"Pela minha experiência, muita gente se acha capaz de galgar níveis mais altos sem fazer a menor ideia das grandes exigências envolvidas. Com certeza, não é coisa adequada para qualquer um."
Gosto muito de narrativas que trazem a Inglaterra dos grandes casarões. E comecei a ler este livro justamente depois de ter terminado de assistir ao filme "Downton Abbey”, sequência da brilhante série com seis temporadas, e que está entre as minhas favoritas. Portanto, foi extremamente difícil não associar a figura do protagonista, o mordomo Stevens, com Charles Carson, o mordomo da série interpretado por Jim Carter. Eu chegava a ouvir sua voz na narrativa de Ishiguro. Tanto que, apesar de sua bela interpretação, não consegui ver Stevens na pele de Anthony Hopkins, na versão cinematográfica de 1993.
Aqui temos a história e a dedicação de décadas de um mordomo à casa em que trabalha, Darlington Hall, e aos seus moradores, em especial Lord Darlington. Empenho que começou observando seu pai, também um importante mordomo. Este cargo era o ápice na ala dos empregados dessas mansões. Aliás, havia dezenas deles para dar conta de cada serviço: arrumar, lavar, limpar, cozinhar, servir a mesa, vestir os patrões, cuidar das crianças e muito mais. Ou seja, parece que às ladies e aos lords restava apenas o ato de respirar. Mas não estou aqui para julgar.
A narrativa começa com Stevens, já idoso e debilitado, refletindo sobre a necessidade de ter uma pessoa a mais lhe ajudando nas tarefas. Ele até tem um pessoa em mente: a antiga governanta, miss Kenton, e decide ir pessoalmente perguntar se ela toparia retornar. Muitos anos já se passaram dos dias de glória da casa, agora com o orçamento adequado aos novos tempos, o que inclui um quadro de empregados bem mais enxuto, basicamente com duas pessoas. E o zeloso colaborador não sabe bem como abordar a questão com seu novo patrão, Mr. Benn, rico norte-americano que acabou de comprar Darlington Hall e que está imprimindo seu estilo à habitação, o que deixa Stevens bastante confuso e inseguro. Mas, do seu jeito, ele tenta se encaixar no novo modelo de trabalho. Bem engraçada a passagem em que treina piadas para parecer descontraído diante do chefe, que está sempre soltando tiradas "engraçadas". Claro que não é bem sucedido. Ainda assim, vemos seu esforço.
Foi impossível não fazer uma analogia de seu empenho ao de inúmeros funcionários que atuam em grandes corporações. E que, de repente, se veem obsoletos, sem grandes atribuições. Ou que são descartados em prol do novo. Stevens tenta se mostrar aberto às mudanças. Embora, lá no fundo sinta saudades do velho tempo e tenha convicção que o seu jeito é o jeito certo de se fazer as coisas.
Ocorre que ao falar com Mrs. Benn sobre a possibilidade de Miss Kenton, o primeiro entende que ele quer visitar uma pretendente e acaba insistindo para que ele tire férias para viajar pelo interior inglês. Assim, começa sua meticulosa jornada de carro. Enquanto dirige ou para para observar as paisagens e dormir, relembra os principais momentos de sua vida, incluindo as oportunidades perdidas. Ele terá a chance de reverter uma delas, mas as obrigações do ofício falarão, como sempre, mais alto. Inclusive, sentiremos raiva dele em vários momentos, sobretudo no que diz respeito ao seu pai. A despeito de todas as mudanças, Stevens segue fiel aos princípios que fizeram dele um grande mordomo. Ele não abre mão da dignidade que sempre prezou e o trecho a seguir descreve muito bem tudo o que envolve sua profissão e o que pensa dela:
"Dignidade tem a ver essencialmente com a capacidade de um mordomo de não abandonar o ser profissional que lhe habita. Mordomos menores abandonam seus seres profissionais em prol da vida pessoal à menor oportunidade. Para essas pessoas, ser mormo é como desempenhar um papel numa pantomima; um pequeno empurrão, um ligeiro tropeço e a fachada despenca, revelando o ator que há por baixo dela. O grande mordomo é uma virtude de sua capacidade de habitar seu papel profissional - e de habitá-lo até o fim. Não se deixa abalar por acontecimentos externos, por mais surpreendentes, alarmantes ou constrangedores que sejam."
Como julgá-lo quando ainda vemos muitos profissionais deixando de lado suas vidas para ir atrás das metas corporativas? Será que é muito diferente do que Stevens fez? Precisamos, nós, de um olhar espantando diante do que pensamos sobre carreira e trabalho. Felizmente, isso parece estar acontecendo.
"Miss Keaton", garanti a ele, "é uma profissional dedicada. Sei, com toda a certeza, que não tem nenhum desejo de consistir família."
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