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sexta-feira, 4 de junho de 2021

o medo ao pequeno número


"Maiorias numéricas podem se tornar predatórias e etnocidas em relação aos pequenos números precisamente quando algumas minorias (e seus pequenos números) lembram àquelas maiorias a pequena brecha que existe entre sua condição de maiorias e o horizonte de um todo nacional imaculado, um ethnos nacional puro e limpo. Essa sensação de incompletude pode levar maiorias a paroxismos de violência contra minorias."


Em "O medo ao pequeno número", o antropólogo indiano Arjun Appadurai se debruça sobre os motivos que levam à repressão crescente às minorias, sendo que, para ele, o principal é o risco de que interesses especiais comprometam os interesses gerais. Afinal, é muito mais fácil dialogar, negociar e fazer planos quando todos estão "alinhados''. Não é à toa que o mundo corporativo prega a resiliência, palavra da moda que, no fundo, pede a adaptação à cultura organizacional e ao perfil de empregados que as empresas buscam. O mesmo vale para as nações. As minorias mostram a incompletude da pureza nacional, a incerteza social e, consequentemente, levam ao ódio. Tanto de um lado, quanto do outro.

O autor trabalha o conceito de identidades predatórias, ou seja, que não aceitam a existência de outro grupo. Elas partem do discurso de que podem virar minoria se o grupo, hoje menor, não for eliminado. Um exemplo é o projeto nazista.

"A própria ideia de ser uma maioria representa uma frustração, uma vez que implica algum tipo de difusão étnica no povo nacional. As minorias, como lembra esse defeito pequeno porém frustrante, desencadeiam a ânsia de purificar. Esse é um elemento básico de uma resposta para a pergunta: por que os pequenos números conseguem incitar a fúria? Os pequenos números representam um obstáculo muito pequeno entre a maioria e a totalidade ou a total pureza. Num certo sentido, quanto menor o número e mais fraca a minoria, mais profunda é a fúria em relação a sua capacidade de fazer que a maioria se sinta como um mera maioria e não como um ethnos inteiro e incontestável."

O resultado são atos violentos, como os ataques de 11 de setembro, organizados em redes nas quais a hierarquia é, de certo modo, invisível, algo que o autor chama de movimento celular. Ao contrário das estruturas vertebradas às quais estávamos acostumados, e que foi a utilizada pelos Estados Unidos para o contra ataque ao Talibã, Bin Laden e Afeganistão.

Este livro dá sequência ao estudo que Appadurai iniciou, em 1989, sobre a globalização e que culminou com o livro Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization, lançado sete anos depois. Contudo, faltava abordar os aspectos mais sombrios dessa expansão econômica, política e cultural. Seus primeiros rascunhos para a nova pesquisa começaram em 1998 e foram até 2004, e compreendem dois tipos principais de violência. A primeira trata da década de 90, após a queda do muro de Berlim. O autor questiona por que formas extremas de violência política e limpeza étnica coincidiram com a abertura de mercado e o crescimento de direitos humanos.

"Somos forçados, portanto, a responder a pergunta sobre por que os anos 1990, período que agora chamamos de "alta globalização", são também o período de uma violência em grande escala num amplo leque de sociedades e regimes políticos. Com referência à alta globalização (com mais do que um aceno na direção do alto modernismo), assinalo um conjunto de possibilidades e projetos utópicos que varreram muitos países, estados e esferas públicas depois do fim da Guerra Fria."

Havia uma dupla pressão: a abertura dos mercados ao capital estrangeiro e o gerenciamento das minorias que reivindicavam seus direitos. Para Appadurai, outro estopim para conflitos ligados à soberania nacional, que foram responsáveis pelo aumento do racismo em diversos países, como Suécia, Indonésia, Romênia, Ruanda e Índia

Já o segundo modo de violência vem sob o título "guerra ao terror", que teve início com os ataques ao World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, na Virginia, em 2001. 

"Vivemos agora num mundo articulado de modo diferente pelos estados e pela mídia, em diferentes contextos nacionais e regionais, em que o medo frequentemente parece ser a fonte e o fundamento para campanhas intensas de violência grupal, que vão de distúrbios civis até extensos pogroms."

Mas Appadurai nos dá esperança com o que ele chama de globalização de raiz, que se utiliza desta rede, portanto celular, para conectar ativistas de direitos humanos, de igualdade de gêneros, voltados ao auxílio emergencial, dentre tantos outros que, organizados transnacionalmente e de forma não estatal, vêm mudando alguns cenários pelo mundo. É algo ainda utópico, mas que, em suas palavras, "pode contrabalançar a tendência mundial ao etnocídio e ao ideocídio." Na verdade, o que precisa ser feito é usar os recursos disponíveis, e que já são utilizados, para o bem, para a verdade e para a justiça social.


Trechos

"O que acontece, portanto, com as minorias que parecem atrair novas formas e escalas de violência em muitas partes diferentes do mundo? O primeiro passo para uma resposta é que tanto minorias quanto maiorias são produtos de um mundo visivelmente moderno de estatísticas, censos, mapas populacionais e outros instrumentos de estado criados principalmente a partir do século XVII. Minorias e maiorias emergem explicitamente do processo de desenvolver ideias de números, representação e direito de voto em lugares afetados pelas revoluções democráticas do século XVIII, incluindo espaços-satélites no mundo colonial."

"Voltando à sempre frágil ideia de um mundo de economias nacionais, podemos caracterizar a atual era de globalização - impulsionada pelos tríplices motores do capital especulativo, dos novos instrumentos financeiros e das tecnologias de informação altamente velozes - como aquela que cria novas tensões entre a necessidade desenfreada que tem o capital global de vagar sem licença ou limite e a fantasia ainda reinante de que o estado-nação garante um espaço econômico soberano."

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