"Você pode pensar que nasci com talentos acrobáticos, que treinei muito para aperfeiçoar minhas habilidades e, então, mostrei orgulhosa os resultados para minha plateia. Essa interpretação é completamente falsa. Nunca escolhi uma profissão; minha vocação nem sequer foi discutida. Eu andava no triciclo e recebia cubos de açúcar como recompensa. Se tivesse, em vez disso, jogado o triciclo longe, não teria mais recebido comida, e sim chicotadas."
Temos uma ursa-polar branca em uma conferência, caminhando em uma livraria e refletindo sobre os direitos humanos e obras de Kafka. E para tornar tudo ainda mais inusitado, essa mesma ursa-polar escreve uma autobiografia que se torna sucesso mundial. Ela transita por esses espaços sem nenhum estranhamento, aparentemente, por parte da espécie Homo sapiens.
É assim que começa nosso mergulho no romance, de 2014, da escritora japonesa Yoko Tawada, radicada na Alemanha. Aliás, seu livro está categorizado como um romance alemão.
"Memórias de um urso-polar" foi concebido a partir de um fato real que chamou a atenção do mundo inteiro: no fim de 2006, nasceu em Berlim um ursinho polar rejeitado pela mãe, ursa que trabalhou anos em um circo na Alemanha Oriental. Criado por funcionários do zoológico, seu nascimento gerou grande polêmica envolvendo ativistas dos direitos dos animais, a direção do local e a opinião pública. Muitos defendiam que ele deveria morrer, já que não estava em seu habitat natural. Argumentava-se que, criado por humanos, poderia desenvolver um apego que não lhe permitiria viver sozinho. O veterinário, no entanto, defendeu que ele poderia viver com humanos até a idade em que normalmente estaria com a mãe, ou seja, três anos. Knut acabou se tornando a principal atração do zoológico, responsável por significativas receitas financeiras, inclusive através da exploração de sua imagem em produtos licenciados. Os direitos autorais para contar sua história também foram vendidos. No Brasil, o livro "Knut. Como um ursinho polar cativou o mundo", de Juliana, Isabelle e Craig Hatkoff e Gerald R. Uhlich, chegou pela Editora Gaia. A obra mostra o zoológico como benfeitor, ignorando, porém, todo o passado de cativeiro do animal e dos verdadeiros motivos que fizeram dele um fenômeno mundial. Em 2008, foi lançado o filme "Knut e seus amigos", que conta sua história. Knut também estampou a capa da revista Vanity Fair. Infelizmente, morreu tragicamente em 2011, aos quatro anos, encontrado boiando no tanque que usava como piscina. O diagnóstico, concluído apenas em 2015, foi uma inflamação autoimune do cérebro. Este é apenas um resumo de sua história, que foi acompanhada de perto por milhares de pessoas ao redor do mundo. Seu tratador, Thomas Dörflein, ganhou notoriedade enquanto cuidava do pequeno animal, mas morreu pouco tempo após ter que se afastar de Knut, vítima de um ataque cardíaco. Um desfecho triste para uma história que começou errada. Muito se conjecturou sobre a afeição de Knut pelo tratador que cuidou dele. Mas, efetivamente, quais eram seus pensamentos?
O filósofo francês Dominique Lestel, em 2001, disse que subestimamos a comunicação dos animais, principalmente quando queremos avaliá-la a partir da nossa própria linguagem. A partir do estudo de vários etólogos, o autor nos apresenta experimentos que tentam desvendar o comportamento dos animais. Há padrões que são identificados, como a dança das abelhas em busca do néctar.
"Karl Von Frish define com rigor o fenómeno dessa dança inicialmente descoberta por N. Unhoc em 1823 e revela a sua extrema complexidade. Ele demonstra que existem duas espécies de dança. A primeira é circular: a obreira executa um ou mais círculos no sentido dos ponteiros do relógio num primeiro tempo, e no sentido inverso num segundo tempo. A outra espécie de dança é trepidante. A obreira colectora de pólen traça uma linha recta vibrando as asas (treze vezes por segundo). Regressa em seguida ao ponto de partida descrevendo um semicírculo à sua direita, descreve de novo uma linha recta, e em seguida outro semicírculo mas desta vez à esquerda. Esta manobra é repetida várias vezes de seguida." (Lestel)
A conclusão é que trata-se, sim, de um meio complexo de comunicação. Porém, ainda fica a pergunta se podemos dizer que elas são providas de linguagem. Pelo menos, tal e qual a concebemos.
"É surpreendente constatar, entre outras coisas, que a questão da comunicação é totalmente subestimada na avaliação do fenômeno cultural no animal, enquanto os antropólogos continuam a explicar que, se os homens têm culturas (e apenas eles, acrescentam in petto…) é porque o homem possui um sistema de comunicação de uma complexidade adequada - a linguagem. Que nível de complexidade podem atingir as comunicações animais? É interessante constatar que é extremamente difícil responder a esta pergunta aparentemente banal." (Lestel)
Outro filósofo francês, Jacques Derrida, afirmou, cinco anos depois, que o pensamento do animal, se de fato existir, reside na poesia. Teoria explorada pela professora brasileira Maria Esther Maciel, que pesquisa sobre os animais na literatura, a zooliteratura.
"Pois o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético." (Derrida)
Tawada assumiu um sujeito animal ao nos inserir sob os pelos brancos da ursa-polar que, dentre suas atividades circenses, hospeda-se em hotéis e participa de jantares. O melhor da leitura é se deixar levar pela narrativa. O livro é dividido em três partes: a primeira, destinada à avó de Knut, que não tem nome. Ela é sempre referenciada como escritora, ursa, conferencista e artista circense. A segunda parte conta a história de Toska, sua mãe, que divide o palco com a domadora Ursula, seu espelho humano. Na terceira, acompanhamos os primeiros passos de Knut. São capítulos que podem ser considerados de forma isolada, mas que entrelaçam histórias e sentimentos.
Logo no início de "A teoria da evolução da avó", surge estranhamento e dúvidas sobre a narradora principal. Seria uma ursa ou uma mulher? A narrativa começa com a matriarca relembrando momentos de sua infância, já sob os cuidados de um humano que lhe fazia cócegas, a alimentava e que, de repente, atou suas patas, de modo que ficar em pé se tornou a única forma de aliviar a dor. Assim começam os treinamentos para os espetáculos destinados a outros humanos.
"Minha língua ainda conseguia se lembrar do gosto do leite materno. Eu pegava o dedo indicador daquele homem com a boca e chupava, o que me acalmava. Os pelos que cresciam no nó dos seus dedos eram como cerdas de uma escova. O dedo se arrastava como verme dentro da minha boca e cutucava. Ele então empurrava meu peito, convidava-me para dentro do ringue."
Não há dúvidas, na primeira página, que estamos diante de uma narradora personagem contando sua trajetória de urso. Porém, logo nos deparamos com esta passagem, que me fez imaginar um corte para outra personagem:
"Escrever: um ato estranho. Quando olhei para a frase que havia acabado de colocar no papel, senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela."
A leitura segue e somos apresentados à sua rotina, que inclui várias participações em congressos. Inclusive, é bem participativa, questionando e sempre dando sua opinião sobre os diversos movimentos abordados.
"Neste dia, participei de um congresso. Ao final, todos os participantes foram convidados para um jantar comemorativo. Quando voltei para o hotel, à noite, tinha uma sede de ursa, que saciei tomando água direto da torneira. O gosto das anchovas oleosas não queria deixar minha boca. No espelho, vi minha boca manchada de vermelho. Era o trabalho magistral da beterraba. Eu não gostava muito de raízes, mas quando as via nadando em um borsh só queria beijá-las. Com as ilhas de gordura, que me abriam o apetite para carne, a beterraba parecia irresistível."
"As molas rangeram sob meu peso de ursa. Sentei no sofá e pensei que a conferência tinha sido, de novo, desinteressante, mas me levara inesperadamente de volta à minha infância. O tema da discussão era a importância da bicicleta para a economia nacional."
Então, a autora começa a nos confundir. Estaríamos diante de um devir-animal, conceito do filósofo francês Gilles Deleuze e do psicanalista Félix Guattari, e que trata do processo de transformação no qual um ser humano se identifica com características ou comportamentos animais?
"A parte superior do meu corpo, macia e corpulenta, é envolvida por pelo branco. Quando levanto meu braço e movo meu tórax um pouco para a frente, centelhas de luz estonteantes voam no ar. Eu me encontrava em meio à ação, enquanto as mesas, as paredes e até as pessoas presentes empalidecem lentamente e se confundiam com o plano de fundo. A cor branca e brilhante de meu pelo se diferencia do branco comum. É permeável. Assim, a luz do sol podia atravessar o pelo e alcançar minha pele, sob a qual era cuidadosamente conservada. Essa é a cor dos meus antepassados, que permitiu que sobrevivessem no círculo ártico."
Seria algo como o homem de Franz Kafka que se vê transformado em um inseto? Uma mulher, porém, tomada pelo espírito de uma ursa-polar. E a narradora continua a nos perturbar mostrando sua interação com seres humanos e alguns personagens que nos deixam dúvidas se são humanos ou não, como o Leão Marinho. Seria apenas uma pessoa que lembra as feições do animal ou o próprio mamífero pelo qual é chamado.
"Lembrei-me de um homem que era chamado de `Leão-Marinho`. Ele era editor de uma revista literária. Quando minha via nos palcos ainda estava a todo vapor, ele era um de meus fãs, e me visitava no camarim com frequência cum um luxuriante buquê de flores."
"Eu também me convenci, à primeira vista, de que nossos corpos não poderiam nunca se unir no ato sexual: o dele era úmido e escorregadio, enquanto o meu era seco e áspero. Tudo o que rodeava sua barba era esplendidamente formado, enquanto as pontas de seus quatro membros eram pateticamente fracas. Em contraste, minha própria força de vida se concentrava nas pontas dos meus dedos. Ele era careca de nascença, enquanto eu era toda coberta por um pelo grosso, da cabeça até a zona mais íntima. Nunca seríamos um bom casal. Mesmo assim, uma vez acabamos nos beijando. A sensação era como se um minúsculo peixe estivesse se debatendo em minha boca."
Aliás, Franz Kafka e seus contos que trazem animais são referenciados e analisados na obra pela grande ursa, especificamente "Investigações de um cão" e "Um relatório para uma academia". No primeiro, o narrador (o cão) está preocupado com o presente, ponderando sobre sua existência ao invés de criar um passado imaginário. Isso a leva a se questionar por que deve inventar um passado autêntico em vez de escrever sobre o presente. Já em "Um relatório para uma academia", a história de um macaco que relata sua transformação em humano a fascina, apesar de despertar também sentimentos de raiva. Para ela, o macaco, que naturalmente pertence a um ambiente tropical, não tem que querer ser um humano, afinal, questiona, qual a grande vantagem em andar sob duas pernas?
E assim vamos acompanhando sua narrativa, o processo de criação da autobiografia, sua falta de identidade: seria russa? alemã? canadense? Nascida na Rússia, ela fez sucesso com o livro que escreveu e, em plena Guerra Fria (sem mencioná-la diretamente), tornou-se alvo de censura e foi "convidada" a ir para a Sibéria participar de um projeto de plantação de bananeiras. Em sua inocência, não compreendeu, de imediato, do que se tratava. Na sequência, o que parece ser uma operação de resgate a leva para Berlim Ocidental, sob o pretexto de outra conferência. De lá, surge a oportunidade para ir ao Canadá, retornando posteriormente para a Alemanha. Enquanto troca de idioma ao passar de um país a outro devido às diversas circunstâncias, ela se pergunta quem realmente é. Até que se casa (outro urso, um homem?) e dá à luz a Toska.
Entramos, então, em "O beijo da morte". Aqui temos a voz da mãe de Knut e de sua treinadora, Ursula, que se propõe a escrever a biografia da ursa que adestra. Vale destacar que no texto original o nome da domadora é Barbara, já que, em alemão, "Bär" (urso) e "Barbara" compartilham uma sonoridade semelhante, enquanto em português, "ursa" e "Ursula" ressoam de forma parecida.
Acompanhamos a jornada de Ursula rumo ao mundo do circo. Desde a curiosidade até o primeiro contato com os animais. E aqui há uma mistura do que ela poderia dominar (jumento, cavalo, leão), o que temia (cachorro) e no que se transformava durante seus devaneios (iguana, urso). Enquanto isso, Toska atua como se fosse sua psicóloga, dando conselhos e ajudando-a a compreender seu passado, especialmente nos diálogos durante viagens oníricas ao Polo Norte.
O relacionamento entre as duas beira o fantástico, aliás, como todo o romance. "O beijo da morte" é o ápice do espetáculo circense conduzido por Ursula, no qual ela coloca um cubo de açúcar na língua, oferecendo-o a Toska.
"Invejo os habitantes do polo Norte. Lá não existem guerras.
Não. Mas mesmo assim chegam lá pessoas com armas. E atiram em nós.
Por quê?
Não sei. Ouvi dizer que os seres humanos têm um instinto caçador. De instinto não entendo nada.
Acho que a caçada antigamente era importante para a sobrevivência dos seres humanos. Hoje não mais, só que eles não conseguem parar. O ser humano talvez seja feito de movimentos sem sentido. Por isso, não reconhece mais os movimentos necessários para viver. É manipulado pelos restos de suas lembranças."
O Polo Norte é retratado nos sonhos de Ursula como um lugar idílico e onírico, onde ela anseia mergulhar no ar gelado e na paisagem nevada, livre das complexidades e confinamentos de sua vida circense. Vale para a mulher. Vale para a ursa. Esse desejo pelo Polo Norte é ecoado em seus momentos de introspecção e é usado metaforicamente para representar um estado de liberdade que almeja, contrastando com a realidade, cheia de amarras, de sua vida: marido, chefe, colegas do circo, afirmação de sua capacidade.
"Prometi a você que ia escrever a história de sua vida. Até agora só escrevi sobre a minha. Desculpe.
Não tem problema. Primeiro você deve traduzir sua própria história em palavras. Então sua alma estará desobstruída e, assim, terá lugar para uma ursa.
Você tem a intenção de entrar em mim?
Sim.
Estou com medo."
No primeiro capítulo, a narrativa nos introduz a uma ursa que permanece sem nome, mergulhando-nos em uma atmosfera de incerteza onde não é claramente definido se estamos diante de um animal, de um ser humano ou de uma entidade em metamorfose. Há um jogo de identidades entre o eu humano e o eu animal. Na interação entre Toska e Ursula, essa dualidade se manifesta com mais clareza. Apesar da aparente simbiose, a dinâmica de poder é questionada, desafiando a noção tradicional de supremacia humana. A passagem a seguir captura a tensão entre identificação e distinção, mas também propõe uma reflexão sobre a igualdade intrínseca entre as formas de vida, questionando as barreiras impostas pelo especismo.
"Acordei do sono e vi Toska à minha frente. Ela estava curvada e dormia. Seu travesseiro era seu braço esquerdo. Como se fosse uma imagem espelhada, eu estava na mesma posição."
Na sequência, somos apresentados ao pequeno Knut, o ursinho que inspirou o romance. E aqui temos sua história verdadeira contada sob o que poderia ser seu ponto de vista. Parece tudo tão real. Ele não sabe o que o espera, como foi parar ali, em uma caixa que imagina ser a totalidade do mundo, mas que, aos poucos vai se revelando pequena. Sons o levam a imaginar que há algo a mais a ser descoberto. Ele ouve ratos, pássaros e sem saber quem são, já os distingue. A afeição ao tratador, aqui no romance chamado de Matthias, é grande. Através de seu olhar ele assiste à TV e é apresentado ao mundo que lhe é possível ver. Sempre intermediado, sempre por meio do seu espaço restrito. Mathias, por outro lado, também é bastante apegado ao urso e parece se ressentir do espetáculo que aguarda o pequeno Knut. Procura estender qualquer momento que passam juntos na esperança que a grande aparição pública nunca chegue. Mas isso é inevitável. Cabe tornar o momento o mais natural ao ursinho, que se delicia por estar em um espaço maior brincando com o "pai", "amigo", "único ser que lhe é próximo". Juntos, passam a andar pelo zoológico de Berlim e Knut conversa com outros animais, todos presos e com suas questões. Aos poucos, o urso aprende a discernir o que se espera dele e entende que está ali para entreter. Há grande reflexão sobre o Polo Norte ao longo de suas interações, e Knut tenta entender esse lugar místico de onde dizem que ele veio.
"Todas as manhãs, Knut ouvia o canto dos pássaros que se alegravam quando a escuridão se retirava e o sol chegava para começar seu turno. Os seres alados ficavam atormentados, com medo de não achar nada para o café da manhã. Às vezes, o mais fraco entre eles era atacado por pássaros mais fortes e fugia gritando pelo céu. Knut não conseguia vê-los, mas seus sons eram vívidos o bastante para poder imaginar seus dramas rotineiros. De vez em quando, pássaros especialmente atrevidos vinham e olhavam dentro do quarto de Knut. Todos eram chamados de “pássaros”, mesmo que a única coisa que tivessem em comum fossem as asas. O pardal, uma mistura marrom de modéstia e agitação, o melro com seu humor despretensioso, a máscara pintada da pega-rabuda e o pombo, que não perdia a oportunidade de repetir seu lema favorito: “Mesmo? Que interessante. Eu não fazia ideia!”. Knut ouvia incontáveis vozes aviárias e imaginava que o mundo lá fora devia ser repleto de pássaros. Por que Knut, Matthias e o rato não tinham asas? Se tivesse asas nas costas, ele teria voado diretamente para a janela para olhar para fora."
Neste romance, Yoko Tawada nos transporta para uma visão do mundo sob a perspectiva animal. Lestel disse que ainda estamos muito distantes de compreender verdadeiramente a linguagem não-humana. Jacques Derrida e Maria Esther Maciel exploram ainda mais esse pressuposto, propondo que o pensamento animal encontra sua expressão na poesia. E foi exatamente isso que Tawada fez, por meio da literatura: nos deu um vislumbre de pensamentos muitas vezes ignorados e maltratados. Traz ainda as diferenças na forma como tratamos os animais, dependendo de sua utilidade ou apelo estético. Animais como os ursos polares e elefantes, por exemplo, são muitas vezes venerados e, sob o pretexto de proteção, capturados e aprisionados, enquanto outros, como ratos, são repudiados. Um diálogo marcante entre Knut e um panda reflete sobre como a "fofura" impõe aos animais um fardo de constante vigilância e exploração humana.
"Somente os pandas viviam em outra rua, mesmo pertencendo à família dos ursos. Eles não ficavam em uma área aberta, mas em uma imensa jaula. Não tinham terraço, mas contavam com um jardim de bambus. Matthias me disse: “Christian cuidou muito bem de Yang Yang. A morte dela o devastou. Ele ficou de luto por meses. Graças a você, voltou aos eixos”. Tentei imaginar como seria perder um protegido, ficar profundamente triste e depois voltar aos eixos, pondo-se de pé sobre duas ou quatro pernas, graças a um novo protegido. Meu fluxo de pensamento foi interrompido quando um panda, que até aquele momento estava mordiscando grandes folhas verdes, me olhou de cima a baixo e disse, seco: “Você é realmente fofo. Mas cuidado! Os animais que são fofos demais são os que estão morrendo”. Assustado, perguntei o que ele queria dizer com aquilo. “Você é fofo, e eu também. Como estamos em risco de extinção, temos que ativar o instinto de proteção dos humanos. Por esse motivo, a natureza está tornando nosso rosto cada vez mais adequado ao gosto humano, para que sejamos cada vez mais fofos. Olhe para os ratos. Eles não se importam nem um pouco se os humanos os consideram fofos. A espécie deles não tem nenhum risco de ser extinta.” A avó de Knut também traz esses pontos quando reflete sobre a maneira como os humanos entendem e atribuem os 'direitos humanos', contrastando-os com os direitos dos animais."
Essa reflexão também permeou os pensamentos da avó de Knut. Para ela, a ideia de 'direitos humanos' parecia uma noção distorcida, uma construção puramente humana que ignorava as complexidades e os direitos de outras formas de vida.
"Humanos que só pensavam em humanos tinham criado o conceito de direitos humanos. Um dente de leão não tinha direitos humanos, nem mesmo um aguaceiro, uma, uma água-viva, a chuva, o coelho. Talvez uma baleia tivesse. Lembrei-me do texto que li em uma conferência intitulada: 'A caça às baleias do capitalismo`: os grandes mamíferos tinham mais direitos do que os menores, como o rato, o que provavelmente se devia ao gosto de alguns grupos humanos, que davam mais valor a animais maiores. Entre os mamíferos que não eram vegetarianos nem viviam na água, nós, ursos-polares, éramos os maiores. Além daquela teoria, eu não conseguia pensar em nenhum motivo pelo qual me perseguiram para tentar me dar os tais direitos humanos."
A escritora nos encoraja a termos uma compreensão mais empática e poética da vida animal. Ao abordar as consequências do aquecimento global e das catástrofes ambientais, faz um apelo urgente para reconsiderarmos nossa relação com todos os seres vivos. Como bem pontua Maria Esther Maciel, Tawada, ao escrever essas biografias ficcionais (ou reais, no caso de Knut), que entrelaçam humanos e não humanos nos lembra que, no final, todos compartilhamos o mesmo planeta.
"Ela compõe três autobiografias ficcionais de ursos num só livro, através de um engenhoso entrelaçamento de mundos humanos e não humanos, criando um complexo diálogo entre as narrativas em primeira e terceira pessoas. Ao fazer isso, Tawada se empenha em 'traduzir' para palavras aquilo que imagina serem os pensamentos mais íntimos dos animais, enquanto simultaneamente questiona e redefine nossos conceitos arraigados de humanidade e humanismo. Além disso, ela aborda as devastadoras consequências do aquecimento global e das catástrofes ambientais para a vida no planeta." (Maria Esther Maciel)
O romance culmina com uma cena maravilhosamente triste, na qual Knut, sob a neve que começa a cair, se encanta, vivenciando um breve vislumbre de liberdade, ao menos naquele instante efêmero.
"Algo mais escuro que a luz voava no entremeio. Um floco de neve. Estava nevando! Mais um floco. Neve! Mais um floco. Neve! E mais um floco. Neve! Os flocos dançavam aqui e ali. Neve! À primeira vista, parecia surpreendentemente escura, apesar de não ser nada mais do que uma branca cristalização. Neve! Que magnífico perceber que o brilho das cores em movimento instantaneamente escurecia. Neve! Os flocos giram ao cair. Neve! Mais um floco. Neve! E mais um. Neve! Não tinha fim. Eu só olhava pra cima. De todos os lados, ao meu redor, folhas brancas voavam como as folhas de outono em uma tempestade. A neve era uma espaçonave, levou-me junto e voou o mais rápido que podia em direção ao crânio — ao crânio de nossa terra."
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