose (1915), é precursora na inserção de animais para além da visão antropocêntrica, inaugurando uma tradição literária que explora a interseção entre o humano e o não humano através de uma crítica profunda. Ao transformar o protagonista, Gregor Samsa, em um inseto, Kafka traz à tona a animalidade do humano por meio de uma situação surreal que ilumina as qualidades animais inerentes aos humanos. Essa abordagem kafkiana influenciou muitas obras literárias subsequentes, que, embora ainda recorram a alegorias derivadas de bestiários antigos e fábulas tradicionais, agora incorporam essa nova perspectiva, redefinindo o campo da zooliteratura ocidental.
"Trata-se, por isso, de uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade. Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no paradoxo, visto que, ao mesmo tempo que são e devem ser mantidas - graças às inegáveis diferenças que distinguem os animais humanos dos não humanos -, é impossível que o sejam mantidas de modo idêntico, já que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos."
Maciel traz inúmeros exemplos a partir de suas análises que justificam seu enunciado e tese. Da Argentina, ela discute as obras de Jorge Luis Borges, como "Manual de zoología fantástica" e "O livro dos seres imaginários", que exploram criaturas reais e mitológicas, expandindo o imaginário animal na literatura. Do Brasil, destaca João Guimarães Rosa com "Meu tio o Iauaretê", que explora a metamorfose e a relação mística entre humanos e animais no sertão brasileiro. Também inclui Clarice Lispector, com "A paixão segundo G.H." e "O búfalo", que tratam da introspecção e da alteridade animal, e Machado de Assis, com "Ideias de canário" e outras obras que questionam a racionalidade humana em comparação com o saber animal.
Da África do Sul, ela aborda J.M. Coetzee e suas obras "Desonra" e "A vida dos animais", que exploram as questões éticas e políticas relacionadas ao tratamento dos animais na sociedade, revelando a marginalização e a violência enfrentadas por esses seres. De Portugal, Maciel menciona autores como Herberto Helder, cujas obras "Última ciência" e "Poemaco" exploram a presença dos animais na poesia, e António Osório, que, em um de seus escritos traz a comunicação das vacas por meio do olhar. Esses são apenas alguns exemplos.Vale a leitura completa para absorver tudo o que esta obra nos proporciona.
Nenhum comentário:
Postar um comentário