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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

a nova razão do mundo





“Os neoliberais opõem-se a qualquer ação que entrave
o jogo da concorrência entre interesses privados.”


A partir de breve panorama do liberalismo, os franceses Pierre Dardot e Christian Laval falam, em “A nova razão do mundo”, sobre a evolução e as transformações que fizeram com que o neoliberalismo se tornasse, mais que um sistema político e econômico, uma racionalidade que permeia nosso modo de viver.

Eles dão, inclusive, a data para seu início, 26 de agosto de 1938, durante o Colóquio Walter Lippmann (jornalista e escritor norte-americano). Esse evento, que durou cinco dias, encerrou-se com a criação do Centro Internacional de Estudos para a Renovação do Liberalismo.

Não vou ter a pretensão aqui de resumir a obra, que merece ser lida na íntegra. Apenas vou elencar o que mais me chamou a atenção e o que me faz recomendar muito o livro.

A leitura nos leva a refletir sobre como incorporamos, mesmo sem querer, os valores do neoliberalismo em nosso dia a dia, tanto em nossas relações profissionais, como nas pessoais. A lógica aplicada é a da concorrência a qualquer preço. Não importa o que seja feito, o importante é sempre sair na frente. Os autores falam muito sobre a valorização de empreendedores. Todos precisam ter ideias mirabolantes, executá-las e ganhar muito dinheiro com isso. Quem fizer menos, é perdedor e não merece nenhum benefício para apaziguar seu fracasso. Um exemplo são programas que limitam (ou até mesmo tiram) o apoio dado aos desempregados em alguns países europeus. Eles são obrigados a aceitar os empregos que lhes são oferecidos sob pena de ficarem sem nada. Na verdade, ao contrário do liberalismo que surgiu como forma de acabar com o autoritarismo e que pregava o laissez-faire, “no qual o indivíduo é livre para escolher entre diversos modos de agir, sem ser tolhido pela ameaça de ser punido”, o neoliberalismo parte da premissa de que todos precisam atuar como empresas, inclusive os autores falam do ‘homem empresarial´, “sujeito que tenta superar os outros na descoberta de novas oportunidades de lucro”, o que não deixa de ser outra forma de autoritarismo, se pensarmos bem.

“Toda situação que não corresponde às condições da concorrência pura e perfeita é considerada uma anomalia que impossibilita a realização da harmonia preconcebida entre os agentes econômicos.”

Pregam ainda a limitação do Estado, pois acreditam que o governo pode cair no viés de assistência social, facilitando a vida daqueles que de algum modo não se encaixam na ordem dos negócios e das relações. Em outras palavras, o assistencialismo, que é absolutamente repudiado por esta racionalidade. Partem da afirmação seca: “se uma pessoa não deseja trabalhar, não deve comer.” Por outro lado, o poder das grandes organizações privadas aumenta consideravelmente, e são elas que ditam como as coisas devem ser, inclusive legislações. Neste sentido, a ética nas transações comerciais passa a ser questionável, prova disso é a ascensão recente dos programas de compliance, que visam a dar conta de problemas que podem prejudicar a reputação das organizações e a continuidade de seus negócios.

Essa forma de pensar é incorporada sobretudo nas relações profissionais. Basta analisarmos como somos constantemente avaliados nas organizações, as bases dos famosos ´feedbacks´ dados pelas lideranças e ainda a competitividade acirrada entre os diversos setores das companhias. Outro exemplo é a busca por curtidas e comentários nas redes sociais. Mais do que viver determinado momento, queremos que ele seja visto pelas pessoas, queremos que nossa realidade virtual seja a melhor de todas, a regra é o exibicionismo. “O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades.

É uma eterna corrida para ver quem mais se sobressai. O resultado é o aumento, cada vez mais expressivo, de doenças mentais, como burnout, ansiedade e depressão. Temos diante de nós um paradoxo interessante: de um lado sabemos o que nos faz mal, mas alimentamos isso, mesmo quando queremos mostrar que estamos pisando no freio. Talvez a saída esteja nas próximas gerações. A cultura do compartilhamento cresce. Com ela a ideia de que o menos é o melhor. Ainda assim, por trás, temos a ânsia em apresentar as melhores soluções para esta ‘economia colaborativa’. “A ação coletiva se tornou mais difícil, porque os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis.” Afinal, “a polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina a solidariedade e a cidadania.” Esta é a nova razão do mundo. É a razão do nosso capitalismo.

“Com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos do que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da modernidade. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. Há quase um terço de século, essa norma de vida rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a subjetividade.”