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sábado, 4 de novembro de 2023

entre cabras e ovelhas


"Minha mãe diz que o calor faz
as pessoas terem comportamentos estranhos."


Toda a história de "Entre cabras e ovelhas", de Joanna Cannon, se passa durante o verão escaldante na Inglaterra de 1976. E este é o motivo dado para o desaparecimento da Sra. Creasy, mistério que vai permear toda a trama. O cenário é uma vila bem peculiar. Logo, imaginei uma espécie de condomínio com uma rua larga e várias casas dispostas em cada lado. Lá, todos se conhecem e se intrometem uns na vida dos outros. Eu me lembrei da vila do seriado mexicano Chaves, talvez porque as casas sejam todas numeradas e assim referenciadas quando falamos dos personagens que lá habitam. Quem não se lembra da "bruxa do 71", por exemplo? Na narrativa de Cannon, temos Walter Bishop, que mora no número 11, residência mostrada como sinistra e que levanta várias suspeitas. As crianças cresceram sendo orientadas a passarem longe daquele lugar.

A narrativa é, principalmente, sob o ponto de vista de Grace, que tem 10 anos. Enquanto os adultos estão perdidos em fofocas e conjecturas, ela e sua melhor amiga, Lilly, decidem começar sua própria investigação para descobrir onde a Sra. Creasy foi parar. Com o sol brilhando incansável no céu, batem de porta em porta atrás de pistas. O pretexto para abordar as pessoas é Deus, já que a religião está bem presente entre os moradores. Mas, conforme a leitura avança, percebemos que é, na verdade, fachada para esconder suas verdadeiras motivações. Após assistirem a uma missa, as meninas se questionam sobre Deus, e querem descobrir se ele mora na vizinhança, afinal, é o único que poderia saber do paradeiro da desaparecida.

"Olhei fixamente para a grande cruz dourada no altar. Ela refletia todos nós: os piedosos e os imorais, os oportunistas e os devotos. Cada um de nós tinha sua razão para estar ali, silenciosos, expectantes e ocultos entre as páginas de um hinário. Como Deus conseguiria ouvir a todos nós?"

Mas o que encontram são histórias, mágoas e remorsos. Somos apresentados a vários personagens, seus segredos e relações com a Sra. Creasy. Ao que tudo indica, ela era uma espécie de conselheira na comunidade e, por isso, conhecia profundamente as mazelas que lá pairavam. Portanto, seu sumiço poderia interessar a muitos. Não sabemos o quanto das mensagens as duas garotas conseguem apreender por conta da idade e da inocência.

Contudo, à medida que a trama avança, as meninas começam a questionar os julgamentos que, de acordo com a metáfora bíblica, rotulam as pessoas como cabras ou ovelhas (bem e mal, respectivamente). E, frequentemente, essas categorizações são feitas com base em mal-entendidos ou informações incompletas, como vemos nas fake news. Até mesmo Grace se depara com um momento de julgamento ao roubar a atenção de sua amiga, que está gravemente doente, durante um "encontro" com Jesus. Sim, Jesus também faz uma aparição marcante no romance, contribuindo para reunir os vizinhos e aliviar algumas tensões. Entretanto, como sempre acontece, basta outro acontecimento para que os olhares e as atenções se desviem.

No final, não sabemos por onde andou a Sra. Creasy, mas somos levados a supor que seu desaparecimento esteja ligado a uma tentativa de expor as questões não resolvidas entre os moradores e, assim, buscar uma reconciliação com o passado. Isso nos leva a uma profunda reflexão sobre a natureza da comunidade e como todos são, ao mesmo tempo, cabras e ovelhas.


O calor é real

Ah, sim, o verão de 1976 na Inglaterra é historicamente conhecido por ter sido excepcionalmente quente. Ele é frequentemente referido como o "Verão da Seca" porque, além das temperaturas elevadas, não chovia.

Joanna Cannon utilizou esse cenário real para criar a atmosfera opressiva e tensionada de "Entre Cabras e Ovelhas". O calor intenso e a seca não são apenas pano de fundo para a história, mas também amplificam a sensação de desconforto e tensão na comunidade retratada no livro. A situação climática excepcional serve como metáfora para os sentimentos reprimidos e os segredos escondidos pelos personagens.


Cabras e ovelhas

Vale também falar sobre a metáfora utilizada utilizando cabras e bodes. No Novo Testamento da Bíblia, há uma parábola contada por Jesus sobre o Julgamento Final em que as pessoas são separadas como "ovelhas" e "cabras". De acordo com Mateus 25:31-46, no dia do julgamento, Jesus separará as pessoas, assim como um pastor separa as ovelhas das cabras. As ovelhas, à sua direita, serão abençoadas e entrarão no Reino dos Céus, enquanto as cabras, à sua esquerda, serão amaldiçoadas e enviadas ao "fogo eterno".

"Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo.

…..

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar'. Também estes responderão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?' Então o Rei responderá a esses: 'Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizerem isso a um desses pequeninos, foi a mim que não fizeram'. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna."

Nesta parábola, as ovelhas representam os justos, aqueles que ajudaram os necessitados, enquanto as cabras representam aqueles que os negligenciaram.

"Como é que Deus pode saber quais pessoas são cabras e quais são ovelhas. Olhei para Eric Lamb e para o sr. Forbes, que arrumava o hinário da sra. Forbes para ela. Olhei para a sra. Roper esfregando os pés, para o garçom do bar da Legião, para os dois velhos, que ainda estavam de cabeça baixa e sussurravam para si mesmos. E depois olhei para o pároco, que nos olhava do alto do seu pequeno lance de escadas. — Acho que é aí que está o problema — retruquei. — Nem sempre é fácil saber a diferença."

As cabras e bodes são frequentemente percebidos de forma mais negativa em comparação às ovelhas, e isso pode ser atribuído a diversas razões. Uma delas é sua natureza física e comportamental. Eles têm uma reputação de serem teimosos e independentes. Em contraste, as ovelhas são muitas vezes vistas como criaturas dóceis e mais fáceis de serem 'gerenciadas'.

No Antigo Testamento, temos o ritual do "bode expiatório". Os pecados da comunidade eram simbolicamente colocados sobre um bode que era mandado para o deserto, carregando esses pecados. Esse ritual, ao longo do tempo, solidificou a conotação negativa para o bode, como algo que carrega o mal ou o pecado.

A prática do "bode expiatório" é descrita no livro de Levítico, especificamente no capítulo 16. Esta passagem detalha o ritual do Dia da Expiação, em que dois bodes eram selecionados: um para ser sacrificado e o outro para ser enviado ao deserto. A prática simbolizava a purificação dos pecados do povo e o restabelecimento de seu relacionamento com Deus. O bode que era enviado ao deserto carregava consigo os pecados da comunidade, simbolizando a remoção do pecado do meio do povo.

"Depois de oferecer o bezerro como sacrifício pelo seu próprio pecado, e de ter feito a expiação por si mesmo e pela sua família, Aarão pegará os dois bodes e os apresentará diante de Javé, na entrada da tenda da reunião. Tirará a sorte sobre os dois bodes: um será de Javé e o outro de Azazel, pegará o que foi sorteado para Javé e o oferecerá como sacrifício pelo pecado. Quanto ao bode que foi sorteado para Azazel, será colocado vivo diante de Javé, para fazer a expiação, e depois será mandado para Azazel no deserto. Aarão oferecerá o bezerro do sacrifício pelo seu próprio pecado. Em seguida fará o rito de expiação por si mesmo e por sua família, e imolará o bezerro."


No livro de Joanna Cannon, o título serve como uma metáfora para julgamento, pertencimento e compreensão. Certamente, é um excelente ponto de partida para uma análise sobre animais na literatura e suas conexões simbólicas e metafóricas.

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