"E os animais, Alice? Você vê os cavalos e os cachorros? Eu odeio pensar que estejam sofrendo, mas ouço relatos dos mais terríveis sobre cavalos se afogando na lama grossa. É verdade? Os campos estão muito vazios aqui. É quase possível esquecer quantas belas criaturas corriam livremente por esta terra. Todos se foram, exceto os que eram velhos e mancos demais para ser úteis. Eu me pergunto o que aconteceu com os amados cavalos de Will, Hamlet e Shylock. Nem gosto de pensar."
Lá se foi o tempo em que a troca de cartas era a principal forma de manter contato com amigos ou familiares distantes. Hoje temos videochamadas, áudios, mensagens instantâneas. Até mesmo o e-mail, que já foi tão usado, parece obsoleto. Com isso, perdemos um pouco dos detalhes e da emoção que as antigas missivas carregavam.
É justamente isso que o livro Último Natal em Paris, de Hazel Gaynor e Heather Webb, recupera. Confesso que, nas primeiras páginas, ainda não tinha me convencido, mas logo meu interesse despertou. Comprei sem ler muito sobre ele; apenas vi que falava de Natal e da Primeira Guerra Mundial.
O que temos aqui é uma história quase inteiramente contada por meio de cartas — trocas entre amigos, irmãos, pais e, principalmente, entre Thomas Harding e Evie Elliott, que protagonizam a narrativa.
O ponto de partida é a viagem de Thomas, já idoso, saindo da Inglaterra em direção a Paris. É a cidade que, por muitos anos, simbolizou o sonho adiado dele com Evie. Sempre diziam que, quando a guerra terminasse, iriam juntos para lá. Agora, com a saúde frágil e acompanhado por sua cuidadora, ele leva consigo um pacote de cartas que marcaram os anos em que esteve a serviço militar.
Essas cartas começam no dia em que ele parte com seu melhor amigo, Will, para a primeira missão, em 1914. A partir daí, inicia-se a troca de mensagens com Evie, irmã de Will. É por meio delas que acompanhamos o nascimento do afeto entre os dois, além de conhecermos um pouco da vida nas trincheiras, das transformações sociais e dos impactos da guerra no cotidiano.
Mas não lemos apenas as cartas entre Thomas e Evie. Há também bilhetes, telegramas e mensagens trocadas entre outros personagens, o que enriquece o enredo e amplia a perspectiva da época.
Um ponto particularmente interessante é a presença dos animais ao longo da narrativa. Evie começa a desenhar pássaros e vai aperfeiçoando seus traços com o tempo. Os pássaros tornam-se símbolo de liberdade, em contraste com o confinamento da guerra. Já os animais usados para alimentação aparecem de forma triste e realista, como na falta que fazem na ceia de Natal. E os ratos, como sempre, como horripilantes.
"As analogias com pássaros são bastante úteis, sabe? A carriça insufla seu pequeno peito para ter coragem e força, a cotovia dá sorte, e que tal o pavão, com seu imponente peito turquesa e sua bela cauda de penas coloridas? Você é como um pássaro. Uma águia, destinada a voar alto, mas sem nunca perder a visão aguçada. Você não é uma mulher de gaiola, é? Um dia, você não poderá conter o fogo que tem dentro de si e sairá por aí, irrefreável. Sua coluna é o início perfeito."
"Em outras notícias, temos uma infestação de ratos. Eu os ouço correr por trás das paredes e pela chaminé. Estremeço ao ouvir o arranhar das horríveis patinhas deles. Mills colocou armadilhas, e posso dizer que não há nada mais desagradável do que o paf e o crac que elas fazem ao serem acionadas. É de revirar o estômago. Tanto assim que estou em busca de um bom caçador de ratos. Não gosto muito de gatos, mas deve ser preferível a esse som terrível."
Há ainda uma cena marcante envolvendo cavalos. Descobrimos como também foram convocados para o esforço de guerra e acompanhamos a angústia do irmão de Evie, preocupado com seus animais.
"Falando em casa, seus cavalos foram levados para algum lugar? Will se preocupa com Shylock e Hamlet. Vimos as cargas partir – centenas deles, ou milhares, na verdade. Fomos informados de que estão confiscando todos os cavalos e os enviando ao front. Seu irmão cometerá traição se levarem os cavalos dele. Você sabe como ele os ama. Se forem para a batalha… Bem, não vamos falar disso. Faça o que puder."
Último Natal em Paris é emocionante. Para quem gosta de histórias de amor em tempos de guerra, é uma ótima escolha, cheia de emoção, memórias e reflexões sobre o poder das cartas.
"Você conhece minha paixão por Shakespeare, é claro. Você sabia que ele usou imagens de pássaros em sua obra mais do que qualquer outro? O poema mais obscuro dele é o complemento ao texto de outro escritor e se chama (agora, pois incialmente foi publicado sem título) “A Fênix e a Tartaruga”. Fala de um par de pássaros, uma fênix e uma pomba (a pomba-tartaruga), cujo amor cria uma união tão perfeita que desafia o sentido concreto e a lógica terrena e supera qualquer obstáculo. Mostrarei para você quando eu voltar. Tenho uma cópia entre minhas coisas da escola."
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