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sábado, 21 de setembro de 2024

mapa do coração



"Era perfeitamente possível sentir saudade de alguém que você nunca tinha conhecido, e ele era prova viva disso."

Quando se quer uma leitura rápida, os chick-lits sempre são uma boa pedida. Além de serem divertidos, esses livros costumam entreter de forma leve e agradável. "Mapa do coração", de Susan Wiggs, não se encaixa exatamente no gênero. A protagonista não é desastrada, nem se mete em confusões típicas desses romances, mas o livro está quase lá.

A história gira em torno de Camille Adams, de 36 anos, que mora com sua filha de 14, Julie. Seu marido, Jace, morreu há cinco anos, mas ela ainda não conseguiu superar a dor e a forma com que o perdeu. Elas moram em Bethany Bay, vila pitoresca localizada na baía de Chesapeake, na costa leste dos Estados Unidos. Esse cenário me remeteu a uma série que assisti com o mesmo nome, o que facilitou a visualização do lugar, que é realmente encantador. 

Camille e sua mãe têm uma loja no vilarejo, daquelas que vendem de tudo, sempre com itens bonitinhos destinados a alegrar as pessoas. Além disso, divide um estúdio de fotografia com um amigo que, sinceramente, não acrescenta nada à trama. Coitado, ele nem deveria estar lá – só é salvo pelo nome: Billy, o nome do meu cachorrinho lindo. Especialista em restaurar fotos antigas de rolos esquecidos pelo tempo, Camille acaba acidentalmente destruindo o filme de um renomado pesquisador e professor de história, o que quase arruina sua única chance de descobrir os últimos momentos de seu pai, morto na Guerra do Vietnã.

Mas é claro que nem tudo será perdido, e é óbvio que Finn será o novo amor de Camille. Contudo, ela ainda está bastante confusa. Precisa lidar com o medo de outro acidente, o que faz com que superproteja sua filha, impedindo que Julie saia, viaje ou mesmo pratique atividades que possam colocá-la minimamente em risco. Julie, por sua vez, sofre bullying na escola. O pai de Camille, Henry, está se recuperando de um câncer, o que também a deixa ainda mais apreensiva. 

No meio de tudo isso, um baú enviado da França, contendo fotos e objetos, revelará que a história de vida de Henry não é exatamente como Camille acreditava. Até então, sabia-se que a mãe de Henry, Lisette, havia morrido no parto, e seu pai fora morto após o fim da guerra. Porém, as imagens e relatos encontrados nos levam de volta à década de 1940, onde conhecemos a verdadeira história de amor de Lisette. Finn vai ajudá-los a desvendar esse mistério.

E, assim, todos viajam para o sul da França durante o verão, onde desfrutam de momentos inesquecíveis, fazem muitas descobertas, novas amizades e, mais importante, percebem que nunca é tarde para dar outro rumo à vida. Recomendo a leitura para as férias – seja na cadeira de praia, ao lado da lareira ou até mesmo durante o trajeto. Esse livro vai te ajudar a passar o tempo e, quem sabe, te inspirar a adicionar dois novos destinos ao seu roteiro de viagens, ou até considerar uma mudança mais definitiva. Tentem apenas, se possível, abstrair o excesso de clichês e diálogos melosos. Difícil, eu sei.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

a perfumista de paris



"​​Estou de volta a Agra, e o calor é opressivo. É como se o sol estivesse nos castigando por alguma ofensa de que só ele tem conhecimento. Sofremos em silêncio, esperando por seu indulto."

Que livro lindo, maravilhoso. Daqueles que nos fazem sonhar e realmente sentir todos os aromas presentes no texto. Saí sabendo um pouco mais sobre a indústria do perfume e sobre Agra, na Índia. Também foi muito gostoso revisitar alguns lugares em Paris onde estive. Sem contar a trilha sonora de jazz. Até reuni as músicas citadas em uma playlist no Spotify. Aliás, estou ouvindo enquanto escrevo este texto.

O livro fecha a trilogia Jaipur, da indiana Alka Joshi. No primeiro, "A pintora de henna", acompanhamos a trajetória de Lakshmi, que, com apenas 17 anos, foge de um casamento abusivo e de sua aldeia natal, chegando a ser considerada a melhor artista de henna de Jaipur. No segundo, "O guardião de segredos de Jaipur", temos uma passagem de tempo, e o foco é em Malik, o garotinho que ajuda Lakshmi em seu trabalho e que se tornou praticamente um filho. Agora, depois de mais alguns anos, temos a jornada de Radha, a irmã de Lakshmi. Elas só se conhecem depois da morte dos pais, quando Radha tinha apenas catorze anos. Sua vida não foi nada fácil, pois era conhecida como a menina do mau agouro, afinal, a irmã fugiu no ano em que ela nasceu. E, depois, muitas coisas ruins aconteceram com sua família. Radha também foge da aldeia e das fofoqueiras que a acusavam de tudo que dava errado por lá.

Anos mais tarde, está em Paris, casada com um francês, mãe de duas garotinhas e prestes a se tornar uma grande perfumista. Mas há problemas em todas as esferas. O marido, que ela conheceu enquanto ainda estava na Índia, não aceita seu trabalho, exigindo que ela passe mais tempo com a família; ela começa a receber queixas da escola da filha mais velha, que está agredindo as coleguinhas, e, no trabalho, sente que alguém a está boicotando.

Felizmente, surge a oportunidade de trabalhar em um grande projeto que homenageará a obra Olympia (1863), de Édouard Manet. Sua missão é reproduzir a fragrância que traduz a essência da mulher retratada na pintura, e que, de certa forma, também a representa. Essa busca a levará à Índia, especificamente até Agra, onde encontrará o aroma que faltava para sua criação. Laços do passado, que ela sempre fez questão de cortar, serão reatados, junto com uma tormenta de sentimentos. Ela também precisará de coragem e muita determinação para as decisões que terão que ser tomadas.

Tudo é contado de forma inebriante, colocando o leitor – pelo menos eu me senti assim – dentro da história. Vale cada página. Não queria mais sair do livro.


"Fecho os olhos, pensando em Olympia. Em como ela foi indecifrável. O único ingrediente que estava faltando para mim: água, chuva, névoa. O próprio véu que torna difícil vê-la com clareza. É por isso que ela nunca foi valorizada, que foi mal compreendida. No olho de minha mente, estou misturando as notas de topo, notas de corpo e notas de fundo que isolei. E então acrescento esse novo — para mim — precioso ingrediente: mitti attar. O cheiro da chuva."

sábado, 17 de agosto de 2024

a biblioteca dos sonhos secretos


"Um sonho não pode “acabar” enquanto você estiver dizendo “um dia”! Ele vai continuar para sempre sendo um lindo sonho. Mesmo não se concretizando, creio que essa também é uma forma de vida. Sonhar sem ter um plano definido não é uma coisa ruim. Isso torna seus dias alegres."

E terminei mais uma história que nos deixa a pensar nas várias possibilidades que temos. Mas que acabam se esvaziando por nossos receios, acomodação, opiniões alheias e outros empecilhos que, na grande maioria das vezes, só existem em nossa cabeça.

Com o subtítulo "uma história sobre a magia dos livros e seu poder de conectar pessoas", este livro da escritora japonesa Michiko Aoyama nos leva a conhecer cinco personagens que não sabem bem como lidar com seus problemas (eles e o mundo, não?). Podemos dizer que cada capítulo é um conto e que todos se entrelaçam de forma sutil. A narrativa, cheia de rituais, repetições e mensagens sobre a importância do agir, lembra muito a série "Antes que o café esfrie", de Toshikazu Kawaguchi, inclusive, por também ter um local que é comum a todos. Lá, uma cafeteria escondida. Aqui, uma biblioteca, nos fundos de um Centro Comunitário em um distrito de Tóquio.

Toda vez que alguém, por vários motivos, é levado até lá, eles, num primeiro momento, se deixam encantar pela mulher grande e branca, quase transparente, como alguns descrevem. E depois ficam hipnotizados quando ela pergunta o que procuram. Nesse momento, surgem pensamentos sobre os dilemas individuais pelos quais estão passando. E ela, após uma breve conversa, digita rapidamente no teclado (tatatataata, os dedos praticamente somem enquanto faz isso) e imprime uma folha com as indicações de leitura. As primeiras referentes à pesquisa dos livros que foram buscar e, por último, uma sugestão que será o grande despertar. Junto, a pessoa ganha um brinde feito por meio da feltragem de lã. Há caranguejo, gato, globo terrestre, frigideira, aviãozinho.

A primeira história é sobre Tomoka, 21 anos, vendedora de roupas femininas. Ela trabalha em uma loja de roupas num grande centro comercial. Mas não vê sentido no que faz e se sente fracassada por ter saído de uma cidade pequena e ser uma simples vendedora na capital japonesa. Chega a julgar, secretamente, outra vendedora da loja que está há anos trabalhando no estabelecimento. O que vai levá-la à biblioteca é a busca por livros que ensinam a usar o Excel, pois acredita que desta forma encontrará um trabalho melhor em escritório. Mas acaba encontrando motivação para ter uma vida mais saudável e valorizar os contatos diários. Tudo por conta de um livro infantil que lhe é indicado: Guri to Gura [Guri e Gura], texto de Rieko Nakagawa e ilustrações de Yuriko Omura, publicado por Fukuinkan Shoten.

Ryo, 35 anos. Sua história começa em uma loja de antiguidades quando ainda era aluno do ensino médio. Infelizmente, a loja fecha e ele segue alimentando o desejo de ter algo parecido. A vida o leva a trabalhar em uma fábrica de móveis como contador. Ele namora uma moça mais nova que está empenhada em ter uma loja online para vender os colares que cria. Na biblioteca, vai em busca de livros que possam ajudá-lo a retomar o sonho de ter uma empresa, mas encontra um livro sobre plantas, que vai lhe mostrar que é possível encontrar o equilíbrio entre um sonho e o que a realidade nos apresenta. Para tanto, sua inspiração será o dono de uma livraria especializada em gatos. Curioso o quanto há de gato na literatura recente japonesa. Está aí um tema a ser estudado. Aqui o livro que levou para casa: Eikoku Oritsu Engei Kyokai to Tanoshimu Shokubutsu no Fushigi [O mistério das plantas: o melhor da Sociedade Real de Horticultura Britânica], de Guy Barter, tradução de Ayako Kita, publicado por KAWADE SHOBO SHINSHA.

"Havia gatos ali… Um deles, tigrado, dormia sobre uma almofada. Parecia com o gato de feltro de lã que ganhei da bibliotecária. Havia mais dois, outro tigrado e um preto, caminhando à vontade entre as estantes."

Natsumi, 40 anos, ex-editora de revistas. Esta foi uma das passagens que mais gostei. A protagonista é casada e tem uma filha pequena. Ao retornar da licença-maternidade, ela, que era editora de uma revista, foi enviada a outro posto de trabalho, sob a alegação de que, agora sendo mãe, não daria conta da carga de trabalho do seu cargo anterior. Isso a derruba, porque ama o que fazia. Enquanto isso, também enfrenta problemas em casa, já que as tarefas não são divididas com o marido, que não teve que abdicar de nada em prol da paternidade. Mas ela sempre guardou um sonho no coração, que era editar livros. A partir da leitura que lhe é sugerida pela bibliotecária, as coisas vão começar a caminhar nesta direção: Tsuki no Tobira [A porta da lua] e Shinsoban Tsuki no Tobira [A porta da lua (nova edição)], de Yukari Ishii, publicado por Hankyu Communications (primeira edição) e CCC Media House (nova edição).

Hiroya, 30 anos, desempregado. Ele gosta de mangás e sempre almejou viver por meio de seus desenhos. Mas até então nunca encontrou alguém que o apoiasse, pelo contrário. Vive com a mãe e, apesar de se envergonhar da sua situação, não tem forças para mudar. Resultado, vive de bicos e nunca se identificou com nenhum trabalho. Vai parar na biblioteca porque a mãe pede que ele vá ao Centro Comunitário fazer algumas compras. E lá se depara com a leitura que vai lhe inspirar a seguir adiante. O primeiro passo será ele próprio trabalhar no Centro Comunitário. O livro: Visual Shinka no Kiroku Darwintachi no Mita Sekai [Registro da evolução ilustrado: o mundo visto por Darwin e seus pares], de David Quammen e Joseph Wallace, tradução de Masataka Watanabe, publicado por POPLAR.

Masao, 65 anos, aposentado. Após passar quatro décadas na mesma empresa, fica completamente desorientado com a aposentadoria. Ao contrário dele, sua esposa está sempre disposta a encontrar pessoas e a experimentar novas atividades. E é ela quem vai incentivá-lo a aprender o jogo de go, para que seu tempo livre seja mais agradável. Nesta jornada, ele lamenta o tempo que perdeu com a filha enquanto priorizava o trabalho e outras agendas. Mas, como tudo, sempre haverá a possibilidade de se redimir. E isso acontece. Além dos diálogos com a filha, gostei da reflexão que Masao faz ao se deparar com caranguejos vivos que estão à venda em um aquário, espremidos, com pouca água e se mexendo como se estivessem a enviar algum sinal. E, de fato, há. Na placa, está escrito que eles podem ser comprados para serem consumidos ou para serem adotados, o que o comove e o faz pensar sobre sua própria condição dentro do mundo corporativo. Claro que o que viveu está longe da aflição que os bichos estão passando, mas usar os animais como metáfora de nossas questões psicológicas é algo bem comum na literatura. Vou deixar o trecho completo abaixo. Ah, ao ir atrás de livros que possam ensiná-lo a jogar o go, lhe é oferecida uma obra poética com animais: Genge to Kaeru [Astrágalos e sapos], de Shimpei Kusano, publicado por Gin-no-Suzu.

"Ao lado do congelador com porta de vidro onde estavam os cortes de peixe e os mexilhões, havia uma pequena mesa com um aquário quadrado de plástico transparente. Percebi algo se movendo. Olhando bem, havia caranguejos de água doce dentro. Olhei-os com atenção, me lembrando do caranguejo de feltro que tinha recebido de brinde da bibliotecária. Devia haver uns cinquenta ou sessenta deles. Submersos em pouca quantidade de água, eles se apertavam uns contra os outros. Um deles movia as pinças ligadas ao corpo achatado como se me enviasse algum tipo de sinal. Ao erguer os olhos, levei um susto. Em uma placa de isopor estava escrito em grandes letras vermelhas “Caranguejo de água doce”, e abaixo delas, em letras pretas, um pouco menores: “Para fritura! Para ser seu animal de estimação!” Animal de estimação? Ali era o setor de alimentação. Aqueles caranguejos deveriam estar sendo vendidos como alimento. Fiquei atordoado quando lembrei que havia a opção de adotar um deles como “pet”. Ou você os devora ou os ama. Os caranguejos ali estavam em uma encruzilhada de caminhos opostos. Senti minha garganta apertar ao imaginar o destino daqueles caranguejos dentro do aquário de plástico. Quem era eu perante minha empresa? Enquanto estava dentro da caixa, todos me bajulavam como gerente-geral, mas por fim acabei devorado pela organização corporativa. Examinando os sashimis, Yoriko se virou para mim. – Qual você prefere, carapau ou cavala? Ou quem sabe caranguejos? Yoriko os observou com profundo interesse. – De jeito nenhum – afirmei com uma voz embargada. – Nem pensar, ainda estão vivos. Não vamos comê-los. – Então que tal criá-los? – perguntou Yoriko em tom de brincadeira. Hesitei. Os caranguejos estariam felizes vivendo confinados em um aquário tão apertado? Não prefeririam estar enredados no torvelinho da cadeia alimentar? Ou esse seria apenas um pensamento racional da minha mente humana?"

Vale a leitura. Certamente, cada leitor irá receber as histórias de uma forma diferente.

"Cada um encontra um significado próprio no brinde que dou de presente. O mesmo acontece com os livros. Os leitores fazem suas próprias conexões com as palavras, independentemente da intenção do autor. Assim, cada leitor obtém algo único."

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

três



"Nunca sabemos nos comunicar
com aqueles em quem não acreditamos."

Quando terminei a leitura de "Três", da francesa Valérie Perrin, o livro continuou comigo. Escrevo este texto enquanto ouço, no Spotify, uma das playlists com as referências musicais deste livro. E fico a imaginar o quanto deixei passar da história para não perceber o que estava acontecendo com um dos personagens. O romance pode ser considerado uma homenagem à música dos anos 80 e 90, especialmente ao rock e ao pop, incluindo músicas francesas, afinal, se passa todo na França, sendo que a maior parte no interior, em uma pequena cidade chamada La Comelle. Há também passagens em Paris.

Além da amizade, que veremos mais adiante, outra questão abordada é a proteção dos animais. Embora não seja o mote principal, é referenciada por meio de uma das protagonistas que administra um abrigo e é vegetariana. Tudo é colocado de uma forma bem sutil, o que achei interessante.

O enredo mostra três amigos inseparáveis, que se conhecem aos dez anos. No primeiro dia de aula daquele ano letivo, acompanhamos o momento em que aguardam o anúncio de qual sala irão ficar, se na da professora madame Bléton ou na do professor monsieur Py, considerado um carrasco. Ninguém quer ficar com ele, o que deixa todos bem apreensivos. Nina Beau, Étienne Beauclair e Adrien Bobin acabam juntos justamente com o temido professor, que prejudicará fortemente um deles. Essa passagem já dá indícios de que é Nina quem será o elo do trio. Percebendo a insegurança, ela segura na mão dos dois garotos e, juntos, entram na sala. E esta será a forma como serão vistos por muitos anos: ela no meio, Adrien à direita e Étienne à esquerda. Temos aquele estilo de sala bem comum nos anos 80, com dois lugares; Nina e Étienne sentam juntos e Adrien fica logo atrás.

Enfim, o entrosamento é imediato. Passam a fazer tudo juntos. As famílias se aproximam. Um ponto interessante é que a narrativa não começa com eles. Ela é intercalada entre os pontos de vista de cada um dos personagens. E começa com uma quarta personagem, Virgínia, que os observa de longe. Diz que os três estavam sempre juntos e próximos dela, mas nunca a enxergaram. Ela acompanhava as brincadeiras, os passeios. Por vezes, chegava a esbarrar neles e, ainda assim, não a viam. É justamente aí que vamos nos surpreender. Com o passar dos anos, eles acabam se separando, sem realizar o plano de irem juntos à Paris e de formarem uma banda musical. O reencontro será anos mais tarde, reforçando que algumas amizades são eternas.

"Hoje de manhã, Nina me olhou sem me ver. Seu olhar escorregou como as gotas de chuva na minha capa impermeável, logo antes de ela desaparecer dentro de um canil. Estava caindo uma tempestade."

Nina é vegetariana e amiga dos animais. Ela foi cuidada desde pequena pelo avô. Sua mãe a abandonou recém-nascida. Ela tem talento para o desenho, mas vai abdicar desse dom a favor de um casamento. Adrien mora com a mãe e tem pouco contato com o pai. É o mais tímido dos três. Gosta de escrever e, em Paris, se revelará um grande escritor. Étienne é o galã, mais extrovertido, bom nos esportes, mas não muito afeito aos estudos. Sua família tem dinheiro, o que o deixa em uma situação relativamente confortável. Ele tem uma irmã mais nova, Louise, que também será importante para a trama.

Como eu disse, o livro faz menção sutil à proteção dos animais. Isso se dá por meio de Nina, que sempre gostou de bichos, especialmente cachorros e gatos. É justamente num abrigo de animais abandonados que ela própria, ao fugir de um relacionamento abusivo, irá se refugiar. Tempo necessário para rever sua vida, escolhas e acolher definitivamente os animais em sua vida. Aliás, a diretora do abrigo que a recebe também precisou fugir e foi parar lá, assim como Simone, voluntária que também encontrou neste lugar o motivo para continuar vivendo após perder o filho.

Contudo, a passagem mais marcante deste traço de Nina se dá num diálogo dela com a mãe, no seu leito de morte. Sem ter muito o que dizer àquela mulher que lhe é estranha, mas que ao mesmo tempo sente-se impelida a amparar naquele momento, ela relata o que é cuidar de um abrigo e o dilema entre continuar ali, pelo amor e pelo olhar dos animais, e o fardo que isso representa.

"Cuidar de um abrigo é um sacerdócio." Sempre dá pra achar o que é gratificante e bom dentro disso. Aguentar o tranco. A gente faz pelo olhar deles. Amar os animais, mas sobretudo não ter adoração por eles, senão você morre de tristeza. Tem muitos momentos no ano em que eu fico com vontade de largar tudo. Abandonar os abandonados. Achar um emprego tranquilo, em outro lugar que seja limpo, quente, seco e silencioso. Onde não vou mais ouvir os cachorros latindo ou cheirando minha bunda quando vou passear com eles."

Todos os personagens que se aproximam dos animais foram, de algum modo, abandonados. E se identificaram com cães e gatos ali deixados. Há, de certa forma, uma aproximação por estarem na mesma situação. Para além disso, há ainda a questão de espécies companheiras e a necessidade de amor incondicional. Talvez seja por isso que, lá pelas tantas, Nina relata como é difícil deixar um cachorro partir quando adotado.

Para a filósofa e zoóloga norte-americana Donna Haraway, que, dentre outros temas, estuda as interações entre humanos, animais e máquinas, é comum, nos Estados Unidos (e aqui no Brasil e em outros vários países também), atribuir aos cachorros a capacidade de "amar incondicionalmente". De acordo com essa crença, pessoas com problemas diversos encontram consolo no "amor incondicional" de seus cachorros. Em troca, os amam como se fossem filhos. Haraway argumenta que os cães e humanos têm um vasto repertório de modos de se relacionar, e a crença no amor incondicional pode ser nociva, principalmente dentro da cultura consumista contemporânea. O amor verdadeiro e respeitoso envolve reconhecer e honrar as diferenças significativas entre as espécies, ao invés de projetar fantasias humanas nos cães. Através do exemplo de J.R. Ackerley e sua cadela Tulip, Haraway ilustra que uma relação amorosa genuína entre humanos e cães é caracterizada por um esforço contínuo de entender e atender às necessidades um do outro, reconhecendo a alteridade e a intersubjetividade presentes na relação.

Outro ponto importante é que, desde criança, Nina, de algum modo, já carregava a percepção da liberdade tirada dos animais. Isso se dá durante uma visita com o avô ao zoológico. A princípio, ela fica eufórica com o passeio, porém, ao retornar para casa, o avô pergunta do que ela mais gostou. E a resposta é esta: "— Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."

Isso porque, logo ao chegar ao zoológico, ela se envergonha ao ver os animais em cativeiro. A presença da multidão e a ausência dos pais a fazem se sentir deslocada e triste. Ela percebe a tristeza dos animais presos e, de algum modo, se identifica com o cativeiro deles. Chama-lhe a atenção a pantera negra que, diante de todos os olhares, tenta buscar a saída ou o mínimo de privacidade com seu filhote. Todos deveriam ler essa passagem, que explicita bem a angústia dos animais presos. E, assim, de forma sutil, Perrin nos fala sobre a importância de uma convivência respeitosa entre as espécies.

"Nina vê uma primeira placa trinta quilômetros antes de chegarem: “Pa… Parque de animais”. Ela dá uma pulo de alegria e diz ao avô: — Vô, já sei aonde a gente tá indo! Quanto mais se aproximam, mais fotos ela vê de animais e de carrosséis em grandes painéis coloridos. Ela se agita. Se remexe. Pierre Beau sorri, ele acertou em cheio. Na região, todos falam do parque de animais como se fosse o paraíso: carrosséis, um trenzinho que dá a volta no parque, batata frita e algodão-doce. Animais como não se vê nunca: hipopótamos, pumas, elefantes, lobos, macacos, girafas. Ao redor de Nina, famílias, risos, alguns choros, malcriações de crianças. Com um balão na mão, ela observa os outros observando os animais. Nina passa muito tempo isolada. Vê as coisas e as pessoas à distância. Ela está de mãos dadas com o avô. A mão dele é como uma ilha. No entanto, ela se sente mal. Está com dor de cabeça, a barriga pesada, uma fraqueza nas pernas. Seria por causa da multidão? Do calor? Da ausência dos pais? De seus pais? As pessoas em volta, as que têm sua idade, estão encaixadas entre um pai e uma mãe. Ela ouve: “Mamãe! Vem ver!”, “Papai! Olha!”. Ela própria nunca disse essas palavras. Dentro de fossos, atrás de barreiras de vidro ou de grades, ela acha que os animais se parecem. É como se o cativeiro os uniformizasse, lhes desse os mesmos comportamentos, os mesmos olhares. Uma pantera negra, com o filhote na boca, anda de um lado para outro dentro da jaula, buscando uma saída diante do olhar curioso e fascinado dos visitantes. Não tem nenhum canto onde possa se esconder. Nenhuma intimidade. Entregue, submissa, dissecada. Nina tem vergonha. O que diverte os outros a paralisa. É pequena demais para entender o que aquela vergonha significa. Só sente que não é igual. Que algo ruge dentro dela. Fica aliviada ao subir no trenzinho que dá a volta no parque a dois quilômetros por hora. Adormece apoiada no ombro do avô, exausta de tudo que está sentindo desde que chegou naquele lugar. — Quer ir ver os lobos antes de ir embora? — pergunta o avô, segurando sua mãozinha, a dele morna e macia. — Não, estou com medo. Ela mente. Nina nunca teve medo de nenhum animal. Fica aliviada quando entram de novo no carro e pegam a estrada. Fica aliviada de dar as costas para aquele lugar. — Gostou? — Gostei. Obrigada, vovô. — Do que você mais gostou? Das girafas ou dos leões? — Do trem. — Por quê? — Porque ele é livre. Vai aonde quer."


Algumas músicas mencionadas no livro

Cranberries - "Zombie"
A-ha - "Take on Me", "The Sun Always Shines on TV"
Cyndi Lauper - "True Colors"
Madonna - "La Isla Bonita"
Indochine - "La vie est belle", "Un jour dans notre vie", "Tes yeux noirs", "Canary Bay", "Troisième sexe", "Karma Girls"
The Cure - "Boys Don't Cry", "Charlotte Sometimes"
Depeche Mode - "I Feel You"
Gloria Gaynor - "I Will Survive"
Donna Summer - "I Feel Love"
Eruption - "One Way Ticket"
Nirvana - "Smells Like Teen Spirit"
William Sheller - "Un Homme Heureux"
Étienne Daho - "Le Grand Sommeil", "Corps et armes", "Mythomane"
INXS - "Need You Tonight"
The Christians - "Words"
David Bowie - "Rebel Rebel"
2 Unlimited - "Let the Beat Control Your Body"
Pixies - "Where Is My Mind"
Pierre Perret - "Mon P'tit Loup"
Françoise Hardy - "Il ne dira pas"
Zazie - "Cow-boy"
Cock Robin - "The Promise You Made"

domingo, 4 de agosto de 2024

a vegetariana


"Onde já se viu gente que não come carne hoje em dia?!"



"A Vegetariana", da sul-coreana Han Kang, pode nos levar a uma falsa interpretação se considerarmos apenas o título. O livro não trata de vegetarianismo, defesa dos animais ou alimentação saudável. Publicado em 2007, o romance explora os delírios daqueles que não conseguem se adaptar aos padrões estabelecidos pela sociedade. Essa definição simplista, contudo, não captura a profundidade da narrativa de Kang, que nos deixa estarrecidos.

A vegetariana do título é Yeonghye, que, de repente, decide parar de comer carne. Até então, ela passava despercebida por todos, inclusive pelo marido, que só se casou com ela por considerá-la excessivamente comum, sem atrativos ou ambições, e que não competiria com suas próprias questões. Ele relata que não precisaria se esforçar para conquistá-la.

O romance é dividido em três partes, com narrativas sobre a protagonista feitas pelo marido, cunhado e Inhye, sua irmã mais velha. Só ouvimos sua voz nos poucos diálogos que mantém dentro do ponto de vista dos demais personagens. Há ainda algumas passagens oníricas em primeira pessoa, mas, de modo geral, sua suposta alucinação é percebida apenas através dos olhos dos outros.

O marido conta que ela passou a ser especial somente quando a viu jogando fora todas as carnes da geladeira. Até então, era apenas uma pessoa pacata e calada, sem nada que a destacasse. A decisão de parar de comer carne é acompanhada por um comportamento cada vez mais recluso.

"Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. Para ser bem franco, não me senti atraído por ela na primeira vez em que a vi. Estatura mediana. O cabelo não era nem comprido nem curto. Tinha a pele levemente amarelada, as maçãs do rosto um pouco pronunciadas. Vestia-se de forma neutra, como se tivesse algum tipo de receio de se destacar. Calçando um par de sapatos pretos bastante sem graça, ela se aproximou da mesa em que eu a esperava. Não andava nem rápido nem devagar, sem firmeza, mas também sem muita fragilidade."

Ele se constrange, sobretudo, quando precisa levá-la a eventos sociais do trabalho. Em uma dessas ocasiões, sente vergonha ao ver como julgam a esposa por seus hábitos excêntricos. Além de vegetariana, ela também não usa sutiã, por exemplo.

"A primavera chegou, e minha mulher continuou assim. Passamos a comer somente verdura pela manhã. Até parei de reclamar. Quando uma pessoa muda de forma radical, não há outro remédio senão segui-la."

O ápice é quando há um jantar na casa da irmã e o pai se revolta, enfiando goela abaixo na moça um pedaço de carne. Como ela resiste com toda sua força, ele a esbofeteia. Yeonghye, então, corta seus pulsos na frente de todos. Curioso ou triste é ver que ninguém naquele ambiente fica do lado dela: mãe, marido, irmão, irmã, cunhado. A comoção, se é que podemos assim chamar, só vem quando o sangue jorra.

Na segunda parte, a história é sob a ótica do cunhado, marido da irmã. Ele vive para sua arte, que ninguém entende. No momento da loucura da cunhada, a quem pouco prestou atenção até aquele jantar, está num período de bloqueio criativo. Mas o incidente o reanima, principalmente quando a esposa diz que a irmã tem uma mancha de nascença nas nádegas. E isso vira uma obsessão. Ele só pensa na tal mancha e não sossega até que finalmente a vê. Para tanto, usa a arte. Chama a cunhada para fazer parte de uma performance artística na qual seu corpo será todo pintado de flores. Um amigo chega a participar, mas desiste quando vê que estão indo longe demais. E, de fato, foram.

"Foi nesse instante que lhe veio a imagem de uma flor azul-esverdeada, da cor do mar, saindo do meio das nádegas de uma mulher. A possibilidade de sua cunhada, irmã mais nova de sua esposa, ainda ter a mancha mongólica na bunda o intrigou. Inexplicavelmente, ele associou a informação à ideia de homens e mulheres, com flores pintadas pelo corpo, copulando, formando em sua cabeça uma clara relação de causa e efeito."

O fim dele será melancólico, refletindo a vida medíocre que leva. Aliás, cabe ressaltar que o marido da protagonista admira secretamente a cunhada. Assim como o marido de Inhye irá desejar, sob aspectos questionáveis, Yeonghye. Será ele, mesmo que com intenções duvidosas, o único que reconhece a profundidade de sua transformação.

"Vendo-a aceitar sem resistência todo aquele processo, considerou-a um ser sagrado, nem humano nem animal, ou talvez um ser entre o vegetal, o animal e o humano, tudo ao mesmo tempo."

A terceira parte é contada por Inhye, que, apesar de ser vista como bem-sucedida, ponderada e que sabe conciliar todas suas funções, tem grandes ressentimentos. E muito diz respeito à irmã mais nova, que nunca conseguiu cuidar, de fato. Caberá a ela acompanhar o declínio físico de Yeonghye.

Ambas carregam feridas da infância marcada por um pai autoritário e violento, o que se torna evidente no depoimento de Inhye, que lamenta não ter conseguido proteger a irmã como gostaria. Ela recorda que o irmão aliviava a tensão batendo em outros meninos, enquanto ela se mantinha sempre obediente. Yeonghye, por sua vez, permanecia em silêncio. Somente mais tarde, compreende que esse silêncio era a forma que encontrou para se rebelar. Recorda da pequena Yeonghye querendo se perder na floresta.

Ao seguir as regras, Inhye cumpria o papel que lhe era destinado, mas isso a deixou exausta. Em um momento de crise, ela foge para as montanhas, onde experimenta por um instante o vislumbre da liberdade, mas retorna, principalmente por causa do filho. Agora, carrega a culpa por ter quase abandonado tudo. Esta é a parte mais intensa do romance, com explosão de sentimentos, vontades, conflitos e muita, muita dor. Mas ela precisa aguentar mais um pouco, como o marido pedia e como a irmã sugere, já nos momentos finais. Quem sabe esta não é a chance de ajudar a irmã mais nova, deixando que ela, finalmente, parta, tornando-se a árvore que acredita ser.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

O devir-vegetal

A jornada de Yeonghye pode ser compreendida por meio do conceito de "devir", discutido por Deleuze e Guattari, que implica um processo contínuo de metamorfose. Durante sua internação em um sanatório, ela foge e mais tarde é encontrada na floresta, imóvel, como se fosse uma árvore.

"Encontraram-na sem se mexer, de pé em um barranco recôndito e distante da mata, como se ela fosse uma das árvores de tronco grosso sob a chuva."

Aos poucos, para completamente de comer, aceitando apenas água. Seu corpo definha enquanto sua irmã implora para que ela coma, chegando a levar frutas e seus pratos favoritos, mas nada a faz mudar de ideia. Yeonghye afirma categoricamente que só precisa de água e de ficar de cabeça para baixo, pois, afinal, as árvores são assim. A vegetariana, neste sentido, é essa mulher vegetal, em processo de metamorfose decorrente de seus sonhos com carne, sangue, assassinato e passado traumático. Para suportar, só lhe resta vegetar, criar raízes com o que há de mais seguro: a natureza e vida que pulsa com toda a intensidade.

"Os olhos de Yeonghye brilham. Um sorriso enigmático ilumina seu rosto. “Você tem razão, mana. Não vai demorar muito e deixarei de falar, de pensar… Falta pouco…”, diz a irmã mais nova, esboçando um sorriso e suspirando com força."

Assim como Gregor Samsa, de Franz Kafka, que se transforma em um inseto em seu quarto, para o espanto de sua família, tanto no autor tcheco quanto na autora coreana, a realidade dos personagens é difícil de ser compreendida. Jamais saberemos o que realmente se passa no corpo e na mente desses personagens repletos de idiossincrasias.

"Tenho alguma coisa entalada na boca do estômago. Não sei o que é. Mas está sempre aqui. Mesmo depois de parar de usar sutiã, não deixei de sentir esse incômodo. Por mais que respire fundo, esse aperto no peito não passa. Gritos e choros se sobrepõem e ficam encravados aqui. É por causa da carne. Comi carne demais. Todas essas vidas estão entaladas aqui. Tenho certeza. Sangue e carne foram digeridos e se espalham por todos os cantos do meu corpo; os resíduos foram colocados para fora, mas as vidas insistem em obstruir o plexo solar."

Representação dos animais

Importante destacar alguns aspectos relacionados aos animais no livro. O primeiro diz respeito à própria negação da animalidade por parte de Yeonghye ao se ver como vegetal, e todo seu esforço para se transformar em árvore.

No entanto, a descrição dos sentimentos e pensamentos de Yeonghye revela um paradoxo profundo em sua relação com a carne. Por um lado, ela rejeita completamente o consumo de carne, desejando se transformar em uma forma de vida vegetal, pura e não-violenta. Por outro lado, ela sente um desejo visceral e incontrolável por carne, manifestando-se em pensamentos violentos e físicos, como a saliva acumulando em sua boca ao passar por um açougue. Ela pensa em esganar uma pomba e o gato do vizinho. E ela, efetivamente, mata com uma mordida um passarinho durante sua primeira internação. Aqui não cabe entrar em uma dicotomia entre ser isso ou aquilo. Somos complexos, como diria Edgar Morin. Somos natureza, somos cultura.

Outro ponto a ser destacado é o utilitarismo dos animais. Percebemos isso na reação extremamente exagerada de todos quando confrontados com a decisão da personagem de parar completamente com o consumo de carne e seus derivados. O pai chega a enfiar, à força, um pedaço de carne de porco na boca da filha, evidenciando da pior maneira possível a não aceitação de um cenário diferente. E o porco aqui é apenas isso: alimento. Estamos dentro de uma sociedade carnívora, que vê na carne a principal fonte de proteínas e, de algum modo, de ascensão social. Tanto que nas eleições de 2022 para presidente do Brasil, a picanha virou termômetro para avaliar o desempenho dos dois candidatos no segundo turno, conforme observamos na reportagem do Poder 360, Entenda a “guerra da picanha” travada por Lula e Bolsonaro.

Em terceiro lugar, temos o cão que a mordeu quando criança. O que vem depois foi muito difícil de ler. A narrativa de Kang rasga nossa alma. O cachorro foi brutalmente maltratado pelo pai. Dói imaginar o seu sofrimento. E dói mais ainda saber que isso é deveras comum, não só na Coreia do Sul, como no mundo inteiro. Para finalizar, ele é preparado e servido para a jovem Yeonghye. Diz-se que seu ferimento só será curado se ela comer a carne daquele que a feriu. Vale ainda ressaltar que não há estranhamento em comer cachorro. Somente agora, em 2024, foi aprovada uma lei que proíbe o consumo de carne canina, a valer a partir de 2027.

Por fim, os sonhos. São eles o estopim para o desenrolar de Yeonghye. Ela sonha com pedaços enormes de carne. Vê nas mãos sangue fresco dos pedaços que ela comeu. Em seus pesadelos vê crânios e olhos ferozes de animais, que parecem sair de dentro dela. Ao mesmo tempo, ela se vê assassinando. Seriam animais humanos? Tudo se confunde nessa animalidade da qual ela tenta fugir. E é justamente esta tensão que constitui o humano, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, que estuda a relação dos animais e dos humanos em suas obras. Nós só podemos nos afirmar como humanos ao transcender e transformar a animalidade que nos fundamenta. Essa transformação ocorre através de uma ação de negação, na qual tentamos dominar e, eventualmente, superar nossos instintos e características animais. O conflito interno de Yeonghye, portanto, não é apenas pessoal, mas carrega o significado de ser humano.

"O homem existe historicamente apenas sob esta tensão: ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade."
(GIORGIO AGAMBEN, em O Aberto)


"Era um bosque escuro. Não havia ninguém nele. Machuquei o rosto e lanhei os braços ao passar pelos arbustos. Tinha certeza de que estava acompanhada de outras pessoas. Acho que me perdi sozinha. Fiquei com muito medo. Sentia frio. Atravessei um arroio congelado e encontrei uma construção iluminada que mais parecia um celeiro. Passei por uma cortininha de palha, e então eu vi. Centenas de pedaços de carne, uns pedaços enormes, estavam pendurados em sarrafos. De alguns deles pingavam gotas de sangue vermelho ainda fresco. Abri caminho por incontáveis pedaços de carne, mas não conseguia encontrar a saída do outro lado. Meu vestido branco ficou completamente encharcado de sangue. Não faço ideia de como saí de lá."

quarta-feira, 31 de julho de 2024

desonra



"Pense em coisas tranquilas, em coisas fortes. 
Eles farejam o que a gente pensa." 

"Desonra", de J. M. Coetzee, é uma obra que, embora focada na complexa vida pessoal e social de seus personagens, oferece uma profunda reflexão sobre a relação entre humanos e animais. Situado na África do Sul pós-apartheid, o romance aborda culpa, redenção e o impacto da violência, tanto humana quanto animal. No romance, a jornada de David Lurie ao lado de sua filha Lucy revela um profundo processo de transformação pessoal, que é espelhado em sua crescente empatia pelos animais. 

Você sai da leitura e segue perdido, como os personagens. A história começa com o professor David Lurie, de cinquenta e dois anos, divorciado - duas vezes - e com uma vida tranquila e morna. Dá aulas sobre temas que não lhe interessam, o que faz com que elas sejam bem ordinárias.

Uma vez por semana tem encontro marcado com uma mulher em um quarto limpo, com toalhas e sabonetes à sua disposição. Está no que, hoje, chamamos de zona de conforto. Até que Soraya, a moça com que se encontra para o sexo casual, diz que não poderá mais encontrá-lo. Após tentativas frustradas para descobrir o motivo, ele a vê com sua família, marido e filhos, na rua. O incidente o leva a refletir sobre o envelhecimento, sua vida e até mesmo a castração, a fim de parar com os desejos.

No meio de tudo isso, uma de suas alunas se sobressai, Melanie Isaac. Após uma abordagem na universidade, ele a convida até sua casa. Outros encontros acontecem, mesmo contra a vontade da garota, que se sente, de algum modo, obrigada a ceder às investidas. Depois disso, há a denúncia de abuso sexual e ele acaba se afastando do cargo e foge para a fazenda da filha, Lucy, que também lida com suas próprias questões. Ela acabou de terminar um relacionamento e tenta se encaixar no modo de vida das pessoas ao seu redor. David mora na Cidade do Cabo. E Lucy mora em Salem, Kenton, no Cabo Leste. São quase 900 km de distância. Mas ele precisa desse refúgio para superar, ou não, a culpa. 

"Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço."

Chegando na casa da filha, tenta se adaptar à vida no interior da África do Sul. Fica apreensivo ao vê-la morando sozinha, sem vaidade e com parcos recursos. Aos poucos, porém, vai se reencontrando naquele lugar longínquo (em todos os sentidos para ele), ajuda no que é possível e até encontra um trabalho voluntário no abrigo de animais.

Lucy tem um hotel para cachorros e uma, em particular, nos é apresentada. Assim como os demais personagens da casa, também foi abandonada. Trata-se de Katy, que chegou para ficar hospedada e por lá ficou. Ao ser questionada pelo pai se não tem medo de ficar sozinha, Lucy responde que: 

"tem os cachorros. Os cachorros já são alguma coisa. Quanto mais cachorro, mais proteção. Mas seja como for, se alguém resolver entrar, não acho que estar em duas seja melhor que uma."

Mas ela conta ainda com Petrus, seu vizinho, que foi seu empregado no passado. A impressão é que há um pacto entre eles, com favores mútuos. Há Bev, que cuida do refúgio de animais na região, que David, a pedido da filha, irá ajudar. Cabe à Bev praticar a eutanásia nos animais que não podem mais ser curados e também naqueles que não poderão encontrar um lar. A palavra eutanásia não aparece, mas fica bem claro do que se trata. Mas ela não faz isso de modo frio, pelo contrário, conversa com os bichos e procura dar conforto e acolhimento em seus últimos instantes de vida.

David não sente nenhuma empatia por este trabalho e chega a repudiar Bev por sua aparência física. Em uma conversa com a filha deixa claro sua percepção, que reflete a de muitas pessoas: 

"Na criação, nós somos de uma ordem diferente dos animais. Não necessariamente superior, mas diferente. Portanto, se vamos ser bons, que seja por simples generosidade, não porque nos sentimos culpados ou temos medo de vingança." 

Dentre os animais tratados por Bev, está um bode que levou uma mordida de cachorro e que está agonizando, com feridas graves e bem infeccionadas. 

"O bode treme, solta um balido: um som feio, baixo e áspero."

Para ele, só resta descansar pelas mãos de Bev, porém, não é o que vai acontecer. Seus `proprietários`, assim como muitos, firmando a questão da posse, preferem fazer o serviço em casa. É uma das passagens que mais me marcou, pelo sofrimento do bode, por ele entender o que estava por vir, por ter sido privado, no fim, do único alívio que poderia ter. É quando David começa a entender o real propósito do trabalho de Bev: "aliviar o sofrimento dos bichos da África."

E, assim, à medida que David vai se aproximando dos animais, de Bev e da cadela Katy, sua visão sobre os animais vai mudando. Há uma sintonia que ele não esperava sentir. Percebemos isso de forma clara quando ele vê dois carneiros amarrados perto da entrada da casa. Sabe que estão lá porque foram os escolhidos para serem servidos na festa que Petrus está preparando. Mais tarde, só lhe resta se distanciar do prato que lhe é servido.

Seus temores se mostram reais e a casa é invadida por três homens e sua filha violentada, numa passagem bem trágica. Ele mesmo é ferido, mas é Lucy quem fica com as piores cicatrizes. A partir daí, o relacionamento entre eles, que já não era tão próximo, se torna ainda mais conturbado, principalmente por conta de suas acusações contra o vizinho, que a filha insiste em defender. Ele acaba voltando para sua cidade de origem e lá descobre que perdeu o pouco que ainda lhe restava, sua casa também foi roubada. O que sobra: terminar o libreto sobre a vida do poeta inglês Lord Byron, suas paixões, culpas. Sua amante casada, a filha que abandonou. E durante o processo criativo, ao pesquisar a melodia perfeita para retratar a história do romancista, percebe nuances de suas próprias escolhas. A narrativa de Coetzee é deslumbrante. É como se estivéssemos na plateia acompanhando a ópera.

Outro animal que toca David é um dos cães do canil, que anda se arrastando. Nenhum visitante se interessou em adotá-lo e seu tempo está quase no fim. Às vezes, solta o cão do compartimento, deixando-o passear pelo quintal ou cochilar aos seus pés. O cão, por sua vez, adotou nosso protagonista, demonstrando grande afeição por ele. Encanta-se pelo som do banjo quando Lurie toca e canta, enquanto escreve o libreto.

"Começou a sentir um carinho particular por um dos cachorros do canil. É um jovem macho que tem um quarto traseiro murcho que arrasta pelo chão. Ele não sabe se nasceu assim. Nenhum visitante mostrou interesse em adotá-lo. Seu período de graça está quase no fim; logo, terá de ser submetido à agulha. Às vezes, quando está lendo ou escrevendo, solta-o do compartimento e deixa que passeie, com seu jeito grotesco, pelo quintal, ou que cochile aos seus pés. Não é “dele”, de jeito nenhum; teve o cuidado de não lhe dar um nome (embora Bev Shaw refira-se a ele como Driepoot, três patas); mesmo assim, ele é sensível à generosa afeição que o cachorro lhe dedica. De forma arbitraria, incondicional, foi adotado; o cachorro é capaz de morrer por sua causa, ele sabe disso. O animal fica fascinado com o som do banjo. Quando dedilha as cordas, o cachorro se senta, inclina a cabeça, escuta. Quando cantarola um verso de Teresa, e o cantarolar começa a se encher de sentimento (é como se a sua laringe engrossasse: dá para sentir o sangue pulsando na garganta), o cachorro estala os beiços e parece a ponto de cantar também, ou de uivar."

Aliás, os cachorros de um modo geral o comovem e serão, de algum modo, sua redenção. A fim de dar um fim mais digno a eles, ele irá levá-los para serem cremados no incinerador do hospital. Mas faz isso antes que outros sacos com lixos diversos cheguem, a fim de garantir um mínimo de dignidade aos animais. Ele se questiona por que está fazendo este trabalho. Seria por Bev, com quem acaba aliviando sua tensão sexual, pelos cachorros? Ou, no fim, por ele mesmo?

"Curioso que um homem tão egoísta como ele possa estar se oferecendo para servir a cachorros mortos. Deve haver alguma outra maneira, mais produtiva, de se dar par ao mundo, ou para uma visão do mundo. Podia, por exemplo, trabalhar mais horas na clínica." 

Ao aproximar-se dos animais, ele também se reaproxima de seus problemas. Acaba procurando o pai de Melanie. No jantar, lhe é servido frango. Mas ao contrário do carneiro, aqui não há menção à repulsa por ter um animal no prato, pelo contrário. Afinal, ele não os viu em vida. No fim, não há redenção. Há a surpresa de que nem mesmo a mais bela alma poderá salvar David. Ele já desistiu de tudo. Não há nada que o faça se distanciar do presente, tão cruel, tão subversivo.

sábado, 27 de julho de 2024

literatura e animalidade



"Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão."

Logo na primeira frase de "Literatura e Animalidade", Maria Esther Maciel afirma que ainda estamos longe de entender os animais.

Este enunciado estabelece o tom de seu estudo, que desafia a percepção tradicional dos animais como meros objetos ou símbolos à disposição do entendimento humano.

A autora comenta ainda a maneira com que tratamos os animais, variando conforme a utilidade que apresentam para nós.

"Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados, eles não se deixam, paradoxalmente, capturar em sua alteridade radical."

Ao questionar o que é humano e o que é animal, Maciel aponta para as tentativas científicas de definir essa relação, frequentemente apoiadas na racionalidade e na "máquina antropológica do humanismo". Este termo critica a tendência do pensamento humanista ocidental de colocar os humanos no centro do universo, assumindo uma superioridade inerente sobre o mundo natural, incluindo os animais.

A separação entre humanos e animais, acentuada no Ocidente durante o século 18 com a ascensão do pensamento cartesiano, tratava os animais como meras máquinas sem alma. Sob essa visão, estudos científicos rigorosos, como a taxonomia de Lineu, começaram a moldar a investigação zoológica, influenciando também o surgimento dos primeiros zoológicos na Europa.

Após essa introdução, a atenção se volta para o campo do imaginário e para espaços considerados alternativos do saber humano, "nos quais a palavra animal ganha outros matizes, inclusive socioculturais". Maciel aborda a evolução na forma como se denomina obras literárias que trazem o animal. Antes, falava-se em bestiário, termo que ela critica devido às suas conotações negativas e medievais.

"Além disso, por suas origens medievais, o termo deriva da besta, palavra completamente contaminada pela carga simbólica negativa que lhe foi conferida pela tradição judaico-cristã ao longo dos tempos, afinando-se, por extensão, com a noção de bestialidade - qualidade daquilo que é brutal, grosseiro, monstruoso e maligno."

Assim, o termo bestiário esvazia o animal de anima, reforça sua dimensão negativa e marca sua exclusão da sociedade dos chamados "seres racionais".

Surge, felizmente, o termo zooliteratura, mais abrangente e que consolida tudo o que se diz sobre os animais nas diferentes práticas literárias. 

"Conjunto de diferentes práticas literárias ou obras (de um autor, de um país, de uma época) que se voltam para os animais. Nesse sentido, é bem mais aberto e menos cristalizado que o termo bestiário, uma vez que este se inscreve sobretudo na ordem do inventário, do catálogo, designando uma série específica de bichos reais e imaginários, podendo, também - de forma mais genérica -, designar uma coleção literária e/ou iconográfica de animais imaginários ou existentes de um determinado autor ou período cultural."

A autora baseia-se, sobretudo, na obra "O animal que logo sou", do filósofo francês Jacques Derrida, que utilizou o termo zooliteratura ao abordar os animais de Francis Ponge e zoopoética para falar dos animais de Franz Kafka. Ao preferir esses termos ao do bestiário, Derrida os transforma em conceitos que abrangem obras literárias focadas nos animais. 

"O termo zoopoética poderia ser empregado para designar tanto o estudo teórico de obras literárias e estéticas sobre animais quanto a produção poética específica de um autor, voltada para esse universo 'zoológico', como fez Derrida."

Dentro deste contexto, a obra de Franz Kafka, especialmente A Metamorfose (1915), é precursora na inserção de animais para além da visão antropocêntrica, inaugurando uma tradição literária que explora a interseção entre o humano e o não humano através de uma crítica profunda. Ao transformar o protagonista, Gregor Samsa, em um inseto, Kafka traz à tona a animalidade do humano por meio de uma situação surreal que ilumina as qualidades animais inerentes aos humanos. Essa abordagem kafkiana influenciou muitas obras literárias subsequentes, que, embora ainda recorram a alegorias derivadas de bestiários antigos e fábulas tradicionais, agora incorporam essa nova perspectiva, redefinindo o campo da zooliteratura ocidental.

"Trata-se, por isso, de uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade. Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no paradoxo, visto que, ao mesmo tempo que são e devem ser mantidas - graças às inegáveis diferenças que distinguem os animais humanos dos não humanos -, é impossível que o sejam mantidas de modo idêntico, já que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos." 

Maciel traz inúmeros exemplos a partir de suas análises que justificam seu enunciado e tese. Da Argentina, ela discute as obras de Jorge Luis Borges, como "Manual de zoología fantástica" e "O livro dos seres imaginários", que exploram criaturas reais e mitológicas, expandindo o imaginário animal na literatura. Do Brasil, destaca João Guimarães Rosa com "Meu tio o Iauaretê", que explora a metamorfose e a relação mística entre humanos e animais no sertão brasileiro. Também inclui Clarice Lispector, com "A paixão segundo G.H." e "O búfalo", que tratam da introspecção e da alteridade animal, e Machado de Assis, com "Ideias de canário" e outras obras que questionam a racionalidade humana em comparação com o saber animal.

Da África do Sul, ela aborda J.M. Coetzee e suas obras "Desonra" e "A vida dos animais", que exploram as questões éticas e políticas relacionadas ao tratamento dos animais na sociedade, revelando a marginalização e a violência enfrentadas por esses seres. De Portugal, Maciel menciona autores como Herberto Helder, cujas obras "Última ciência" e "Poemaco" exploram a presença dos animais na poesia, e António Osório, que, em um de seus escritos traz a comunicação das vacas por meio do olhar. Esses são apenas alguns exemplos.Vale a leitura completa para absorver tudo o que esta obra nos proporciona. 

sábado, 13 de julho de 2024

o guardião de segredos de jaipur


"Algumas mentiras devem ser mantidas em segredo."

Voltei para Jaipur e Shimla com os personagens do segundo volume da trilogia da escritora Alka Joshi. "O guardião de segredos de Jaipur" começa com uma tragédia: um grandioso cinema desaba durante a cerimônia de inauguração. O empreendimento, financiado pela marani e construído pela elite da área de Jaipur, era extremamente aguardado pela sociedade, que estava em peso no dia do acidente. Com esse início, minhas expectativas subiram, porém, fiquei frustrada ao ver que o romance foi bem morno, além da introdução de personagens bem maçantes, como Nimmi, jovem viúva de uma tribo montanhosa dos Himalaias e namorada de Malik. Como ela é desagradável. Pobre Malik.

Vale relembrar brevemente o primeiro romance da trilogia, "A pintora de henna", que traz Lakshmi como protagonista. Ainda jovem, ela fugiu de um casamento abusivo e conquistou fama em Jaipur com suas pinturas de henna. A chegada da irmã mais nova, que até então ela desconhecia, transformou sua vida, levando-a às montanhas do Himalaia. Malik, agora protagonista do segundo volume, era seu ajudante, com apenas oito anos. Foi uma leitura extremamente agradável, que me fez rememorar a Índia que nunca visitei, mas que conheço pelas leituras de seus escritores.

Malik, já adulto, se envolve com Nimmi, que se vê totalmente dependente de sua presença, chegando a hostilizar Lakshmi. Esta, por sua vez, deu a volta por cima e agora vive com o marido, cuidando de uma horta medicinal e oferecendo conforto aos pacientes locais. Malik, que desde criança vive com Lakshmi, que praticamente o adotou, retorna ao seu local de origem a fim de ganhar experiência profissional. Lá, reencontra os mesmos personagens que marcaram sua infância. Ele estava na noite do acidente no cinema e, agora, caberá a ele e a Lakshmi descobrirem as causas da tragédia para ajudar o amigo que está sendo acusado.

Eu esperava bem mais. Se bem que o li num momento em que não estava preparada para grandes reviravoltas, e talvez algo sem tanto tempero tenha sido o ideal para meu estado de ânimo.

"Digo a mim mesma que não devo me preocupar com o que não posso controlar; mesmo assim, meu coração está acelerado e o sangue pulsa em meus ouvidos."

sexta-feira, 10 de maio de 2024

memórias de um urso polar


"Você pode pensar que nasci com talentos acrobáticos, que treinei muito para aperfeiçoar minhas habilidades e, então, mostrei orgulhosa os resultados para minha plateia. Essa interpretação é completamente falsa. Nunca escolhi uma profissão; minha vocação nem sequer foi discutida. Eu andava no triciclo e recebia cubos de açúcar como recompensa. Se tivesse, em vez disso, jogado o triciclo longe, não teria mais recebido comida, e sim chicotadas."

Temos uma ursa-polar branca em uma conferência, caminhando em uma livraria e refletindo sobre os direitos humanos e obras de Kafka. E para tornar tudo ainda mais inusitado, essa mesma ursa-polar escreve uma autobiografia que se torna sucesso mundial. Ela transita por esses espaços sem nenhum estranhamento, aparentemente, por parte da espécie Homo sapiens.

É assim que começa nosso mergulho no romance, de 2014, da escritora japonesa Yoko Tawada, radicada na Alemanha. Aliás, seu livro está categorizado como um romance alemão.

"Memórias de um urso-polar" foi concebido a partir de um fato real que chamou a atenção do mundo inteiro: no fim de 2006, nasceu em Berlim um ursinho polar rejeitado pela mãe, ursa que trabalhou anos em um circo na Alemanha Oriental. Criado por funcionários do zoológico, seu nascimento gerou grande polêmica envolvendo ativistas dos direitos dos animais, a direção do local e a opinião pública. Muitos defendiam que ele deveria morrer, já que não estava em seu habitat natural. Argumentava-se que, criado por humanos, poderia desenvolver um apego que não lhe permitiria viver sozinho. O veterinário, no entanto, defendeu que ele poderia viver com humanos até a idade em que normalmente estaria com a mãe, ou seja, três anos. Knut acabou se tornando a principal atração do zoológico, responsável por significativas receitas financeiras, inclusive através da exploração de sua imagem em produtos licenciados. Os direitos autorais para contar sua história também foram vendidos. No Brasil, o livro "Knut. Como um ursinho polar cativou o mundo", de Juliana, Isabelle e Craig Hatkoff e Gerald R. Uhlich, chegou pela Editora Gaia. A obra mostra o zoológico como benfeitor, ignorando, porém, todo o passado de cativeiro do animal e dos verdadeiros motivos que fizeram dele um fenômeno mundial. Em 2008, foi lançado o filme "Knut e seus amigos", que conta sua história. Knut também estampou a capa da revista Vanity Fair. Infelizmente, morreu tragicamente em 2011, aos quatro anos, encontrado boiando no tanque que usava como piscina. O diagnóstico, concluído apenas em 2015, foi uma inflamação autoimune do cérebro. Este é apenas um resumo de sua história, que foi acompanhada de perto por milhares de pessoas ao redor do mundo. Seu tratador, Thomas Dörflein, ganhou notoriedade enquanto cuidava do pequeno animal, mas morreu pouco tempo após ter que se afastar de Knut, vítima de um ataque cardíaco. Um desfecho triste para uma história que começou errada. Muito se conjecturou sobre a afeição de Knut pelo tratador que cuidou dele. Mas, efetivamente, quais eram seus pensamentos?

O filósofo francês Dominique Lestel, em 2001, disse que subestimamos a comunicação dos animais, principalmente quando queremos avaliá-la a partir da nossa própria linguagem. A partir do estudo de vários etólogos, o autor nos apresenta experimentos que tentam desvendar o comportamento dos animais. Há padrões que são identificados, como a dança das abelhas em busca do néctar.

"Karl Von Frish define com rigor o fenómeno dessa dança inicialmente descoberta por N. Unhoc em 1823 e revela a sua extrema complexidade. Ele demonstra que existem duas espécies de dança. A primeira é circular: a obreira executa um ou mais círculos no sentido dos ponteiros do relógio num primeiro tempo, e no sentido inverso num segundo tempo. A outra espécie de dança é trepidante. A obreira colectora de pólen traça uma linha recta vibrando as asas (treze vezes por segundo). Regressa em seguida ao ponto de partida descrevendo um semicírculo à sua direita, descreve de novo uma linha recta, e em seguida outro semicírculo mas desta vez à esquerda. Esta manobra é repetida várias vezes de seguida." (Lestel)

A conclusão é que trata-se, sim, de um meio complexo de comunicação. Porém, ainda fica a pergunta se podemos dizer que elas são providas de linguagem. Pelo menos, tal e qual a concebemos.

"É surpreendente constatar, entre outras coisas, que a questão da comunicação é totalmente subestimada na avaliação do fenômeno cultural no animal, enquanto os antropólogos continuam a explicar que, se os homens têm culturas (e apenas eles, acrescentam in petto…) é porque o homem possui um sistema de comunicação de uma complexidade adequada - a linguagem. Que nível de complexidade podem atingir as comunicações animais? É interessante constatar que é extremamente difícil responder a esta pergunta aparentemente banal." (Lestel)

Outro filósofo francês, Jacques Derrida, afirmou, cinco anos depois, que o pensamento do animal, se de fato existir, reside na poesia. Teoria explorada pela professora brasileira Maria Esther Maciel, que pesquisa sobre os animais na literatura, a zooliteratura.

"Pois o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético." (Derrida)

Tawada assumiu um sujeito animal ao nos inserir sob os pelos brancos da ursa-polar que, dentre suas atividades circenses, hospeda-se em hotéis e participa de jantares. O melhor da leitura é se deixar levar pela narrativa. O livro é dividido em três partes: a primeira, destinada à avó de Knut, que não tem nome. Ela é sempre referenciada como escritora, ursa, conferencista e artista circense. A segunda parte conta a história de Toska, sua mãe, que divide o palco com a domadora Ursula, seu espelho humano. Na terceira, acompanhamos os primeiros passos de Knut. São capítulos que podem ser considerados de forma isolada, mas que entrelaçam histórias e sentimentos.

Logo no início de "A teoria da evolução da avó", surge estranhamento e dúvidas sobre a narradora principal. Seria uma ursa ou uma mulher? A narrativa começa com a matriarca relembrando momentos de sua infância, já sob os cuidados de um humano que lhe fazia cócegas, a alimentava e que, de repente, atou suas patas, de modo que ficar em pé se tornou a única forma de aliviar a dor. Assim começam os treinamentos para os espetáculos destinados a outros humanos.

"Minha língua ainda conseguia se lembrar do gosto do leite materno. Eu pegava o dedo indicador daquele homem com a boca e chupava, o que me acalmava. Os pelos que cresciam no nó dos seus dedos eram como cerdas de uma escova. O dedo se arrastava como verme dentro da minha boca e cutucava. Ele então empurrava meu peito, convidava-me para dentro do ringue."

Não há dúvidas, na primeira página, que estamos diante de uma narradora personagem contando sua trajetória de urso. Porém, logo nos deparamos com esta passagem, que me fez imaginar um corte para outra personagem:

"Escrever: um ato estranho. Quando olhei para a frase que havia acabado de colocar no papel, senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela."

A leitura segue e somos apresentados à sua rotina, que inclui várias participações em congressos. Inclusive, é bem participativa, questionando e sempre dando sua opinião sobre os diversos movimentos abordados.

"Neste dia, participei de um congresso. Ao final, todos os participantes foram convidados para um jantar comemorativo. Quando voltei para o hotel, à noite, tinha uma sede de ursa, que saciei tomando água direto da torneira. O gosto das anchovas oleosas não queria deixar minha boca. No espelho, vi minha boca manchada de vermelho. Era o trabalho magistral da beterraba. Eu não gostava muito de raízes, mas quando as via nadando em um borsh só queria beijá-las. Com as ilhas de gordura, que me abriam o apetite para carne, a beterraba parecia irresistível."

"As molas rangeram sob meu peso de ursa. Sentei no sofá e pensei que a conferência tinha sido, de novo, desinteressante, mas me levara inesperadamente de volta à minha infância. O tema da discussão era a importância da bicicleta para a economia nacional."

Então, a autora começa a nos confundir. Estaríamos diante de um devir-animal, conceito do filósofo francês Gilles Deleuze e do psicanalista Félix Guattari, e que trata do processo de transformação no qual um ser humano se identifica com características ou comportamentos animais?

"A parte superior do meu corpo, macia e corpulenta, é envolvida por pelo branco. Quando levanto meu braço e movo meu tórax um pouco para a frente, centelhas de luz estonteantes voam no ar. Eu me encontrava em meio à ação, enquanto as mesas, as paredes e até as pessoas presentes empalidecem lentamente e se confundiam com o plano de fundo. A cor branca e brilhante de meu pelo se diferencia do branco comum. É permeável. Assim, a luz do sol podia atravessar o pelo e alcançar minha pele, sob a qual era cuidadosamente conservada. Essa é a cor dos meus antepassados, que permitiu que sobrevivessem no círculo ártico."

Seria algo como o homem de Franz Kafka que se vê transformado em um inseto? Uma mulher, porém, tomada pelo espírito de uma ursa-polar. E a narradora continua a nos perturbar mostrando sua interação com seres humanos e alguns personagens que nos deixam dúvidas se são humanos ou não, como o Leão Marinho. Seria apenas uma pessoa que lembra as feições do animal ou o próprio mamífero pelo qual é chamado.

"Lembrei-me de um homem que era chamado de `Leão-Marinho`. Ele era editor de uma revista literária. Quando minha via nos palcos ainda estava a todo vapor, ele era um de meus fãs, e me visitava no camarim com frequência cum um luxuriante buquê de flores."

"Eu também me convenci, à primeira vista, de que nossos corpos não poderiam nunca se unir no ato sexual: o dele era úmido e escorregadio, enquanto o meu era seco e áspero. Tudo o que rodeava sua barba era esplendidamente formado, enquanto as pontas de seus quatro membros eram pateticamente fracas. Em contraste, minha própria força de vida se concentrava nas pontas dos meus dedos. Ele era careca de nascença, enquanto eu era toda coberta por um pelo grosso, da cabeça até a zona mais íntima. Nunca seríamos um bom casal. Mesmo assim, uma vez acabamos nos beijando. A sensação era como se um minúsculo peixe estivesse se debatendo em minha boca."

Aliás, Franz Kafka e seus contos que trazem animais são referenciados e analisados na obra pela grande ursa, especificamente "Investigações de um cão" e "Um relatório para uma academia". No primeiro, o narrador (o cão) está preocupado com o presente, ponderando sobre sua existência ao invés de criar um passado imaginário. Isso a leva a se questionar por que deve inventar um passado autêntico em vez de escrever sobre o presente. Já em "Um relatório para uma academia", a história de um macaco que relata sua transformação em humano a fascina, apesar de despertar também sentimentos de raiva. Para ela, o macaco, que naturalmente pertence a um ambiente tropical, não tem que querer ser um humano, afinal, questiona, qual a grande vantagem em andar sob duas pernas?

E assim vamos acompanhando sua narrativa, o processo de criação da autobiografia, sua falta de identidade: seria russa? alemã? canadense? Nascida na Rússia, ela fez sucesso com o livro que escreveu e, em plena Guerra Fria (sem mencioná-la diretamente), tornou-se alvo de censura e foi "convidada" a ir para a Sibéria participar de um projeto de plantação de bananeiras. Em sua inocência, não compreendeu, de imediato, do que se tratava. Na sequência, o que parece ser uma operação de resgate a leva para Berlim Ocidental, sob o pretexto de outra conferência. De lá, surge a oportunidade para ir ao Canadá, retornando posteriormente para a Alemanha. Enquanto troca de idioma ao passar de um país a outro devido às diversas circunstâncias, ela se pergunta quem realmente é. Até que se casa (outro urso, um homem?) e dá à luz a Toska.

Entramos, então, em "O beijo da morte". Aqui temos a voz da mãe de Knut e de sua treinadora, Ursula, que se propõe a escrever a biografia da ursa que adestra. Vale destacar que no texto original o nome da domadora é Barbara, já que, em alemão, "Bär" (urso) e "Barbara" compartilham uma sonoridade semelhante, enquanto em português, "ursa" e "Ursula" ressoam de forma parecida.

Acompanhamos a jornada de Ursula rumo ao mundo do circo. Desde a curiosidade até o primeiro contato com os animais. E aqui há uma mistura do que ela poderia dominar (jumento, cavalo, leão), o que temia (cachorro) e no que se transformava durante seus devaneios (iguana, urso). Enquanto isso, Toska atua como se fosse sua psicóloga, dando conselhos e ajudando-a a compreender seu passado, especialmente nos diálogos durante viagens oníricas ao Polo Norte.

O relacionamento entre as duas beira o fantástico, aliás, como todo o romance. "O beijo da morte" é o ápice do espetáculo circense conduzido por Ursula, no qual ela coloca um cubo de açúcar na língua, oferecendo-o a Toska.

"Invejo os habitantes do polo Norte. Lá não existem guerras.
Não. Mas mesmo assim chegam lá pessoas com armas. E atiram em nós.
Por quê?
Não sei. Ouvi dizer que os seres humanos têm um instinto caçador. De instinto não entendo nada.
Acho que a caçada antigamente era importante para a sobrevivência dos seres humanos. Hoje não mais, só que eles não conseguem parar. O ser humano talvez seja feito de movimentos sem sentido. Por isso, não reconhece mais os movimentos necessários para viver. É manipulado pelos restos de suas lembranças."

O Polo Norte é retratado nos sonhos de Ursula como um lugar idílico e onírico, onde ela anseia mergulhar no ar gelado e na paisagem nevada, livre das complexidades e confinamentos de sua vida circense. Vale para a mulher. Vale para a ursa. Esse desejo pelo Polo Norte é ecoado em seus momentos de introspecção e é usado metaforicamente para representar um estado de liberdade que almeja, contrastando com a realidade, cheia de amarras, de sua vida: marido, chefe, colegas do circo, afirmação de sua capacidade.

"Prometi a você que ia escrever a história de sua vida. Até agora só escrevi sobre a minha. Desculpe.
Não tem problema. Primeiro você deve traduzir sua própria história em palavras. Então sua alma estará desobstruída e, assim, terá lugar para uma ursa.
Você tem a intenção de entrar em mim?
Sim.
Estou com medo."

No primeiro capítulo, a narrativa nos introduz a uma ursa que permanece sem nome, mergulhando-nos em uma atmosfera de incerteza onde não é claramente definido se estamos diante de um animal, de um ser humano ou de uma entidade em metamorfose. Há um jogo de identidades entre o eu humano e o eu animal. Na interação entre Toska e Ursula, essa dualidade se manifesta com mais clareza. Apesar da aparente simbiose, a dinâmica de poder é questionada, desafiando a noção tradicional de supremacia humana. A passagem a seguir captura a tensão entre identificação e distinção, mas também propõe uma reflexão sobre a igualdade intrínseca entre as formas de vida, questionando as barreiras impostas pelo especismo.

"Acordei do sono e vi Toska à minha frente. Ela estava curvada e dormia. Seu travesseiro era seu braço esquerdo. Como se fosse uma imagem espelhada, eu estava na mesma posição."

Na sequência, somos apresentados ao pequeno Knut, o ursinho que inspirou o romance. E aqui temos sua história verdadeira contada sob o que poderia ser seu ponto de vista. Parece tudo tão real. Ele não sabe o que o espera, como foi parar ali, em uma caixa que imagina ser a totalidade do mundo, mas que, aos poucos vai se revelando pequena. Sons o levam a imaginar que há algo a mais a ser descoberto. Ele ouve ratos, pássaros e sem saber quem são, já os distingue. A afeição ao tratador, aqui no romance chamado de Matthias, é grande. Através de seu olhar ele assiste à TV e é apresentado ao mundo que lhe é possível ver. Sempre intermediado, sempre por meio do seu espaço restrito. Mathias, por outro lado, também é bastante apegado ao urso e parece se ressentir do espetáculo que aguarda o pequeno Knut. Procura estender qualquer momento que passam juntos na esperança que a grande aparição pública nunca chegue. Mas isso é inevitável. Cabe tornar o momento o mais natural ao ursinho, que se delicia por estar em um espaço maior brincando com o "pai", "amigo", "único ser que lhe é próximo". Juntos, passam a andar pelo zoológico de Berlim e Knut conversa com outros animais, todos presos e com suas questões. Aos poucos, o urso aprende a discernir o que se espera dele e entende que está ali para entreter. Há grande reflexão sobre o Polo Norte ao longo de suas interações, e Knut tenta entender esse lugar místico de onde dizem que ele veio.

"Todas as manhãs, Knut ouvia o canto dos pássaros que se alegravam quando a escuridão se retirava e o sol chegava para começar seu turno. Os seres alados ficavam atormentados, com medo de não achar nada para o café da manhã. Às vezes, o mais fraco entre eles era atacado por pássaros mais fortes e fugia gritando pelo céu. Knut não conseguia vê-los, mas seus sons eram vívidos o bastante para poder imaginar seus dramas rotineiros. De vez em quando, pássaros especialmente atrevidos vinham e olhavam dentro do quarto de Knut. Todos eram chamados de “pássaros”, mesmo que a única coisa que tivessem em comum fossem as asas. O pardal, uma mistura marrom de modéstia e agitação, o melro com seu humor despretensioso, a máscara pintada da pega-rabuda e o pombo, que não perdia a oportunidade de repetir seu lema favorito: “Mesmo? Que interessante. Eu não fazia ideia!”. Knut ouvia incontáveis vozes aviárias e imaginava que o mundo lá fora devia ser repleto de pássaros. Por que Knut, Matthias e o rato não tinham asas? Se tivesse asas nas costas, ele teria voado diretamente para a janela para olhar para fora."

Neste romance, Yoko Tawada nos transporta para uma visão do mundo sob a perspectiva animal. Lestel disse que ainda estamos muito distantes de compreender verdadeiramente a linguagem não-humana. Jacques Derrida e Maria Esther Maciel exploram ainda mais esse pressuposto, propondo que o pensamento animal encontra sua expressão na poesia. E foi exatamente isso que Tawada fez, por meio da literatura: nos deu um vislumbre de pensamentos muitas vezes ignorados e maltratados. Traz ainda as diferenças na forma como tratamos os animais, dependendo de sua utilidade ou apelo estético. Animais como os ursos polares e elefantes, por exemplo, são muitas vezes venerados e, sob o pretexto de proteção, capturados e aprisionados, enquanto outros, como ratos, são repudiados. Um diálogo marcante entre Knut e um panda reflete sobre como a "fofura" impõe aos animais um fardo de constante vigilância e exploração humana.

"Somente os pandas viviam em outra rua, mesmo pertencendo à família dos ursos. Eles não ficavam em uma área aberta, mas em uma imensa jaula. Não tinham terraço, mas contavam com um jardim de bambus. Matthias me disse: “Christian cuidou muito bem de Yang Yang. A morte dela o devastou. Ele ficou de luto por meses. Graças a você, voltou aos eixos”. Tentei imaginar como seria perder um protegido, ficar profundamente triste e depois voltar aos eixos, pondo-se de pé sobre duas ou quatro pernas, graças a um novo protegido. Meu fluxo de pensamento foi interrompido quando um panda, que até aquele momento estava mordiscando grandes folhas verdes, me olhou de cima a baixo e disse, seco: “Você é realmente fofo. Mas cuidado! Os animais que são fofos demais são os que estão morrendo”. Assustado, perguntei o que ele queria dizer com aquilo. “Você é fofo, e eu também. Como estamos em risco de extinção, temos que ativar o instinto de proteção dos humanos. Por esse motivo, a natureza está tornando nosso rosto cada vez mais adequado ao gosto humano, para que sejamos cada vez mais fofos. Olhe para os ratos. Eles não se importam nem um pouco se os humanos os consideram fofos. A espécie deles não tem nenhum risco de ser extinta.” A avó de Knut também traz esses pontos quando reflete sobre a maneira como os humanos entendem e atribuem os 'direitos humanos', contrastando-os com os direitos dos animais."

Essa reflexão também permeou os pensamentos da avó de Knut. Para ela, a ideia de 'direitos humanos' parecia uma noção distorcida, uma construção puramente humana que ignorava as complexidades e os direitos de outras formas de vida.

"Humanos que só pensavam em humanos tinham criado o conceito de direitos humanos. Um dente de leão não tinha direitos humanos, nem mesmo um aguaceiro, uma, uma água-viva, a chuva, o coelho. Talvez uma baleia tivesse. Lembrei-me do texto que li em uma conferência intitulada: 'A caça às baleias do capitalismo`: os grandes mamíferos tinham mais direitos do que os menores, como o rato, o que provavelmente se devia ao gosto de alguns grupos humanos, que davam mais valor a animais maiores. Entre os mamíferos que não eram vegetarianos nem viviam na água, nós, ursos-polares, éramos os maiores. Além daquela teoria, eu não conseguia pensar em nenhum motivo pelo qual me perseguiram para tentar me dar os tais direitos humanos."

A escritora nos encoraja a termos uma compreensão mais empática e poética da vida animal. Ao abordar as consequências do aquecimento global e das catástrofes ambientais, faz um apelo urgente para reconsiderarmos nossa relação com todos os seres vivos. Como bem pontua Maria Esther Maciel, Tawada, ao escrever essas biografias ficcionais (ou reais, no caso de Knut), que entrelaçam humanos e não humanos nos lembra que, no final, todos compartilhamos o mesmo planeta.

"Ela compõe três autobiografias ficcionais de ursos num só livro, através de um engenhoso entrelaçamento de mundos humanos e não humanos, criando um complexo diálogo entre as narrativas em primeira e terceira pessoas. Ao fazer isso, Tawada se empenha em 'traduzir' para palavras aquilo que imagina serem os pensamentos mais íntimos dos animais, enquanto simultaneamente questiona e redefine nossos conceitos arraigados de humanidade e humanismo. Além disso, ela aborda as devastadoras consequências do aquecimento global e das catástrofes ambientais para a vida no planeta." (Maria Esther Maciel)

O romance culmina com uma cena maravilhosamente triste, na qual Knut, sob a neve que começa a cair, se encanta, vivenciando um breve vislumbre de liberdade, ao menos naquele instante efêmero.

"Algo mais escuro que a luz voava no entremeio. Um floco de neve. Estava nevando! Mais um floco. Neve! Mais um floco. Neve! E mais um floco. Neve! Os flocos dançavam aqui e ali. Neve! À primeira vista, parecia surpreendentemente escura, apesar de não ser nada mais do que uma branca cristalização. Neve! Que magnífico perceber que o brilho das cores em movimento instantaneamente escurecia. Neve! Os flocos giram ao cair. Neve! Mais um floco. Neve! E mais um. Neve! Não tinha fim. Eu só olhava pra cima. De todos os lados, ao meu redor, folhas brancas voavam como as folhas de outono em uma tempestade. A neve era uma espaçonave, levou-me junto e voou o mais rápido que podia em direção ao crânio — ao crânio de nossa terra."


 

quarta-feira, 24 de abril de 2024

os sete saberes necessários à educação do futuro


O  papel das escolas e da educação na formação de indivíduos

Em 2010, Edgar Morin esteve no Brasil para a Conferência Internacional sobre os Sete Saberes Necessários à Educação do Presente, realizada em Fortaleza, no Ceará. Naquela ocasião, o sociólogo francês explorou o que ele chamou de buracos negros que podem prejudicar a formação dos cidadãos.

Morin argumenta que "a humanidade precisa de mentes mais abertas, escutas mais sensíveis, pessoas responsáveis e comprometidas com a transformação de si e do mundo". E isso só será possível se superarmos barreiras como egocentrismo, hiperespecialização e falta de empatia, entre outros desafios. Apesar dos obstáculos, ele propõe caminhos que envolvem principalmente a escola e a aceitação de nossa conexão com a natureza.

Ele destaca que um dos principais pontos é o homem aceitar que ele faz parte da natureza. Esse resgate torna-se necessário, sobretudo diante de uma cultura cada vez mais segmentada e dicotômica, que separa o que é razão e emoção, o que é humano e o que é natureza.

"São necessárias", Morin continua, "novas práticas pedagógicas para uma educação transformadora que esteja centrada na condição humana, no desenvolvimento da compreensão, da sensibilidade e da ética, na diversidade, na pluralidade de indivíduos, e que privilegie a construção de um conhecimento de natureza transdisciplinar, envolvendo as relações indivíduo↔sociedade↔natureza. Esta é a condição fundamental para a construção de um futuro viável para as gerações presentes e futuras."

O livro é dividido em sete capítulos, cada um dedicado a um saber proposto por Morin como sendo essencial, mas que ainda permanecem ignorados. E eu faço um adendo: mesmo depois de 14 anos, ainda não avançamos muito.

Capítulo I: As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão


"A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. A teoria da informação mostra que existe o risco do erro sob o efeito de perturbações aleatórias ou de ruídos (noise) em qualquer transmissão de informação, ou em qualquer comunicação de mensagem."

Edgar Morin aborda as fraquezas do conhecimento humano, destacando sua constante ameaça pelo erro e pela ilusão. Discute como a percepção humana é fundamentalmente uma reconstrução cerebral de estímulos externos, propensa a falhas significativas. Uma das causas é a mentira que contamos a nós mesmos, que ele chama de self-deception. Nossas mentes tendem a selecionar e até alterar memórias para se ajustarem a uma autoimagem favorável, evidenciando o potencial humano para a criação de falsas lembranças ou o esquecimento seletivo de experiências desfavoráveis. Isso, argumenta, é um mecanismo de defesa psicológico, mas que perpetua erros. Evidentemente, a importância da imaginação nesse processo de conhecimento não é descartada, já que contempla nossos sonhos e ideias.

"A importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável; dado que as vias de entrada e de saída do sistema neurocerebral, que colocam o organismo em conexão com o mundo exterior, representam apenas 2% do conjunto, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constitui-se um mundo psíquico relativamente independente, em que fermentam necessidades, sonhos, desejos, ideias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa visão, ou concepção, do mundo exterior. Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si próprio (self-deception), que é fonte permanente de erros e ilusões. O egocentrismo, a necessidade de autojustificativa e a tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem que cada um minta para si próprio, sem detectar esta mentira, da qual, contudo, é o autor."

O autor também traz os paradigmas científicos, criticando a racionalidade fechada, que se alimenta de si mesma e se converte em racionalização, uma das maiores fontes de equívocos. Em contrapartida, defende a racionalidade aberta e autocrítica, capaz de reconhecer e ajustar suas próprias limitações. Em outras palavras, ele defende a escuta ativa, inclusive sobre teorias que vão de encontro ao que acreditamos, pois somente assim podemos ampliar o conhecimento, contribuindo efetivamente para o que ele chama de educação do futuro, mais empática, mais democrática. Impossível não lembrar aqui do que nos diz Paulo Freire ao falar sobre educação progressista, em "Pedagogia da esperança": "O papel do educador ou da educadora progressista, que não pode nem deve se omitir, ao propor sua 'leitura do mundo', é salientar que há outras 'leituras de mundo', diferentes da sua e às vezes antagônicas a ela."

"A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta. A racionalização nutre-se das mesmas fontes que a racionalidade, mas constitui uma das fontes mais poderosas de erros e ilusões. Dessa maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora."

"O racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida é irracional. A racionalidade deve reconhecer a parte de afeto, de amor e de arrependimento. A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do determinismo e do mecanicismo; sabe que a mente humana não poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério. Negocia com a irracionalidade, o obscuro, o irracionalizável. É não só crítica, mas autocrítica. Reconhece-se a verdadeira racionalidade pela capacidade de identificar suas insuficiências."

Os paradigmas dominantes, embora esclarecedores, também podem ser cegantes, ocultando a verdade sob camadas de pré-concepções culturalmente reforçadas. Ele exemplifica com o "paradigma cartesiano" de separação entre sujeito e objeto, mostrando como essa divisão fundamental pode tanto iluminar quanto obscurecer nossa compreensão do mundo.

Além disso, aborda o conformismo cognitivo a partir do imprinting cultural (termo proposto por Konrad Lorenz, naturalista austríaco que estudou o comportamento dos animais), ou seja, nascemos e já somos levados a uma sequência de vida preestabelecida, por exemplo, ir para a escola, arrumar um bom emprego, casar e ter filhos. Sem querer, já estamos repetindo padrões e deixando que a transformação nos escape, muito por conta de julgamentos. E nessa linha, é importante avaliar como os mitos e ideias, componentes da noosfera, voltaram-se sobre nós, "invadindo-nos com emoção, amor, raiva, êxtase e fúria. Os humanos possuídos são capazes de morrer ou de matar por um deus, por uma ideia."

O sociólogo finaliza o capítulo chamando uma reforma no pensamento que abrace a complexidade, a incerteza e a interdisciplinaridade como essenciais para a verdadeira compreensão e para a preparação dos indivíduos para os desafios de um mundo globalizado e interconectado. Precisamos estar preparados para o inesperado e, assim, quando o novo chegar, sermos capazes de rever nossos conceitos.

Capítulo II: Os princípios do conhecimento pertinente


O acesso e a organização das informações são desafios significativos para a sociedade contemporânea. Morin nos incita a perceber e a conceber o mundo de maneira integrada, considerando o contexto global, o multidimensional e o complexo. Inspirado pelo princípio do cientista francês do século XVII Blaise Pascal, ele ressalta que "é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes", destacando a interdependência inescapável entre todos os elementos.

A realidade complexa, descrita como "complexus" (o que foi tecido junto), ocorre quando diferentes componentes, essenciais à totalidade, como o "econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico" estão intrinsecamente ligados. Esse entrelaçamento desafia nossa era global, tornando imperativa a reforma do pensamento. A especialização excessiva, embora tenha avançado o conhecimento em áreas específicas, contribuiu para a fragmentação da compreensão global, enfraquecendo a responsabilidade e a solidariedade.

O principal ponto é que o não entendimento do global acaba distanciando as pessoas da responsabilidade com o todo, ou seja, não avaliamos o impacto de nossas ações isoladas no planeta. Um bom exemplo é quando compramos uma bebida em garrafa de plástico. Mesmo que tenhamos a 'boa consciência' de descartá-la corretamente, não sabemos ao certo o que será feito dela. O resultado é que o oceano está cheio desse tipo de resíduo, com vários animais padecendo.

"O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos)."

"Desse modo, as realidades globais e complexas fragmentam-se", Morin lamenta a separação do conhecimento humano em disciplinas isoladas, que, ao invés de unir, isolam as dimensões da vida humana em compartimentos.

"Efetuaram-se progressos gigantescos nos conhecimentos no âmbito das especializações disciplinares, durante o século XX, porém estes progressos estão dispersos, desunidos, devido justamente à especialização, que, muitas vezes, fragmenta os contextos, a globalidade e as complexidades."

O capítulo critica a especialização fechada que impede a visão global e essencial dos problemas, tornando os especialistas incapazes de interpretar crises e prever suas consequências. Somente um pensamento que seja capaz de integrar, ao invés de dividir, permitirá a coexistência na complexidade do mundo moderno.

Capítulo III: Ensinar a condição humana


"A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e, ao mesmo tempo, reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano. Conhecer o humano é, antes de tudo, situá-lo no universo, e não separá-lo dele."

Neste capítulo, que eu considero um dos mais significativos, Edgar Morin destaca a importância de entender o ser humano em sua totalidade, integrado ao cosmos e à biosfera terrestre. Precisamos reconhecer que somos ao mesmo tempo parte do universo e seres com uma cultura e consciência próprias. Segundo ele, "o homem somente se realiza plenamente como ser humano pela cultura e na cultura". Mas isso não faz com que a humanidade seja isolada da natureza. Pelo contrário, estamos enraizados tanto no cosmos físico quanto na esfera viva. "O humano é um ser, a um só tempo, plenamente biológico e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade originária."

Morin explica que a hominização, processo evolutivo de milhões de anos, ilustra como a animalidade e a humanidade são inseparáveis na formação da condição humana. "Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica."

Por meio de avanços em várias disciplinas científicas, como cosmologia, ecologia e biologia, obtemos novas perspectivas sobre nosso lugar no universo. No entanto, esses conhecimentos frequentemente permanecem fragmentados, o que mantém a humanidade "esquartejada" em diferentes aspectos de entendimento. Somos seres que combinam racionalidade com pulsões, sapiência com loucura, trabalho com ludicidade, e realidade com imaginação. A educação do futuro, portanto, deve dar conta do reconhecimento dessa condição complexa e contraditória, preparando-nos para navegar pela vida com uma compreensão profunda de nossa unidade com o mundo natural e nossa distinção cultural e cognitiva.

"Devemos reconhecer nosso duplo enraizamento no cosmos físico e na esfera viva", argumenta, destacando a importância de entender nossa conexão essencial tanto com o universo físico quanto com a vida na Terra. O principal dano ao separar o humano da natureza são as consequências ambientais que enfrentamos, sobretudo quando nos colocamos acima da flora e da fauna. Em especial, os animais sofrem diariamente por entendermos que somos superiores, que somente nós sentimos dor. Observamos isso nos matadouros e nas consequências ambientais decorrentes da produção de carne, onde a vida animal é frequentemente desvalorizada. Essa percepção de separação entre humanidade e natureza é criticada profundamente por pensadores como o brasileiro Ailton Krenak, que em sua obra "Ideias para adiar o fim do mundo" reflete: "Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza."

Esta visão integral reforça a urgência de uma educação que promova a consciência de nossa interdependência com todo o sistema vivo, impulsionando-nos a agir de maneira mais responsável e conectada com todo o ecossistema.

Capítulo IV: Ensinar a identidade terrena


No Capítulo IV, Morin continua a abordar a necessidade de uma nova consciência global na educação, reconhecendo que somos cidadãos de um planeta interconectado. Ele cita o cientista russo Vladimir Vernadsky (pioneiro em considerar a biosfera como um sistema dinâmico e essencialmente interligado) para destacar essa conscientização: “Pela primeira vez, o homem compreendeu realmente que é um habitante do planeta e, talvez, deva pensar ou agir sob novo aspecto, não somente sob o de indivíduo, família ou gênero, Estado ou grupo de Estados, mas também sob o aspecto planetário.” Esta perspectiva exige um pensamento que integre a diversidade e a unidade da condição humana, desafiando a educação a promover uma identidade que seja ao mesmo tempo local e global.

"A diáspora da humanidade não produziu nenhuma cisão genética: pigmeus, negros, amarelos, índios, brancos vêm da mesma espécie, possuem os mesmos caracteres fundamentais de humanidade", ou seja, apesar das vastas diferenças culturais, todos os humanos compartilham uma essência comum. Morin adverte sobre os perigos contemporâneos, como a ameaça nuclear e a crise ecológica, que exigem uma resposta coletiva e uma responsabilidade compartilhada. Cabe à educação conscientizar sobre como nossas ações afetam o planeta e a necessidade de agir de maneira que preserve a Terra para as futuras gerações.

"Por isso, é necessário aprender a `estar aqui` no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; é o que se aprende somente nas culturas singulares — e por meio delas. Precisamos doravante aprender a ser, a viver, a dividir e a comunicar como humanos do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemos dedicar-nos não só a dominar, mas a condicionar, a melhorar, a compreender."

Capítulo V: Enfrentar as incertezas


A incerteza surge como uma característica fundamental do nosso tempo, questionando a crença no progresso como algo linear e inevitável. "A tomada de consciência da incerteza histórica acontece hoje com a destruição do mito do progresso. O progresso é certamente possível, mas é incerto." Esta reflexão leva à compreensão de que as mudanças e os desenvolvimentos podem gerar tanto oportunidades quanto desafios.

Morin introduz o conceito de "ecologia da ação", que descreve como as ações humanas interagem com o ambiente de formas complexas e muitas vezes inesperadas, frequentemente com consequências não intencionadas. Ele argumenta que, diante da complexidade e da interdependência das questões globais, as estratégias devem ser flexíveis e adaptativas, capazes de mudar em resposta a novas informações e condições. Não adianta ir com planos fechados, preconcebidos achando que tudo seguirá do jeito que pensamos.

"A ecologia da ação é, em suma, levar em consideração a complexidade que ela supõe, ou seja, o aleatório, o acaso, a iniciativa, a decisão, o inesperado, o imprevisto, a consciência de derivas e transformações."

"Um princípio de incerteza cérebro-mental", menciona Morin, reflete a natureza falível da cognição humana, onde até mesmo nossa percepção e entendimento estão sujeitos a erro e revisão. Este reconhecimento deve nos levar a abordar os problemas globais com humildade e disposição para reavaliar e ajustar nossas ações.

Capítulo VI: Ensinar a compreensão


Neste capítulo, Morin destaca a distinção entre a mera transmissão de informações e a verdadeira compreensão. Ele observa que, embora as ferramentas modernas de comunicação facilitem o compartilhamento de informações, elas não garantem a compreensão mútua.

"Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, do telefone à internet, traz por si mesma a compreensão. A compreensão não pode ser quantificada. Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela se encontra a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade."

O teórico reflete ainda sobre como a proximidade pode intensificar mal-entendidos: "quanto mais próximos estamos, menos compreendemos, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividade, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente."

A compreensão verdadeira envolve uma apreciação mais profunda das complexidades humanas e das diferenças culturais. "Compreender significa intelectualmente apreender em conjunto, com-prehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno)". A compreensão entre as pessoas é essencial para a solidariedade intelectual e moral da humanidade, e deve ser uma prioridade educacional por meio de uma abordagem que valorize o diálogo e a empatia, permitindo que as pessoas não apenas compartilhem informações, mas também criem laços baseados no respeito mútuo e na compreensão intercultural. Mais uma vez não há como não lembrar de Paulo Freire e seu legado. Vale citar, bell hooks, norte-americana que se inspira em sua teoria e que, em "Ensinando a transgredir", diz que ensinar não é apenas passar adiante uma informação, o conhecimento, mas contribuir e participar, de fato, do crescimento intelectual e espiritual dos alunos. E reconhecer que todos influenciam e contribuem com a dinâmica da sala de aula. "Quando levamos nossa paixão à sala de aula, nossas paixões coletivas se juntam e frequentemente acontece uma reação emocional, que pode ser muito forte", afirma a professora e escritora.

É importante reforçar que "comunicação não garante a compreensão. A informação, se for bem transmitida e compreendida, traz inteligibilidade, condição primeira necessária, mas não suficiente, para a compreensão." Morin identifica duas formas de compreensão: intelectual (objetiva) e humana (intersubjetiva). A compreensão intelectual exige clareza e explicação, tratando o tema como um objeto a ser elucidado por métodos objetivos. Já a compreensão humana intersubjetiva provavelmente envolve uma abordagem mais empática, considerando as perspectivas e experiências dos outros. Em essência, uma comunicação eficaz demanda não apenas a transmissão clara da informação (inteligibilidade), mas também a adoção de estratégias que garantam o entendimento tanto no nível intelectual quanto no humano. E isso só é possível ouvindo, dialogando e acolhendo.

Capítulo VII: A ética do gênero humano


Edgar Morin aborda a necessidade de uma ética global que responda aos desafios colocados pela interdependência mundial. Ele argumenta que, em um mundo cada vez mais conectado, as ações de indivíduos e nações têm implicações que transcendem fronteiras nacionais e culturais, exigindo uma nova compreensão de responsabilidade e solidariedade.

A democracia, em resposta à complexidade crescente da sociedade global, não deve ser vista simplesmente como a soberania do povo, mas como um sistema que integra a autolimitação, o respeito pelos direitos individuais e a proteção da vida privada. "A democracia comporta, ao mesmo tempo, a autolimitação do poder do Estado pela separação dos poderes, a garantia dos direitos individuais e a proteção da vida privada", descreve ele, apontando para a necessidade de equilibrar diversos interesses e perspectivas.

A ideia de uma "Pátria" evoluiu de uma noção biológica para uma concepção ética e política, na qual a humanidade é vista como uma comunidade de destino que deve cooperar para enfrentar desafios comuns, como as crises ecológicas e sociais. Este sentimento de pertencimento a uma comunidade global deve ser acompanhado por um compromisso com a preservação e a melhoria das condições de vida em todo o planeta.

"A Humanidade deixou de constituir uma noção apenas biológica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua inclusão indissociável na biosfera; a Humanidade deixou de constituir uma noção sem raízes: está enraizada em uma `Pátria`, a Terra, e a Terra é uma Pátria em perigo."

Finalmente, Morin conclama por uma ética que transcenda diferenças culturais e nacionais e fomente uma responsabilidade coletiva. Ele sugere que, em vez de impor uma visão única de moralidade, devemos buscar um diálogo que permita uma variedade de perspectivas éticas, contribuindo para uma compreensão mais rica e inclusiva do que significa ser humano em um mundo interconectado.