"O que era esse medo, esse pavor de ficar só, quando eu nunca fora um ser particularmente sociável e, na verdade, costumava fazer o impossível para evitar compromissos?"
Missy é uma figura de poucos amigos, mora sozinha e mantém sua rotina relativamente previsível. Tudo muda quando desmaia em praça pública durante uma apresentação de eletrocussão de peixes. Naquele momento, detestei a capa fofa que me levou a comprar o livro. Pesquisei sobre o assunto e descobri que esse método de pesca é corriqueiro, sobretudo para transportar peixes vivos. Em "A segunda vida de Missy", romance da britânica Beth Morrey, a técnica foi empregada para mover os peixes de lago a lago. Para facilitar o transporte, era necessário atordoá-los, algo que ocorre quando são eletrocutados. Em determinado momento, uma personagem faz um trocadilho dizendo que todos os peixes morreram de choque, mas se refere à mudança de ambiente, e não ao elétrico.
Embora não seja o foco da história, a abordagem da autora é intrigante. Sem apelar ao ativismo, ela nos faz refletir sobre nossas ações frente a outras espécies. Por que, por exemplo, nos achamos no direito de transportar peixes vivos de local a local?
Embora não seja o foco da história, a abordagem da autora é intrigante. Sem apelar ao ativismo, ela nos faz refletir sobre nossas ações frente a outras espécies. Por que, por exemplo, nos achamos no direito de transportar peixes vivos de local a local?
"— Ouvi um boato de que todos os peixes morreram. O choque foi demais para eles. — O choque elétrico? — Não, o choque de estarem em um lago diferente."
No enredo, porém, outro animal ocupa posição central: Bob, vira-lata que influencia profundamente a vida de Missy. Com a ausência da filha, filho e neto, seus dias são tomados pelo tédio. Inesperadamente, ela desenvolve temor da solidão, apesar de sempre ter sido avessa ao convívio social. Daí ela se afeiçoa a um garotinho que vê no parque que frequenta. Buscando reencontrá-lo, vai ao tal evento dos peixes, mas passa mal. Esse episódio faz com que conheça novas pessoas, que trazem mais sentido e emoção à sua vida, a segunda vida do título do livro. Nesse processo, ela entende o valor da amizade e percebe o quanto necessita de apoio. E é exatamente quando surge Bob, cadela que precisa de lar temporário enquanto sua tutora reorganiza a vida após se desvencilhar do marido violento. A princípio, Missy resiste à ideia, mas o amor supera os desafios.
Ao longo da narrativa, segredos do passado de Missy são revelados, explicando sua postura inflexível. Isso abrange sua vida de abdicações pelo marido, acadêmico renomado, conflitos com a filha e até um aborto. Acompanhamos ainda seu dilema em relação ao Brexit, a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia.
Contudo, seu amor por Bob se intensifica. Mas, um desfecho doloroso nos aguarda: Bob morre no final. Estou compartilhando isso pois ninguém me alertou. O encerramento do livro é tocante, mas a maneira como Bob é "substituída" mostra como muitos humanos, infelizmente, enxergam os animais.
Trechos
"— Eles vão eletrocutar os peixes! Quer ver? O pessoal responsável por cuidar do parque precisava transpor os peixes de um lago para outro, o que exigia que eles fossem atordoados. Pesca elétrica. Eu nunca tinha visto nem ouvido falar de um troço desses, nem parecia ser algo particularmente interessante, mas, talvez, se eu pudesse rever o “Oat”, o aperto na garganta que eu vinha sentindo desde que Ali e Arthur haviam entrado no avião pudesse diminuir um pouco. Seria algo para fazer, afinal..."
"A cerca de um metro da proa havia uma engenhoca circular, com umas barrinhas que mergulhavam dentro d’água, como um conjunto gigantesco de sinos de vento. A meu lado, um sujeito explicava o processo à mulher do seu outro lado. O aparelho funcionava em combinação com um condutor colocado no casco, o que criava um campo elétrico por onde o barco ia passando, enquanto uma alavanca de bordo controlava a corrente. Os homens deslizaram pelo lago em grandes círculos, um conduzindo a embarcação e operando a alavanca elétrica; o outro, ajoelhado, segurando uma rede. Por um tempo, nada aconteceu, mas então uma boia cinzenta e luzidia surgiu alegre na superfície — o primeiro peixe atordoado. — Ooooh — disseram os espectadores, batendo palmas educadamente. Depois disso, os peixes começaram a emergir por toda parte, reluzentes e apáticos, aguardando serem pescados. Toda vez que o segundo homem recolhia um deles, a massa de espectadores dava vivas e brindava com seus copos plásticos de vinho com canela. À medida que o espetáculo se estendia, mais inquietante ele se tornava. O “plop” constante com que os peixes subiam à tona, vibrando, o lento sibilar da rede, “chich”, o baque surdo subsequente, quando eles caíam no recipiente. Plop, chich, tum. Plop, chich, tum. Depois... plaft. O aturdimento só durava o suficiente para os peixes serem colocados no barco. Aquelas enormes carpas de aparência pré-histórica, cobertas de lama do lago, eram içadas a bordo e, de imediato, começavam a estrebuchar e se debater. Plop, chich, tum. Plaft, plaft, plaft. Num minuto você está ali, deslizando, sem a menor preocupação, e no seguinte vem uma cutucada gigante e lhe dá um tremendo choque, e então tudo fica diferente e você perde o fôlego de susto. E não há vitória na sobrevivência, porque depois a única coisa que você faz é ficar nadando em círculos sem parar num novo lago, fazendo movimentos inúteis com a boca. Eu ia preferir que acabassem com meu sofrimento. Do pó ao pó. A falta de ar voltando. Plop, chich, tum. Eu poderia desviar o olhar e aquilo acabaria. Não pense, não pense. Plaft, plaft, plaft. Agarrei a grade, tentando ignorar os galhos que pairavam no alto, mas minha pele foi formigando, ardendo, e eu me senti cair em meio a mãos que se estendiam e a gritos distantes, enquanto a escuridão tomava conta..."
"Arrumei a casa e me lembrei de quando tínhamos filhos pequenos e era impossível manter qualquer coisa no lugar. Agora, tudo era imaculado e permanecia assim."
"— De que diabos você está falando? Eu não quero um cachorro. — Olhei para Bob, ainda sentada junto à lareira. Era uma vira-lata, com a cor parecida com a de um pastor-alemão, só que menor, como um collie. Não era feia, em matéria de cachorros, mas eu nunca gostara muito deles. Muito obtusos e carentes."
"Dizem que as pessoas se parecem com seus cães, e eu imaginava que, se um dia tivesse um cachorro, ele seria uma espécie de cão de caça — alto, cinzento e arredio. E não essa coisa espevitada e saltitante, com suas cores outonais e olhadelas de esguelha."
"E assim, ali estávamos nós, a velhota chata, a mãe solteira, o super-herói e a vira-lata adotada, a caminho do casamento de minha filha com sua namorada. Acho que formávamos um grupo curioso."
"A magia não impede que o pior aconteça. O pior sempre acontece, todo dia. E a vida segue em frente. E a gente apenas se mantém firme e torce para poder guardar qualquer migalha e dentinho que sobrar."
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