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sábado, 4 de dezembro de 2021

a irmã desaparecida



"E daí se vocês quiserem passar uma noite, uma semana, um mês ou talvez uma vida inteira juntos? Esses momentos, quando você conhece alguém que está tão atraído por você quanto você por ele, são muito raros."

E cheguei ao sétimo livro da saga “As sete irmãs”, de Lucinda Riley. Infelizmente, pouco depois de sua morte. A autora deixou ainda rascunhos e ideias para o que seria o oitavo sobre as irmãs D’Aplièses, cuja história é baseada nas Plêiades da mitologia grega, as sete filhas de Atlas e Pleione, a filha do Oceano. Uma surpresa, já que todos esperavam que “A irmã desaparecida” fosse o último da série.
A cada volume, conhecemos uma das irmãs, ao mesmo tempo em que visitamos diversos países, que revelam suas origens. Vale recordar que todas foram adotadas por um milionário que mora na Suíça, o Pa Salt. Quando ele morre, deixa pistas para que elas encontrem suas famílias biológicas. Dele, pouco sabemos. É um mistério que ronda, inclusive, suas filhas.

Com elas, já estivemos no Brasil, Noruega, Inglaterra, Austrália, Escócia, Espanha, Estados Unidos e Quênia. Sempre com a mesma estrutura narrativa. Do presente para conhecer o passado de seus ancestrais. A leitura é rápida e envolvente e nos dá uma ideia bem detalhada de como as pessoas viviam nas épocas retratadas. Foi bem interessante, por exemplo, ler sobre como o Cristo Redentor chegou ao Rio de Janeiro no livro que fala sobre Maia. Neste que acabei de ler, o cenário é, principalmente, a Irlanda, país natal de Lucinda. Vou roubar um trecho do seu site que descreve muito bem o contexto abordado:

“Em A irmã desaparecida, concentrei-me na Guerra da Independência e na subsequente Guerra Civil da década de 1920. Os confrontos mais recentes foram o que nós irlandeses chamamos de “os Conflitos” – um atrito que durou trinta anos na Irlanda do Norte, da década de 1960 ao final da década de 1990. Foi uma campanha terrorista continua, travada pelos republicanos e provocada pela crescente frustração sentida pela comunidade católica da Irlanda do Norte. Na batalha dos republicanos contra o Estado, 3.500 pessoas foram mortas e mais alguns milhares foram presos.”

O enredo é a busca pela tal irmã desaparecida, a que nunca foi levada para casa. A partir de alguns documentos encontrados pelo advogado da família, as seis mulheres seguem os rastros que podem levá-las até Mérope, a sétima irmã. A jornada começa na Nova Zelândia, país em que supostamente ela vive. Passa pelo Canadá, Inglaterra e França e, finalmente, Irlanda da década de 20 com a história de Nuala, que sempre lutou pela independência de seu País. Devo confessar que a tal irmã desaparecida me decepcionou um pouco. Gostei muito mais da história de sua avó e achei que o desenrolar de sua vida foi bem fraco. Sem contar a decepção ao ver que não era o desfecho esperado. Digo decepção com euforia, pois sei que vem mais por aí. Espero que o trabalho do filho de Lucinda, Harry Whittaker, responsável por organizar as notas da sua mãe faça jus ao final que a saga merece. RIP, LR.


As sete irmãs (Brasil)

A irmã tempestade (Noruega)

A irmã da sombra (Inglaterra)

A irmã da pérola (Austrália)

A irmã lua (Espanha)

A irmã sol (Quênia)

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

a livraria dos achados e perdidos


“Você nunca está sozinha
quandoestá lendo um livro.”

Natalie está na festa que celebra, dentre outras coisas, sua promoção. Executiva bem-sucedida na indústria do vinho em plena Califórnia, ela se choca ao ouvir seus funcionários comentando sobre como é uma péssima gestora. Se não bastasse, seu noivo e sua mãe simplesmente não aparecem nesse encontro, para ela muito importante. Perdida, se pergunta se realmente está no lugar certo. Até porque, pensa, a despeito de ser considerada um chefe ruim, está sempre corrigindo o trabalho dos outros, antes deles serem enviados adiante. Ou seja, ela salva a pele de muita gente lá. Ingratos!

Mas seu mundo desmorona mesmo quando é informada do motivo que impediu a mãe e o noivo de prestigiarem seu reconhecimento profissional. Ambos morreram em um acidente de avião enquanto estavam a caminho do evento. Ela, então, retorna para sua casa de infância e para a livraria que acaba de herdar. Lá mora também seu avô, que está bem doente. Aos poucos, descobre que a mãe estava atolada em dívidas e que eles podem perder a livraria, cujo valor sentimental é inestimável. Natalie se vê, então, obrigada a tomar uma decisão: voltar ao trabalho de executiva ou assumir a missão de recuperar a livraria e cuidar do avô. Óbvio qual será a escolha. 

No meio do caminho, surge Peach e um novo romance. Sobre os achados e perdidos do título, nada demais. Esperava mais. "A livraria dos achados e perdidos", de Susan Wiggs, é fraquinho, fraquinho. Valeu por apresentar uma livraria que mora nos meus sonhos e que transmite todo o amor pela literatura. Fiquei com vontade de comer os pãezinhos de canela com um cafezinho, sempre presentes nos encontros dos personagens.

domingo, 31 de outubro de 2021

o fantasma de canterville e outras histórias

                 


“A coisa toda lhe atingiu como um raio. 
Fora ludibriado, trapaceado, feito de bobo!”


Comprei esta coletânea de contos de Oscar Wilde por conta do texto do título. Queria ler algo próprio para o Halloween. Apesar de não ser uma história de terror, foi extremamente divertido me deparar com esse fantasma britânico tentando assombrar uma família norte-americana que não está nem aí para ele. Pelo contrário, Sir Simon Canterville é que acaba com medo dos Otis, que compraram a velha mansão na Inglaterra mesmo com os avisos de que era assombrada. Hiram e Lucrecia Otis são milionários e nunca demonstram um pingo de medo com as tentativas de Simon para aterrorizá-los. Conversam calmamente com o espírito, inclusive oferecendo produtos industrializados para, por exemplo, tirar o rangido de suas correntes enquanto ele passeia à noite pela casa arrastando-as. O fantasma quer morrer. Para piorar, os gêmeos pequenos do casal vivem pregando peças nele. Apenas a outra filha entende o sofrimento da alma penada, que em vida matou a própria esposa, morrendo (merecidamente) acorrentado no porão. O conto faz alusão às diferenças entre a prosperidade do novo mundo e às tradições do velho, ironizando ambos os lados. Hilário.

“Depois de uma carreira como esta, vinham uns americanos malcriados oferecer-lhe o Lubrificante Sol Nascente e atirar um travesseiro na sua cabeça! Era por demais insuportável. Além disso, nenhum fantasma na História fora alguma vez insultado dessa forma. Pois bem, iria ter sua vingança. Ficou até o amanhecer em profunda reflexão.”

A edição que li é a versão para o Kindle (Unlimited) da Editora L&PM Pocket. Ao acessar o livro, notei que o conto que eu buscava ficou de fora do índice. Apesar de ser um detalhe, me fez questionar se não seria mais uma das pegadinhas do excêntrico fantasma de Canterville. A coletânea traz ainda outros contos interessantes, como “O crime de Lorde Arthur Savile”, no qual o tal lorde está prestes a se casar. Porém, numa festa, ouve de um quiromante que irá assassinar, em breve, alguém. Arthur Savile acredita veementemente na profecia e faz de tudo para antecipar os fatos e evitar ser pego de surpresa pelo destino. E, assim, poder casar-se sem problemas. Mas suas tentativas serão todas frustradas. Acaso é acaso, não? Há ainda “O príncipe feliz”, que mostra a amizade entre uma estátua e uma andorinha. Ele deixando de lados os bens materiais e ela, os sonhos. Lindo e triste. Chorei.

sábado, 23 de outubro de 2021

big little lies


“Se exibisse no Facebook como sua vida era perfeita, talvez também começasse a acreditar.”


E, na sequência, de "O segredo do meu marido", emendei a leitura de "Pequenas grandes mentiras", que virou série de TV, "Big little lies", no título original, em inglês. Mas, ao contrário do livro que se passa na Austrália, a versão televisiva tem como cenário os Estados Unidos, especificamente a Califórnia. Tirando este "pequeno" detalhe, é bem fiel ao romance.

Encontrei os elementos do livro anterior de Liane, como a mesma escola, que parece (des)unir todos, a necessidade de adaptação ao estilo das mães que já fazem parte do circuito e também três protagonistas: 1) Madeline, tem três filhos, totalmente extrovertida, toma a frente de todos os eventos escolares. Está no seu segundo casamento, mas ainda não engoliu o fora do primeiro marido, com quem teve a filha mais velha. Para piorar sua situação, a adolescente resolve ir morar com o pai e a madrasta, deixando-a furiosa. 2) Celeste, linda, mãe de gêmeos igualmente maravilhosos, bem casada e riquíssima. Melhor amiga de Madeline, mas ao contrário da outra, Celeste é bem reservada e parece estar sempre em outro mundo. 3) Jane, mãe jovem e solteira que acaba de chegar à cidade em que se passa a história. Seu filho, assim como os gêmeos e a caçula de Madeline, está prestes a entrar no ensino fundamental. Contudo, acaba sendo acusado de praticar bullying na aula de apresentação.

A narrativa é repleta de depoimentos, isto porque o mote principal é um assassinato que está sendo investigado. Em retrospecto, acompanhamos os movimentos que precederam a festa organizada para os pais, na qual um deles foi morto. Todos os participantes são intimados a depor. A partir dessas vozes, entendemos como é fútil o ambiente em que vivem, basicamente de aparências. São essas as pequenas grandes mentiras do título. O destaque, porém, é a forma com que a autora aborda a violência contra as mulheres: uma numa relação casual, outra dentro do casamento e a terceira sob o olhar de quem cresceu vendo o pai espancar a mãe. Todas com traumas, cicatrizes, vergonha e medo de denunciar o agressor. Mais uma vez, a mentira e a fuga parecem a melhor opção das mulheres que não querem aceitar que estão em um relacionamento abusivo. Enquanto isso, as marcas insistem em aparecer sem que ninguém possa ajudá-las. Vale muito a leitura! Principalmente para você, que possa estar passando por uma situação parecida. Quem sabe não seja o apoio que precisa para se libertar.

domingo, 17 de outubro de 2021

o segredo do meu marido

=

"Você podia se esforçar o quanto quisesse para tentar imaginar a tragédia de outra pessoa — afogar-se em águas congelantes, viver numa cidade dividida por um muro —, mas nada dói de verdade até acontecer com você. Pior ainda, com seu filho."


Nada tinha me preparado para o final de “O Segredo do meu marido”, da australiana Liane Moriarty.
O segredo do tal marido é apenas um dos pontos centrais do romance, recheado de meias verdades. A narrativa começa com Cecília a conjecturar sobre o quanto a queda do Muro de Berlim pode ter mudado sua vida. Até pensei que poderíamos adentrar, de algum modo, na Guerra Fria. No entanto, passou bem longe. Ela mora em Sidney, é extremamente metódica, organizada, consegue fazer seu tempo esticar à medida que assume cada vez mais responsabilidades. Sua rotina, porém, é colocada em cheque com uma descoberta. Ao procurar em seu sótão um suposto pedaço do muro de Berlim (daí seus pensamentos), lembrança de uma viagem, Cecília encontra uma carta do marido endereçada a ela: para abrir somente quando eu morrer, dizia o envelope lacrado. É óbvio que ela ficou extremamente curiosa. Ao mesmo tempo, não queria trair o companheiro. Pensamento vai, pensamento vem, ela acaba comentando com ele sobre a carta. O comportamento totalmente desproporcional do cara a deixa ainda mais intrigada. Pronto. Ela abre e daí tudo muda. O segredo do título realmente é algo horroroso e inaceitável. 

Enquanto isso, temos Tess, que mora em Melbourne e está levando o fora do marido. O pior é que o motivo é sua prima e melhor amiga. Os dois estavam apaixonados. Ela pega o filhinho de seis anos, larga os trabalhos da empresa que os três têm juntos (sim, além de tudo, sócios) e parte para a casa da mãe, em Sidney. Nessa cidade, há ainda Rachel, que está lidando com a iminente separação do seu neto. A nora foi convidada a trabalhar em Nova York, levando junto o filho e o netinho de dois anos, sua companhia e motivo das poucas alegrias. Ela teve, no passado, uma perda muito grande que jamais será superada. Apesar de estarmos numa cidade com mais de cinco milhões de habitantes, eu me senti lendo uma história que se passa em um vilarejo aonde todos se conhecem e se conectam. Na verdade, o que vai unir todas as personagens é o bairro em que mora e, especificamente, a escola em que estudaram e na qual Rachel, hoje, trabalha. De um jeito ou de outro, as vidas das três se entrelaçam, de tal modo que a ação de uma impacta nas outras. Leitura rápida e interessante. O posfácio traz a consequência de nossas escolhas e como elas podem mudar tudo ao redor. Ignorar uma criança te chamando é uma delas. Não precisava, Liane.

sábado, 25 de setembro de 2021

sobre os ossos dos mortos


"Tudo em que se pode crer é uma imagem da verdade."


"Sobre os ossos dos mortos", da escritora polonesa Olga Tokarczuk, reforça todos os estereótipos em torno dos protetores dos animais. Estigmas que impedem o avanço da causa e, consequentemente, o fim dos maus-tratos. Estamos falando da ideia de que os que defendem os bichos são descontrolados, loucos (sim, podemos ser diante dos absurdos com que nos deparamos) e sem propósitos (isso jamais!). E que deveriam se dedicar a milhares de outras causas humanas em vez de prejudicar quem depende, por exemplo, do abate (argumento bem comum dos que não se preocupam com causa alguma). Bem, sei que fui ao extremo, pois nem todos pensam assim dos que lutam pelos direitos dos bichos. Mas fiquei incomodada com a forma com que a protagonista, Janina Dusheiko, foi retratada, especialmente no desfecho.

Estamos no inverno congelante em um vilarejo polonês. Lá, durante este período do ano, as pessoas fecham as casas e partem para outras localidades com temperaturas mais elevadas. Com exceção da Sra. Dusheiko, como é conhecida, e alguns outros poucos moradores. Engenheira aposentada, responsável pela construção de grandes pontes, e atual professora de inglês, ela tem como paixão a astrologia e como grande causa a defesa dos animais, que são caçados deliberadamente e ilegalmente naquela região. Também se debruça na obra de William Blake com um antigo aluno que estuda o poeta. Como renda, além das aulas, tem o dinheiro que recebe por cuidar das propriedades que ficam vazias nos dias mais congelantes. Ainda que frio piore suas dores, espalhadas por todo o corpo, ela não pode deixar seu posto, pois tem a missão de zelar, mais que pelas casas, pelos animais.

A narrativa começa com seu vizinho, Esquisito (ela não nomeia ninguém, todos são apelidados de acordo com suas características físicas, aliás, ela odeia seu próprio nome: Janina), batendo fortemente em sua porta no meio da madrugada. Ele havia encontrado outro morador da região, o Pé Grande, morto. Aparentemente, a causa da morte foi o engasgo com ossos do animal que acabara de comer. A sra. Dusheiko, porém, tem outra teoria: vingança das corças. O olhar intimidador que uma delas lança quando os dois se aproximam da casa da vítima é o primeiro indício de que há algo acontecendo. A partir daí, outras mortes vão corroborar para a teoria da nossa protetora, principalmente porque todos que foram assassinados tiveram envolvimento com os maus-tratos dos bichos. Ela vai à polícia e é ignorada, tenta desvendar os enigmas sozinha e sempre é tida como desvairada. Alguns chegam a ter pena da forma com que vive. Um fato importante é que ela perdeu seus dois cachorros logo no começo da história, suas amadas crianças. Isso é bem triste, principalmente quando ela encontra uma foto na casa de Pé Grande em que ele está com outras pessoas exibindo alguns animais que foram caçados. A partir daí só posso dizer que estou com a Dusheiko, mesmo que para o mundo trata-se de uma causa perdida. Mas entendo que Olga Tokarczuk, talvez a Senhora Cinzenta do romance (sim, a autora dá seu ar de graça ao ir morar nos confins da Polônia ao lado da protagonista), poderia ter dado mais chances ao fantástico, ao inusitado, não caindo no que todos esperam que seja a atitude dos que lutam sozinhos para mudar o que os incomoda. A adaptação para o cinema, Pokot, é ainda mais triste neste sentido. Enquanto isso, lutemos para que o especismo deixe de existir e para que os direitos dos animais sejam devidamente respeitados. Caso contrário, sigo torcendo pela vingança que, no fim, não aconteceu como eu esperava. Em determinado momento, um dos personagens canta Riders on the storm, do The Doors. Janina diz que é a trilha perfeita para aquela noite de tempestades. Eu digo que é a música que melhor define o cenário do romance: escuro, frio, assustador.


Riders on the storm

Riders on the storm

Into this house, we're born

Into this world, we're thrown

Like a dog without a bone

An actor out on loan

Riders on the storm



"É preciso manter os olhos e ouvidos abertos, associar os fatos, enxergar a semelhança lá onde outros veem uma completa discrepância, lembrar que certos acontecimentos ocorrem em vários níveis ou, em outras palavras: muitos incidentes são aspectos do mesmo acontecimento. E que o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado."

sábado, 4 de setembro de 2021

o segredo da felicidade


"Às vezes a visão de mundo simplista de uma criança era definitivamente melhor que a maneira como os adultos tratavam as coisas, complicando a vida com tantas nuances e camadas, turvando as águas com dúvidas e mágoas do passado."

Livro gostoso com mensagem bonita no final. Bom para ler durante uma viagem ou quando queremos simplesmente nos desligar do mundo. “O segredo da felicidade”, de Lucy Diamond, se passa numa cidadezinha do norte da Inglaterra, onde todos se conhecem e se intrometem na vida dos vizinhos. Lá vive Rachel, executiva bem-sucedida, casada, com três filhos e uma super casa de revista de decoração. Mas tudo desmorona, inclusive ela, que cai durante um assalto e vai parar no hospital, em outra cidade, sem se lembrar quem é e de onde veio. Caberá à filha de sua madrasta, Becca, resgatá-la. As duas nunca foram próximas, embora tenham vivido juntas na mesma casa por muitos anos. Sempre houve certo ressentimento de Rachel por ver Becca entrar na sua casa e ver seu pai a assumindo como filha também. O fato é que Becca é o oposto da irmã postiça: não tem emprego fixo, sente-se inferior a todos, desiludida no amor, mas tem um carinho grande pelos sobrinhos e por eles volta correndo para entender o que está acontecendo com Rachel e sua família. A partir daí, ambas vão revelando suas angústias, medos e conhecendo pessoas que farão com que vejam, literalmente, o lado bom da vida. Becca também será responsável por várias conexões interessantes entre outros personagens. Fiquei com vontade de correr no parque apresentado na história ;-)

sexta-feira, 4 de junho de 2021

o medo ao pequeno número


"Maiorias numéricas podem se tornar predatórias e etnocidas em relação aos pequenos números precisamente quando algumas minorias (e seus pequenos números) lembram àquelas maiorias a pequena brecha que existe entre sua condição de maiorias e o horizonte de um todo nacional imaculado, um ethnos nacional puro e limpo. Essa sensação de incompletude pode levar maiorias a paroxismos de violência contra minorias."


Em "O medo ao pequeno número", o antropólogo indiano Arjun Appadurai se debruça sobre os motivos que levam à repressão crescente às minorias, sendo que, para ele, o principal é o risco de que interesses especiais comprometam os interesses gerais. Afinal, é muito mais fácil dialogar, negociar e fazer planos quando todos estão "alinhados''. Não é à toa que o mundo corporativo prega a resiliência, palavra da moda que, no fundo, pede a adaptação à cultura organizacional e ao perfil de empregados que as empresas buscam. O mesmo vale para as nações. As minorias mostram a incompletude da pureza nacional, a incerteza social e, consequentemente, levam ao ódio. Tanto de um lado, quanto do outro.

O autor trabalha o conceito de identidades predatórias, ou seja, que não aceitam a existência de outro grupo. Elas partem do discurso de que podem virar minoria se o grupo, hoje menor, não for eliminado. Um exemplo é o projeto nazista.

"A própria ideia de ser uma maioria representa uma frustração, uma vez que implica algum tipo de difusão étnica no povo nacional. As minorias, como lembra esse defeito pequeno porém frustrante, desencadeiam a ânsia de purificar. Esse é um elemento básico de uma resposta para a pergunta: por que os pequenos números conseguem incitar a fúria? Os pequenos números representam um obstáculo muito pequeno entre a maioria e a totalidade ou a total pureza. Num certo sentido, quanto menor o número e mais fraca a minoria, mais profunda é a fúria em relação a sua capacidade de fazer que a maioria se sinta como um mera maioria e não como um ethnos inteiro e incontestável."

O resultado são atos violentos, como os ataques de 11 de setembro, organizados em redes nas quais a hierarquia é, de certo modo, invisível, algo que o autor chama de movimento celular. Ao contrário das estruturas vertebradas às quais estávamos acostumados, e que foi a utilizada pelos Estados Unidos para o contra ataque ao Talibã, Bin Laden e Afeganistão.

Este livro dá sequência ao estudo que Appadurai iniciou, em 1989, sobre a globalização e que culminou com o livro Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization, lançado sete anos depois. Contudo, faltava abordar os aspectos mais sombrios dessa expansão econômica, política e cultural. Seus primeiros rascunhos para a nova pesquisa começaram em 1998 e foram até 2004, e compreendem dois tipos principais de violência. A primeira trata da década de 90, após a queda do muro de Berlim. O autor questiona por que formas extremas de violência política e limpeza étnica coincidiram com a abertura de mercado e o crescimento de direitos humanos.

"Somos forçados, portanto, a responder a pergunta sobre por que os anos 1990, período que agora chamamos de "alta globalização", são também o período de uma violência em grande escala num amplo leque de sociedades e regimes políticos. Com referência à alta globalização (com mais do que um aceno na direção do alto modernismo), assinalo um conjunto de possibilidades e projetos utópicos que varreram muitos países, estados e esferas públicas depois do fim da Guerra Fria."

Havia uma dupla pressão: a abertura dos mercados ao capital estrangeiro e o gerenciamento das minorias que reivindicavam seus direitos. Para Appadurai, outro estopim para conflitos ligados à soberania nacional, que foram responsáveis pelo aumento do racismo em diversos países, como Suécia, Indonésia, Romênia, Ruanda e Índia

Já o segundo modo de violência vem sob o título "guerra ao terror", que teve início com os ataques ao World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, na Virginia, em 2001. 

"Vivemos agora num mundo articulado de modo diferente pelos estados e pela mídia, em diferentes contextos nacionais e regionais, em que o medo frequentemente parece ser a fonte e o fundamento para campanhas intensas de violência grupal, que vão de distúrbios civis até extensos pogroms."

Mas Appadurai nos dá esperança com o que ele chama de globalização de raiz, que se utiliza desta rede, portanto celular, para conectar ativistas de direitos humanos, de igualdade de gêneros, voltados ao auxílio emergencial, dentre tantos outros que, organizados transnacionalmente e de forma não estatal, vêm mudando alguns cenários pelo mundo. É algo ainda utópico, mas que, em suas palavras, "pode contrabalançar a tendência mundial ao etnocídio e ao ideocídio." Na verdade, o que precisa ser feito é usar os recursos disponíveis, e que já são utilizados, para o bem, para a verdade e para a justiça social.


Trechos

"O que acontece, portanto, com as minorias que parecem atrair novas formas e escalas de violência em muitas partes diferentes do mundo? O primeiro passo para uma resposta é que tanto minorias quanto maiorias são produtos de um mundo visivelmente moderno de estatísticas, censos, mapas populacionais e outros instrumentos de estado criados principalmente a partir do século XVII. Minorias e maiorias emergem explicitamente do processo de desenvolver ideias de números, representação e direito de voto em lugares afetados pelas revoluções democráticas do século XVIII, incluindo espaços-satélites no mundo colonial."

"Voltando à sempre frágil ideia de um mundo de economias nacionais, podemos caracterizar a atual era de globalização - impulsionada pelos tríplices motores do capital especulativo, dos novos instrumentos financeiros e das tecnologias de informação altamente velozes - como aquela que cria novas tensões entre a necessidade desenfreada que tem o capital global de vagar sem licença ou limite e a fantasia ainda reinante de que o estado-nação garante um espaço econômico soberano."

sábado, 8 de maio de 2021

necropolítica



"A soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é 'descartável' e quem não é."

Ailton Krenak, em "Ideias para adiar o fim do mundo'', comenta que a humanidade é dividida em duas, uma "bacana" e outra mais bruta, rústica. A mesma observação é feita pela filósofa Sueli Carneiro, ao falar sobre a escravidão no Brasil e as consequências da falta de medidas sociais voltadas aos recém-libertados após a abolição. Em textos publicados no Correio Braziliense na última década, Carneiro também enfatiza a ideia de que alguns humanos são mais humanos que outros, o que, evidentemente, traz a desigualdade social de direitos, intensificada, principalmente, pelo racismo científico do século XIX, que criou uma suposta hierarquia entre as raças. O que, de certo modo, vai ao encontro do conceito de necropolítica, estipulado pelo filósofo e pensador político Achille Mbembe. Tendo como base a obra de Michel Foucault que trata sobre biopoder, Mbembe estabelece a teoria que a humanidade deliberadamente decide, com base no poder e na soberania, quem deve ou não morrer. Quem presta e quem é descartável. Esse controle implica na divisão humana em subgrupos, raças e, obviamente, no racismo. Exemplos não faltam em seu ensaio "Necropolítica", como o terror praticado pelo nazismo, a faixa de Gaza e as condições precárias nas quais os seus habitantes foram colocados.

E o mesmo aconteceu com os escravos brasileiros ao serem libertados. Eles foram marginalizados. Vale recordar que eles chegaram aqui com uma tripla perda: lar, direitos sobre o corpo e estatuto político, como apontou Mbembe. Há uma história e uma dívida a ser paga. Por muito tempo, coube ao branco ocidental criar teorias para mostrar sua versão da história, desmerecendo todas suas contribuições para nossa cultura.

"Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço. Como propriedade, tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em 'estado de injúria', em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos. O curso violento da vida de escravo se manifesta pela disposição de seu capataz em se comportar de forma cruel e descontrolada ou no espetáculo de sofrimentos impostos ao corpo de escravo. Violência, aqui, torna-se um componente de etiqueta, como dar chicotadas ou tirar a vida do escravo: um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir o terror."

Os efeitos da escravidão e do colonialismo ainda estão presentes em diversos países. O principal deles é o racismo, considerado um elemento de controle nas relações de poder. É a política da morte. O Estado, que tinha por obrigação proteger seus cidadãos, é o primeiro a ditar quem deve morrer e quem deve viver. Mais que isso, quem deve ficar permanentemente entre a vida e a morte. A necropolítica trata dos "mortos-vivos", situação na qual estão milhares de pessoas, como os refugiados que vagam no mar em busca de abrigo em países no qual serão hostilizados. "Sob o necropoder, as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem."


Trechos

"Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das polí- ticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los."

"Este novo momento é o da mobilidade global. Uma de suas principais características é que as operações militares e o exercício do direito de matar já não constituem o único monopólio dos Estados, e o “exército regular” já não é o único meio de executar essas funções. A afirmação de uma autoridade suprema em um determinado espaço político não se dá facilmente. Em vez disso, emerge um mosaico de direitos de governar incompletos e sobrepostos, disfarçados e emaranhados, nos quais sobejam diferentes instâncias jurídicas de facto geograficamente entrelaçadas, e nas quais abundam fidelidades plurais, suseranias assimétricas e enclaves. Nessa organização heterônima de direitos territoriais e reivindicações, faz pouco sentido insistir na distinção entre os campos políticos “interno” e “externo”, separados por limites claramente demarcados."

"Se observarmos a partir da perspectiva da escravidão ou da ocupação colonial, morte e liberdade estão irrevogavelmente entrelaçadas. Como já vimos, o terror é uma característica que define tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais tardo-modernos. Ambos os regimes são também instâncias e experiências específicas de ausência de liberdade. Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura."

sábado, 1 de maio de 2021

ideias para adiar o fim do mundo



“Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”



Ailton Krenak, em "Ideias para adiar o fim do mundo'', comenta que a humanidade é dividida em duas, uma "bacana" e outra mais bruta, rústica. Especialmente quando ele diz que os seres humanos não são os únicos com perspectivas sobre a existência. Para ele, quando tiramos o sentido das montanhas, florestas, rios, colocando-os como atributos à disposição do ser humano, estamos abrindo caminho para o extrativismo e a atividade predominantemente industrial. E quando ele fala "ser humano" se refere ao branco europeu, que se sentiu no direito de colonizar o resto do mundo sob a premissa de que eles eram a humanidade esclarecida e precisavam "ajudar" os mais obscuros, os selvagens. E é esse pensamento baseado no antropocentrismo que vem provocando sofrimentos tantos aos considerados "menos humanos" quanto aos animais e a própria natureza.

“A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível.”

Isso vale para os indígenas, inclusive, que são tidos como selvagens. Suas crenças e costumes são minimizados e considerados apenas folclore e lenda.

"No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar a mesma história para a gente?"

Esta é a batalha diária de Krenak, uma das principais lideranças indígenas. Ainda hoje os índios precisam lidar com a destruição e ocupação de seus espaços. Vale ressaltar: as pouquíssimas terras que ainda possuem.

"Ideais para adiar o fim do mundo" é resultado de duas palestras que deu, com certa relutância, em Portugal, os grandes colonizadores dos povos que habitavam o Brasil antes da "descoberta". O título, porém, veio antes. Como o próprio autor diz, foi criado de improviso para uma palestra na Universidade de Brasília sobre desenvolvimento sustentável.

"Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso - enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza."

O trecho acima resume bem o contexto do pensamento de Krenak e sua principal crítica. Há tempos o ser humano deixou de pensar a natureza como algo da qual faz parte. Ela existe apenas para nos servir, para saciar nosso consumo desenfreado. Inclusive no turismo e entretenimento. "Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando." Aqui eu trago a voz dele para falar sobre os animais e o desrespeito que rege nossa relação com eles: ora mascotes, ora alimentos, ora vestuários, ora cobaias, ora diversão e sempre, sempre à mercê de nossas escolhas. Esquecemos que eles são seres sencientes e que padecem a cada novo prato que saboreamos, por exemplo.

Os índios veem a natureza como algo sagrado, como sua própria família. Algumas etnias nem tem esta palavra em seu vocabulário, tamanha a conexão. Isto não quer dizer que deixem de usar os animais como alimento, vestuário, como ritual. Mas essa é outra discussão. Porém uma coisa é certa: não há exploração, não há animais confinados em jaulas apertadas sendo transportados sob sol escaldante ou chuva. Não há animais presos em zoológicos para serem apreciados por crianças e adultos. Há o respeito e o instinto de preservação. Coisa distante da dita civilização.

"O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto o prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim."