"Minha mãe diz que o calor faz
as pessoas terem comportamentos estranhos."
as pessoas terem comportamentos estranhos."
A narrativa é, principalmente, sob o ponto de vista de Grace, que tem 10 anos. Enquanto os adultos estão perdidos em fofocas e conjecturas, ela e sua melhor amiga, Lilly, decidem começar sua própria investigação para descobrir onde a Sra. Creasy foi parar. Com o sol brilhando incansável no céu, batem de porta em porta atrás de pistas. O pretexto para abordar as pessoas é Deus, já que a religião está bem presente entre os moradores. Mas, conforme a leitura avança, percebemos que é, na verdade, fachada para esconder suas verdadeiras motivações. Após assistirem a uma missa, as meninas se questionam sobre Deus, e querem descobrir se ele mora na vizinhança, afinal, é o único que poderia saber do paradeiro da desaparecida.
"Olhei fixamente para a grande cruz dourada no altar. Ela refletia todos nós: os piedosos e os imorais, os oportunistas e os devotos. Cada um de nós tinha sua razão para estar ali, silenciosos, expectantes e ocultos entre as páginas de um hinário. Como Deus conseguiria ouvir a todos nós?"
Mas o que encontram são histórias, mágoas e remorsos. Somos apresentados a vários personagens, seus segredos e relações com a Sra. Creasy. Ao que tudo indica, ela era uma espécie de conselheira na comunidade e, por isso, conhecia profundamente as mazelas que lá pairavam. Portanto, seu sumiço poderia interessar a muitos. Não sabemos o quanto das mensagens as duas garotas conseguem apreender por conta da idade e da inocência.
Contudo, à medida que a trama avança, as meninas começam a questionar os julgamentos que, de acordo com a metáfora bíblica, rotulam as pessoas como cabras ou ovelhas (bem e mal, respectivamente). E, frequentemente, essas categorizações são feitas com base em mal-entendidos ou informações incompletas, como vemos nas fake news. Até mesmo Grace se depara com um momento de julgamento ao roubar a atenção de sua amiga, que está gravemente doente, durante um "encontro" com Jesus. Sim, Jesus também faz uma aparição marcante no romance, contribuindo para reunir os vizinhos e aliviar algumas tensões. Entretanto, como sempre acontece, basta outro acontecimento para que os olhares e as atenções se desviem.
No final, não sabemos por onde andou a Sra. Creasy, mas somos levados a supor que seu desaparecimento esteja ligado a uma tentativa de expor as questões não resolvidas entre os moradores e, assim, buscar uma reconciliação com o passado. Isso nos leva a uma profunda reflexão sobre a natureza da comunidade e como todos são, ao mesmo tempo, cabras e ovelhas.
O calor é real
Ah, sim, o verão de 1976 na Inglaterra é historicamente conhecido por ter sido excepcionalmente quente. Ele é frequentemente referido como o "Verão da Seca" porque, além das temperaturas elevadas, não chovia.
Joanna Cannon utilizou esse cenário real para criar a atmosfera opressiva e tensionada de "Entre Cabras e Ovelhas". O calor intenso e a seca não são apenas pano de fundo para a história, mas também amplificam a sensação de desconforto e tensão na comunidade retratada no livro. A situação climática excepcional serve como metáfora para os sentimentos reprimidos e os segredos escondidos pelos personagens.
Cabras e ovelhas
Vale também falar sobre a metáfora utilizada utilizando cabras e bodes. No Novo Testamento da Bíblia, há uma parábola contada por Jesus sobre o Julgamento Final em que as pessoas são separadas como "ovelhas" e "cabras". De acordo com Mateus 25:31-46, no dia do julgamento, Jesus separará as pessoas, assim como um pastor separa as ovelhas das cabras. As ovelhas, à sua direita, serão abençoadas e entrarão no Reino dos Céus, enquanto as cabras, à sua esquerda, serão amaldiçoadas e enviadas ao "fogo eterno".
"Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo.
…..
Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar'. Também estes responderão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?' Então o Rei responderá a esses: 'Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizerem isso a um desses pequeninos, foi a mim que não fizeram'. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna."
Nesta parábola, as ovelhas representam os justos, aqueles que ajudaram os necessitados, enquanto as cabras representam aqueles que os negligenciaram.
"Como é que Deus pode saber quais pessoas são cabras e quais são ovelhas. Olhei para Eric Lamb e para o sr. Forbes, que arrumava o hinário da sra. Forbes para ela. Olhei para a sra. Roper esfregando os pés, para o garçom do bar da Legião, para os dois velhos, que ainda estavam de cabeça baixa e sussurravam para si mesmos. E depois olhei para o pároco, que nos olhava do alto do seu pequeno lance de escadas. — Acho que é aí que está o problema — retruquei. — Nem sempre é fácil saber a diferença."
As cabras e bodes são frequentemente percebidos de forma mais negativa em comparação às ovelhas, e isso pode ser atribuído a diversas razões. Uma delas é sua natureza física e comportamental. Eles têm uma reputação de serem teimosos e independentes. Em contraste, as ovelhas são muitas vezes vistas como criaturas dóceis e mais fáceis de serem 'gerenciadas'.
No Antigo Testamento, temos o ritual do "bode expiatório". Os pecados da comunidade eram simbolicamente colocados sobre um bode que era mandado para o deserto, carregando esses pecados. Esse ritual, ao longo do tempo, solidificou a conotação negativa para o bode, como algo que carrega o mal ou o pecado.
A prática do "bode expiatório" é descrita no livro de Levítico, especificamente no capítulo 16. Esta passagem detalha o ritual do Dia da Expiação, em que dois bodes eram selecionados: um para ser sacrificado e o outro para ser enviado ao deserto. A prática simbolizava a purificação dos pecados do povo e o restabelecimento de seu relacionamento com Deus. O bode que era enviado ao deserto carregava consigo os pecados da comunidade, simbolizando a remoção do pecado do meio do povo.
"Depois de oferecer o bezerro como sacrifício pelo seu próprio pecado, e de ter feito a expiação por si mesmo e pela sua família, Aarão pegará os dois bodes e os apresentará diante de Javé, na entrada da tenda da reunião. Tirará a sorte sobre os dois bodes: um será de Javé e o outro de Azazel, pegará o que foi sorteado para Javé e o oferecerá como sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode que foi sorteado para Azazel, será colocado vivo diante de Javé, para fazer a expiação, e depois será mandado para Azazel no deserto. Aarão oferecerá o bezerro do sacrifício pelo seu próprio pecado. Em seguida fará o rito de expiação por si mesmo e por sua família, e imolará o bezerro."
No livro de Joanna Cannon, o título serve como uma metáfora para julgamento, pertencimento e compreensão. Certamente, é um excelente ponto de partida para uma análise sobre animais na literatura e suas conexões simbólicas e metafóricas.