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quarta-feira, 31 de julho de 2024

desonra



"Pense em coisas tranquilas, em coisas fortes. 
Eles farejam o que a gente pensa." 

"Desonra", de J. M. Coetzee, é uma obra que, embora focada na complexa vida pessoal e social de seus personagens, oferece uma profunda reflexão sobre a relação entre humanos e animais. Situado na África do Sul pós-apartheid, o romance aborda culpa, redenção e o impacto da violência, tanto humana quanto animal. No romance, a jornada de David Lurie ao lado de sua filha Lucy revela um profundo processo de transformação pessoal, que é espelhado em sua crescente empatia pelos animais. 

Você sai da leitura e segue perdido, como os personagens. A história começa com o professor David Lurie, de cinquenta e dois anos, divorciado - duas vezes - e com uma vida tranquila e morna. Dá aulas sobre temas que não lhe interessam, o que faz com que elas sejam bem ordinárias.

Uma vez por semana tem encontro marcado com uma mulher em um quarto limpo, com toalhas e sabonetes à sua disposição. Está no que, hoje, chamamos de zona de conforto. Até que Soraya, a moça com que se encontra para o sexo casual, diz que não poderá mais encontrá-lo. Após tentativas frustradas para descobrir o motivo, ele a vê com sua família, marido e filhos, na rua. O incidente o leva a refletir sobre o envelhecimento, sua vida e até mesmo a castração, a fim de parar com os desejos.

No meio de tudo isso, uma de suas alunas se sobressai, Melanie Isaac. Após uma abordagem na universidade, ele a convida até sua casa. Outros encontros acontecem, mesmo contra a vontade da garota, que se sente, de algum modo, obrigada a ceder às investidas. Depois disso, há a denúncia de abuso sexual e ele acaba se afastando do cargo e foge para a fazenda da filha, Lucy, que também lida com suas próprias questões. Ela acabou de terminar um relacionamento e tenta se encaixar no modo de vida das pessoas ao seu redor. David mora na Cidade do Cabo. E Lucy mora em Salem, Kenton, no Cabo Leste. São quase 900 km de distância. Mas ele precisa desse refúgio para superar, ou não, a culpa. 

"Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço."

Chegando na casa da filha, tenta se adaptar à vida no interior da África do Sul. Fica apreensivo ao vê-la morando sozinha, sem vaidade e com parcos recursos. Aos poucos, porém, vai se reencontrando naquele lugar longínquo (em todos os sentidos para ele), ajuda no que é possível e até encontra um trabalho voluntário no abrigo de animais.

Lucy tem um hotel para cachorros e uma, em particular, nos é apresentada. Assim como os demais personagens da casa, também foi abandonada. Trata-se de Katy, que chegou para ficar hospedada e por lá ficou. Ao ser questionada pelo pai se não tem medo de ficar sozinha, Lucy responde que: 

"tem os cachorros. Os cachorros já são alguma coisa. Quanto mais cachorro, mais proteção. Mas seja como for, se alguém resolver entrar, não acho que estar em duas seja melhor que uma."

Mas ela conta ainda com Petrus, seu vizinho, que foi seu empregado no passado. A impressão é que há um pacto entre eles, com favores mútuos. Há Bev, que cuida do refúgio de animais na região, que David, a pedido da filha, irá ajudar. Cabe à Bev praticar a eutanásia nos animais que não podem mais ser curados e também naqueles que não poderão encontrar um lar. A palavra eutanásia não aparece, mas fica bem claro do que se trata. Mas ela não faz isso de modo frio, pelo contrário, conversa com os bichos e procura dar conforto e acolhimento em seus últimos instantes de vida.

David não sente nenhuma empatia por este trabalho e chega a repudiar Bev por sua aparência física. Em uma conversa com a filha deixa claro sua percepção, que reflete a de muitas pessoas: 

"Na criação, nós somos de uma ordem diferente dos animais. Não necessariamente superior, mas diferente. Portanto, se vamos ser bons, que seja por simples generosidade, não porque nos sentimos culpados ou temos medo de vingança." 

Dentre os animais tratados por Bev, está um bode que levou uma mordida de cachorro e que está agonizando, com feridas graves e bem infeccionadas. 

"O bode treme, solta um balido: um som feio, baixo e áspero."

Para ele, só resta descansar pelas mãos de Bev, porém, não é o que vai acontecer. Seus `proprietários`, assim como muitos, firmando a questão da posse, preferem fazer o serviço em casa. É uma das passagens que mais me marcou, pelo sofrimento do bode, por ele entender o que estava por vir, por ter sido privado, no fim, do único alívio que poderia ter. É quando David começa a entender o real propósito do trabalho de Bev: "aliviar o sofrimento dos bichos da África."

E, assim, à medida que David vai se aproximando dos animais, de Bev e da cadela Katy, sua visão sobre os animais vai mudando. Há uma sintonia que ele não esperava sentir. Percebemos isso de forma clara quando ele vê dois carneiros amarrados perto da entrada da casa. Sabe que estão lá porque foram os escolhidos para serem servidos na festa que Petrus está preparando. Mais tarde, só lhe resta se distanciar do prato que lhe é servido.

Seus temores se mostram reais e a casa é invadida por três homens e sua filha violentada, numa passagem bem trágica. Ele mesmo é ferido, mas é Lucy quem fica com as piores cicatrizes. A partir daí, o relacionamento entre eles, que já não era tão próximo, se torna ainda mais conturbado, principalmente por conta de suas acusações contra o vizinho, que a filha insiste em defender. Ele acaba voltando para sua cidade de origem e lá descobre que perdeu o pouco que ainda lhe restava, sua casa também foi roubada. O que sobra: terminar o libreto sobre a vida do poeta inglês Lord Byron, suas paixões, culpas. Sua amante casada, a filha que abandonou. E durante o processo criativo, ao pesquisar a melodia perfeita para retratar a história do romancista, percebe nuances de suas próprias escolhas. A narrativa de Coetzee é deslumbrante. É como se estivéssemos na plateia acompanhando a ópera.

Outro animal que toca David é um dos cães do canil, que anda se arrastando. Nenhum visitante se interessou em adotá-lo e seu tempo está quase no fim. Às vezes, solta o cão do compartimento, deixando-o passear pelo quintal ou cochilar aos seus pés. O cão, por sua vez, adotou nosso protagonista, demonstrando grande afeição por ele. Encanta-se pelo som do banjo quando Lurie toca e canta, enquanto escreve o libreto.

"Começou a sentir um carinho particular por um dos cachorros do canil. É um jovem macho que tem um quarto traseiro murcho que arrasta pelo chão. Ele não sabe se nasceu assim. Nenhum visitante mostrou interesse em adotá-lo. Seu período de graça está quase no fim; logo, terá de ser submetido à agulha. Às vezes, quando está lendo ou escrevendo, solta-o do compartimento e deixa que passeie, com seu jeito grotesco, pelo quintal, ou que cochile aos seus pés. Não é “dele”, de jeito nenhum; teve o cuidado de não lhe dar um nome (embora Bev Shaw refira-se a ele como Driepoot, três patas); mesmo assim, ele é sensível à generosa afeição que o cachorro lhe dedica. De forma arbitraria, incondicional, foi adotado; o cachorro é capaz de morrer por sua causa, ele sabe disso. O animal fica fascinado com o som do banjo. Quando dedilha as cordas, o cachorro se senta, inclina a cabeça, escuta. Quando cantarola um verso de Teresa, e o cantarolar começa a se encher de sentimento (é como se a sua laringe engrossasse: dá para sentir o sangue pulsando na garganta), o cachorro estala os beiços e parece a ponto de cantar também, ou de uivar."

Aliás, os cachorros de um modo geral o comovem e serão, de algum modo, sua redenção. A fim de dar um fim mais digno a eles, ele irá levá-los para serem cremados no incinerador do hospital. Mas faz isso antes que outros sacos com lixos diversos cheguem, a fim de garantir um mínimo de dignidade aos animais. Ele se questiona por que está fazendo este trabalho. Seria por Bev, com quem acaba aliviando sua tensão sexual, pelos cachorros? Ou, no fim, por ele mesmo?

"Curioso que um homem tão egoísta como ele possa estar se oferecendo para servir a cachorros mortos. Deve haver alguma outra maneira, mais produtiva, de se dar par ao mundo, ou para uma visão do mundo. Podia, por exemplo, trabalhar mais horas na clínica." 

Ao aproximar-se dos animais, ele também se reaproxima de seus problemas. Acaba procurando o pai de Melanie. No jantar, lhe é servido frango. Mas ao contrário do carneiro, aqui não há menção à repulsa por ter um animal no prato, pelo contrário. Afinal, ele não os viu em vida. No fim, não há redenção. Há a surpresa de que nem mesmo a mais bela alma poderá salvar David. Ele já desistiu de tudo. Não há nada que o faça se distanciar do presente, tão cruel, tão subversivo.

sábado, 27 de julho de 2024

literatura e animalidade



"Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão."

Logo na primeira frase de "Literatura e Animalidade", Maria Esther Maciel afirma que ainda estamos longe de entender os animais.

Este enunciado estabelece o tom de seu estudo, que desafia a percepção tradicional dos animais como meros objetos ou símbolos à disposição do entendimento humano.

A autora comenta ainda a maneira com que tratamos os animais, variando conforme a utilidade que apresentam para nós.

"Temidos, subjugados, amados, marginalizados, admirados, confinados, comidos, torturados, classificados, humanizados, eles não se deixam, paradoxalmente, capturar em sua alteridade radical."

Ao questionar o que é humano e o que é animal, Maciel aponta para as tentativas científicas de definir essa relação, frequentemente apoiadas na racionalidade e na "máquina antropológica do humanismo". Este termo critica a tendência do pensamento humanista ocidental de colocar os humanos no centro do universo, assumindo uma superioridade inerente sobre o mundo natural, incluindo os animais.

A separação entre humanos e animais, acentuada no Ocidente durante o século 18 com a ascensão do pensamento cartesiano, tratava os animais como meras máquinas sem alma. Sob essa visão, estudos científicos rigorosos, como a taxonomia de Lineu, começaram a moldar a investigação zoológica, influenciando também o surgimento dos primeiros zoológicos na Europa.

Após essa introdução, a atenção se volta para o campo do imaginário e para espaços considerados alternativos do saber humano, "nos quais a palavra animal ganha outros matizes, inclusive socioculturais". Maciel aborda a evolução na forma como se denomina obras literárias que trazem o animal. Antes, falava-se em bestiário, termo que ela critica devido às suas conotações negativas e medievais.

"Além disso, por suas origens medievais, o termo deriva da besta, palavra completamente contaminada pela carga simbólica negativa que lhe foi conferida pela tradição judaico-cristã ao longo dos tempos, afinando-se, por extensão, com a noção de bestialidade - qualidade daquilo que é brutal, grosseiro, monstruoso e maligno."

Assim, o termo bestiário esvazia o animal de anima, reforça sua dimensão negativa e marca sua exclusão da sociedade dos chamados "seres racionais".

Surge, felizmente, o termo zooliteratura, mais abrangente e que consolida tudo o que se diz sobre os animais nas diferentes práticas literárias. 

"Conjunto de diferentes práticas literárias ou obras (de um autor, de um país, de uma época) que se voltam para os animais. Nesse sentido, é bem mais aberto e menos cristalizado que o termo bestiário, uma vez que este se inscreve sobretudo na ordem do inventário, do catálogo, designando uma série específica de bichos reais e imaginários, podendo, também - de forma mais genérica -, designar uma coleção literária e/ou iconográfica de animais imaginários ou existentes de um determinado autor ou período cultural."

A autora baseia-se, sobretudo, na obra "O animal que logo sou", do filósofo francês Jacques Derrida, que utilizou o termo zooliteratura ao abordar os animais de Francis Ponge e zoopoética para falar dos animais de Franz Kafka. Ao preferir esses termos ao do bestiário, Derrida os transforma em conceitos que abrangem obras literárias focadas nos animais. 

"O termo zoopoética poderia ser empregado para designar tanto o estudo teórico de obras literárias e estéticas sobre animais quanto a produção poética específica de um autor, voltada para esse universo 'zoológico', como fez Derrida."

Dentro deste contexto, a obra de Franz Kafka, especialmente A Metamorfose (1915), é precursora na inserção de animais para além da visão antropocêntrica, inaugurando uma tradição literária que explora a interseção entre o humano e o não humano através de uma crítica profunda. Ao transformar o protagonista, Gregor Samsa, em um inseto, Kafka traz à tona a animalidade do humano por meio de uma situação surreal que ilumina as qualidades animais inerentes aos humanos. Essa abordagem kafkiana influenciou muitas obras literárias subsequentes, que, embora ainda recorram a alegorias derivadas de bestiários antigos e fábulas tradicionais, agora incorporam essa nova perspectiva, redefinindo o campo da zooliteratura ocidental.

"Trata-se, por isso, de uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade. Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no paradoxo, visto que, ao mesmo tempo que são e devem ser mantidas - graças às inegáveis diferenças que distinguem os animais humanos dos não humanos -, é impossível que o sejam mantidas de modo idêntico, já que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos." 

Maciel traz inúmeros exemplos a partir de suas análises que justificam seu enunciado e tese. Da Argentina, ela discute as obras de Jorge Luis Borges, como "Manual de zoología fantástica" e "O livro dos seres imaginários", que exploram criaturas reais e mitológicas, expandindo o imaginário animal na literatura. Do Brasil, destaca João Guimarães Rosa com "Meu tio o Iauaretê", que explora a metamorfose e a relação mística entre humanos e animais no sertão brasileiro. Também inclui Clarice Lispector, com "A paixão segundo G.H." e "O búfalo", que tratam da introspecção e da alteridade animal, e Machado de Assis, com "Ideias de canário" e outras obras que questionam a racionalidade humana em comparação com o saber animal.

Da África do Sul, ela aborda J.M. Coetzee e suas obras "Desonra" e "A vida dos animais", que exploram as questões éticas e políticas relacionadas ao tratamento dos animais na sociedade, revelando a marginalização e a violência enfrentadas por esses seres. De Portugal, Maciel menciona autores como Herberto Helder, cujas obras "Última ciência" e "Poemaco" exploram a presença dos animais na poesia, e António Osório, que, em um de seus escritos traz a comunicação das vacas por meio do olhar. Esses são apenas alguns exemplos.Vale a leitura completa para absorver tudo o que esta obra nos proporciona. 

sábado, 13 de julho de 2024

o guardião de segredos de jaipur


"Algumas mentiras devem ser mantidas em segredo."

Voltei para Jaipur e Shimla com os personagens do segundo volume da trilogia da escritora Alka Joshi. "O guardião de segredos de Jaipur" começa com uma tragédia: um grandioso cinema desaba durante a cerimônia de inauguração. O empreendimento, financiado pela marani e construído pela elite da área de Jaipur, era extremamente aguardado pela sociedade, que estava em peso no dia do acidente. Com esse início, minhas expectativas subiram, porém, fiquei frustrada ao ver que o romance foi bem morno, além da introdução de personagens bem maçantes, como Nimmi, jovem viúva de uma tribo montanhosa dos Himalaias e namorada de Malik. Como ela é desagradável. Pobre Malik.

Vale relembrar brevemente o primeiro romance da trilogia, "A pintora de henna", que traz Lakshmi como protagonista. Ainda jovem, ela fugiu de um casamento abusivo e conquistou fama em Jaipur com suas pinturas de henna. A chegada da irmã mais nova, que até então ela desconhecia, transformou sua vida, levando-a às montanhas do Himalaia. Malik, agora protagonista do segundo volume, era seu ajudante, com apenas oito anos. Foi uma leitura extremamente agradável, que me fez rememorar a Índia que nunca visitei, mas que conheço pelas leituras de seus escritores.

Malik, já adulto, se envolve com Nimmi, que se vê totalmente dependente de sua presença, chegando a hostilizar Lakshmi. Esta, por sua vez, deu a volta por cima e agora vive com o marido, cuidando de uma horta medicinal e oferecendo conforto aos pacientes locais. Malik, que desde criança vive com Lakshmi, que praticamente o adotou, retorna ao seu local de origem a fim de ganhar experiência profissional. Lá, reencontra os mesmos personagens que marcaram sua infância. Ele estava na noite do acidente no cinema e, agora, caberá a ele e a Lakshmi descobrirem as causas da tragédia para ajudar o amigo que está sendo acusado.

Eu esperava bem mais. Se bem que o li num momento em que não estava preparada para grandes reviravoltas, e talvez algo sem tanto tempero tenha sido o ideal para meu estado de ânimo.

"Digo a mim mesma que não devo me preocupar com o que não posso controlar; mesmo assim, meu coração está acelerado e o sangue pulsa em meus ouvidos."