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sábado, 17 de agosto de 2019

a revolução dos bichos



“Todos os animais são iguais. 
Alguns mais iguais que os outros.”

Foi ótimo ter lido “A revolução dos bichos”, do inglês George Orwell, logo após a leitura de “Inverno do mundo”, de Ken Follett, que termina com o fim da segunda guerra mundial e a expectativa de governos mais democráticos. Contudo, a realidade é bem diferente. Surgem a divisão da Alemanha, a Guerra Fria e o alastramento do medo, inclusive em nações que dizem pregar a liberdade, mas que, de forma velada, continuam a permitir o racismo e a violência.

A obra de Orwell, lançada em 1945, como afirmou o próprio autor, é uma fábula da revolução russa. O autor usa animais para falar como se deu a destituição dos czares e a tomada do poder pelos comunistas. Vale destacar que ele próprio, após passar por vários perrengues na vida, participou de movimentos socialistas, em especial na Espanha, tendo se deparado com o autoritarismo e o cerceamento da liberdade que o levaram a refletir sobre os verdadeiros valores do movimento. “Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira como os setores mais pobre dos trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer administração teórica por uma sociedade planificada.”

O cenário é a fazenda Granja do Solar. Numa noite, quando o proprietário vai dormir, os bichos são convocados para uma reunião urgente. Aos poucos vão se ajeitando no galinheiro para ouvir o velho Major, porco premiado em concursos humanos e que tem o respeito e admiração de todos. A pauta é sobre um sonho que ele tivera e que mostrava como seria o mundo quando o Homem desaparecesse, e também sobre uma canção da infância, cantada pela mãe, que clamava por uma revolução contra os tiranos. Major aproveitou para discursar sobre as condições nas quais os bichos viviam, sempre explorados.

“Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar são exigidos até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal na Inglaterra sabe o que é felicidade ou lazer após completar um ano de vida. Nenhuma animal na Inglaterra é livre. A vida do animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua.”
Três dias depois desse encontro, ele morre e a bicharada fica apreensiva para levar o ´sonho´ do Major adiante. A missão acaba caindo sobre os porcos, em especial dois deles, que mais se destacavam no grupo: Bola-de-Neve e Napoleão. Eles organizam o levante e o plano dá certo. Conseguem expulsar os humanos da propriedade, assumindo o controle de suas produções. No início tudo corre bem, com os bichos engajados em provar que o caminho escolhido foi o melhor. A canção apresentada por Major torna-se o hino dessa nova fase, mandamentos são criados e regras de convivências estabelecidas.

Com o tempo, acaba havendo uma divergência em relação aos projetos, em especial a criação de um moinho de ventos. Bola-de-Neve permanece fiel aos ideais de Major, pensando em formas de tornar o trabalho mais justo. Napoleão acaba por gostar da produtividade decorrente dos esforços e pensa em uma forma de ´lucrar´ e fazer a fazenda crescer. Enquanto ficam nesse dilema, surge uma reviravolta e os antigos moradores atacam a fazenda. Muitos animais morrem e os ânimos ficam bem abalados. É a oportunidade que Napoleão precisava para dar um golpe em Bola-de-Neve acusando-o de estar confabulando com o inimigo. Resultado, Bola-de-Neve acaba sendo expulso da Granja. Nisso, Napoleão alia-se a alguns humanos para vender seus produtos. E não é que ele gosta da coisa? Tanto que, utilizando o discurso de ´camaradas, é para nosso bem, para os humanos não retornarem´, explora seus parceiros ainda mais. A figura que retrata o trabalhador que realmente aceita o que está sendo dito é Sansão, cavalo que adota como lema “Trabalharei mais ainda”. Seu fim é triste. E tentar ajudá-lo é a única participação ativa do burro Benjamim, que apesar de saber mais que os outros, preferiu se omitir. Mas sua manifestação aconteceu tarde demais. Há também aqueles que começam a desconfiar do que está acontecendo, porém, somente a dúvida já é motivo para serem mortos. Chega, enfim, um momento em que passam a tocar a vida, esquecendo as premissas que os levaram a ‘assumir’ o controle da fazenda e não sabendo mais o que é o homem e o que é o bicho. Claramente, Napoleão representa Josef Stalin. Bola-de-Neve é Leon Trótski, que, por divergência de opiniões, foi expulso do partido de Stalin, refugiando-se em vários países até chegar no México, onde foi morto por um agente recrutado pelo governo soviético. Major é Karl Marx, que teve o sonho de um mundo sem desigualdades, mas com a infelicidade de deixar seus postulados nas mãos de pessoas que não entenderam seu real significado.

A despeito das questões políticas e históricas apresentadas, essa distopia de Orwell pode servir também para as questões da proteção aos animais. Há citações que retratam claramente o modo como os tratamos, na premissa de que somos superiores. Cabe aqui também a análise a partir do especismo. Inclusive, o trecho que fala sobre como alguns animais são mais iguais que os outros é bem retratado no livro. Há aqueles que por estarem mais próximos do ser-humano têm direitos estabelecidos, chegando até a ser humanizados, por isso, a dificuldade dos demais em saber quem é quem no fim do livro. Enquanto isso, os demais vivem a submissão de forma mais evidente, ou melhor, são simplesmente coisas. Encontrei na internet uma tese, da Universidade de Tampere, Finlândia, que analisa o romance sob a ótica do pós-humanismo. Publicado em 2016, traz vários elementos que corroboram com esse olhar.

O romance teve adaptação para o cinema, em 1954 com uma animação, e uma para TV em 1999. Uma nova versão foi prometida pela Netflix.

“O homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante.”