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domingo, 10 de agosto de 2025

o frio, o patinete, a livraria


Livros descobertos em uma tarde fria na Avenida Paulista: dicas de leitura com Sigrid Nunes, Richard Powers, Han Kang e outros

Está bem frio em São Paulo, para meu deleite, já que sou adepta às temperaturas mais baixas. Coisa rara, pois o inverno está cada vez mais escasso deste lado do Equador.

Quando deu cinco da tarde, resolvi dar uma caminhada. Eu estava inquieta porque parecia que não estava aproveitando o dia que tanto aprecio. Caminhei até uma livraria na Avenida Paulista, curtindo o ar melancólico da cidade, especialmente quando ela se preparava para fechar.

Quando digo fechar, quero dizer que as pessoas já estavam se recolhendo, ambulantes desmontando suas bancas, muitas lojas baixando as portas e todos encapuzados.

Chamou minha atenção a quantidade de patinetes elétricos disponíveis para os transeuntes. Lamentei não estar com meu celular para alugar um e seguir pela ciclovia, sentindo o vento no rosto.

Cheguei à livraria, onde sempre fico bem. É um ambiente aconchegante, instigante e cheio de possibilidades. Acho que nunca vou ler todos os livros que tenho e, ainda assim, estou o tempo todo em busca de novidades literárias.

Hoje me dei muito bem. Logo na primeira ilha de livros, me deparei com vários que, não fossem o preço, o espaço e a decisão de evitar a compra de livros físicos, eu teria levado todos. Estava ali Mitz, de Sigrid Nunes, escritora norte-americana que escreveu O amigo, romance que li recentemente e que trata do luto vivido por uma professora e por um cachorro. O livro que estava na minha frente romanceia a história de um sagui que viveu com Virginia Woolf e seu marido. Ao seu lado estava O que você está enfrentando, da mesma autora, que inspirou um filme de Pedro Almodóvar. Outro animal na capa, desta vez, um gato que, pela contracapa, estava em um abrigo. Preciso muito ler esses livros.

Um pouco mais adiante, me deparei com A trama das árvores, do romancista norte-americano Richard Powers. Já gostei da premissa, que traz vários personagens que se interligam por conta das árvores. Lembrei muito de quando tivemos que tomar a decisão sobre uma árvore plantada na calçada da casa dos meus pais. Ela cresceu tanto que começou a invadir a casa do vizinho e precisou ser transferida. Num ímpeto de arrependimento, minha irmã e eu fomos atrás dela, após descobrirmos o local para onde poderia ter sido levada. Tem um texto da Renata aqui no blog sobre isso. Enfim, entrou para minha lista de romances sobre natureza e meio ambiente.

Estamos, neste momento, tendo uma avalanche de literatura sul-coreana contemporânea, muitos dentro do que se chama leitura de cura. Já li vários e entendo que beiram a autoajuda, mas são muito melhores. Porém, se leu um, leu todos. Mas sabe quando queremos mais? Pois bem, eles nos conquistam pela capa, e não tem problema nenhum. Já anotei A loja de cartas de Seul, de Baek Seung-yeon, que estava lá me chamando. Mas não só de literatura de cura vivem os sul-coreanos. Há romances intensos, como os de Han Kang.

Nessa mesma ilha, encontrei Sem despedida, que fala de um pássaro que fica só após sua tutora ser hospitalizada. Confesso que estou curiosa para ver essa relação, muito porque lugar de pássaro não é dentro de casa, em uma gaiola. A capa mostra o aprisionamento. Da autora, li A vegetariana, que fala do devir-vegetal. Espetacular.

Só para constar, gostei muito da capa de O bom mal, coletânea de contos de Samanta Schweblin, que traz um coelho a contemplar o céu, como que pedindo ajuda. Não deixei na lista porque folheei e me pareceu prosa poética, e tenho certa resistência a esse tipo de narrativa. Posso estar enganada, todavia.

Deparei-me ainda com Orbital, romance de Samantha Harvey que une astronautas dos Estados Unidos, Rússia, Itália, Japão e Reino Unido em uma missão no espaço. A cada órbita, o livro promete uma reflexão. Gostei.

Outro que também me pareceu ter ligação com meu trabalho foi Os urubus não esquecem, do professor da USP Pedro Cesarino. Trata de uma mãe indígena que busca pelo filho desaparecido. Curiosamente, a capa traz uma canoa, que esteve presente em um sonho que tive esta noite. Nada acontece por acaso.

E, para finalizar, coloquei na lista de desejos um suspense: A luz entre as frestas – Inspetor Gamache, Livro 9, de Louise Penny. Passei boa parte da minha adolescência lendo as peripécias de Poirot, de Agatha Christie. Ainda não conhecia o detetive Gamache. Minha dúvida é se posso começar pelo livro 9, que anotei justamente porque se passa no frio, no Canadá, e também na época de Natal. Sim, já estou pensando no que vou ler em novembro e dezembro.

Assim terminei meu dia, cheia de livros, animais e vontade de andar de patinete. E você, qual livro descobriu recentemente em uma livraria? 



sábado, 12 de julho de 2025

o passeador de livros


"A palavra escrita nunca vai acabar, sra. Schäfer. Existem coisas que simplesmente não dá para expressar de outro jeito."

Carl Kollhoff tem 72 anos e seu trabalho é bem peculiar. Ele trabalha em uma livraria e entrega livros, pessoalmente, para um grupo seleto de clientes. Mais do que uma simples compra, as pessoas recebem obras que conversam diretamente com o momento de vida em que se encontram. É como se o livreiro lesse o coração e a mente dos seus clientes. Isso aparece no cuidado com a seleção do título, na forma como embala os volumes, como se fossem presentes, e na pontualidade com que chega à casa de cada um. Logo de cara fica claro que o que esperam, na verdade, é a sua companhia. Ele se torna o escape de que precisam para seguir com os dias.

Cada pessoa recebe, sem saber, um apelido literário, um personagem que traduz a sua personalidade: Mr. Darcy, de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Sra. Píppi Meialonga, de Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren; Effi Briest, de Effi Briest, de Theodor Fontane; Hércules, da mitologia grega. Assim Carl segue sua rotina há décadas, até que cruza com Schascha, uma garota de nove anos que bagunça sua ordem, traz aventuras e, acima de tudo, provoca uma virada em sua vida. Ao mesmo tempo, a atual dona da livraria, filha do fundador e grande amigo de Carl, planeja mudanças que o excluem definitivamente. Muito disso nasce do ressentimento por ele ter o dom de escolher exatamente o livro que cada pessoa precisa, algo que ela não consegue alcançar.

O enredo traz personagens solitários, envergonhados de suas limitações, vítimas de violência doméstica ou em busca de um novo sentido após a aposentadoria. Todos lidam com emoções que vão sendo, pouco a pouco, expostas e cuidadas por meio da literatura. Há ainda um gato com características de cachorro que acompanha as andanças do nosso protagonista. 

Vale destacar também que cada capítulo faz referência a uma obra literária: Gente independente, de Halldór Laxness; O estrangeiro, de Albert Camus; O vermelho e o negro, de Stendhal; Grandes esperanças, de Charles Dickens; As palavras, de Jean-Paul Sartre; Rastros (Spuren), de Ernst Bloch; e Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. Pode ser o começo de uma boa lista de leitura ;-)

"O passeador de livros", de Carsten Henn, foi adaptado para o cinema em 2022, no filme alemão Der Buchspazierer, dirigido por Rolf Roring. Ainda assim, recomendo a leitura, que é leve e faz pensar no quanto os livros podem nos compreender como ninguém mais.

Trechos

"Tinha uma definição bastante clara do que, segundo ela, caracterizava um bom livro. Em primeiro lugar, era preciso mantê-la entretida de tal modo a deixá-la presa na cama, lendo até as pálpebras pesarem. Segundo, deveria levá-la às lágrimas em pelo menos três trechos; melhor ainda se fossem quatro. Terceiro, um bom livro jamais teria menos do que trezentas páginas e nem mais do que 380. Quarto: a capa em hipótese alguma poderia ser verde. Não se podia confiar em livros de capas verdes."

"Carl sempre ficava triste quando a mochila ficava vazia, sinal de que estava na hora de voltar para casa. Não que não gostasse de onde morava, mas Canino nunca o seguia até lá, e não havia ninguém à sua espera, ninguém que lhe desse uma cutucada com o ombro para pedir um carinho."

"Enquanto algumas pessoas tinham animais puramente domésticos, ele tinha uma companhia para passear. — Oi, Canino — disse ele, e sorriu. Carl dera esse nome a ele porque o gato se comportava como um cachorro: ia atrás dele, farejava tudo e marcava o território. Canino não miava, mas soltava uma espécie de rosnado."

"A diferença entre um romance com final feliz e um sem final feliz é apenas o ponto em que se para de contar a história."

"Foi bom ir embora. Foi fácil. Quando não pensamos nas consequências, nas brigas que virão, nas feridas que carregaremos, ir embora é muito fácil. Basta dar um passo após outro."

sábado, 25 de janeiro de 2025

ainda estou aqui


"Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre, e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono."

Li este livro por causa do barulho em torno do lançamento do filme, dirigido por Fernando Meirelles, que rendeu indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz para Fernanda Torres. Aliás, muito merecidas.

Do autor, Marcelo Rubens Paiva, eu já havia lido, há muito tempo, Feliz Ano Velho. As estruturas são parecidas, inclusive pelo estilo autobiográfico. Lá, acompanhamos o acidente que o deixou tetraplégico. Aqui, a história parte de dois eixos centrais: o desaparecimento de seu pai durante a ditadura militar brasileira e os anos em que conviveu com a mãe, Eunice Paiva, já diagnosticada com Alzheimer.

O romance começa com a memória de uma infância privilegiada. Marcelo estudou nas melhores escolas, cresceu cercado por livros, música, professores, intelectuais, políticos. Os pais viajavam com frequência ao exterior, moravam em bairros nobres tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, tinham empregada doméstica e levavam uma vida confortável, típica da classe média alta dos anos 1970.

Até que veio a ditadura.

Rubens Paiva, seu pai, era deputado cassado e passou a atuar no apoio a exilados políticos. Foi preso, torturado e desapareceu. Sua morte só seria confirmada oficialmente décadas depois. O livro traz isso de forma dolorosa: como aceitar a morte de alguém cujo corpo nunca foi encontrado? Como conviver com a ausência e a dúvida, mesmo diante de todas as evidências?

A mãe de Marcelo, Eunice, também foi presa. Uma das filhas, ainda criança, estava com ela. Depois do desaparecimento do marido, ela se viu sem acesso aos recursos financeiros da família, já que tudo estava no nome de Rubens. Foi, então, obrigada a reconstruir a vida praticamente do zero. Deixou o Rio de Janeiro com os cinco filhos e retornou a São Paulo. Decidiu estudar, formou-se em Direito e tornou-se uma das maiores defensoras da causa indígena no país. Tudo isso enquanto tentava descobrir o que realmente havia acontecido com seu companheiro.

Duas passagens que me marcaram: quando a morte de Rubens Paiva, 25 anos depois, é oficialmente reconhecida e mãe e filho vão juntos ao centro de São Paulo buscar a certidão de óbito. Doze anos depois, em 2008, voltam ao centro velho de São Paulo para que Marcelo passasse a ser o responsável pela mãe, já em estágio avançado da doença. 

"30 de janeiro de 2008. Saímos da estação Liberdade. Fazia sol, mas me lembro do cheiro de que ia chover. Talvez todo paulistano detecte com precisão o cheiro da chuva a caminho. Sente no ar que o mundo pode desabar e tudo vai mudar. Sabe que, se chove, segue-se o caos. E que, por mais que tentemos, a natureza ainda é quem comanda a rotina do maior núcleo urbano da América do Sul."

Mais adiante, entramos na fase da doença de Eunice. Aos poucos, ela começa a esquecer rostos, lugares, palavras. E o título do livro passa a ter ainda mais força: Ainda estou aqui fala da presença insistente da memória, mesmo na ausência de clareza. Há pequenos gestos que revelam isso, como o momento em que ela massageia as mãos de Marcelo para evitar a atrofia, algo que fazia desde o acidente dele. Mesmo confusa, ela ainda estava ali. Lendo essas palavras, não pude deixar de fazer analogias com o Billy, meu cachorro, também diagnosticado com essa doença em sua forma canina. Olhos distantes, já não queria mais os mesmos brinquedos, já não respondia às provocações. Porém, lembro dele me procurando e reagindo diante de um estímulo olfativo, por exemplo.

O livro é tocante. O filme é lindo, muito bem dirigido e atuado. Uma história que merece ser lida e vista. Ambos, super indicados. Porque não falam só de um drama pessoal, mas de uma história coletiva, marcada pela violência do Estado. Mais que isso, mostram que algumas memórias nunca vão se apagar.

"É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego." - Trecho de uma carta escrita por Rubens Paiva aos filhas, quando ainda era deputado



sábado, 18 de janeiro de 2025

chocolate quente às quintas-feiras


"No momento em que se concretiza, o sonho deixa de ser sonho e se torna realidade. Adoro sonhar. Por isso, preciso partir para o próximo sonho!"

Mais um livro na linha de Antes que o café esfrie, estilo literário que vem sendo designado como literatura de cura. Simplificando, é aquela leitura que deixa um quentinho no coração. A narrativa é simples, sempre trazendo dilemas, culpas ou medos.

Em Chocolate quente às quintas-feiras, da autora japonesa Michiko Aoyama, temos doze contos curtos que se entrelaçam por meio dos personagens, que ora são protagonistas, ora coadjuvantes. Entre eles está o da mãe executiva, que delegou todos os cuidados com o filho ao marido e não sabe exatamente quem é a professora da criança nem quais são as atividades que ele realiza, detalhes geralmente atribuídos às mães. É interessante notar como ninguém critica o pai por não saber dessas coisas, enquanto a mãe sempre carrega julgamentos e muita, muita culpa. A situação se agrava quando o marido, antes totalmente dedicado ao lar, decide, literalmente, vender sua arte. Para isso, precisará viajar, deixando a esposa sozinha com o trabalho, as obrigações domésticas e os cuidados com o filho. Ela se vê completamente perdida, especialmente ao precisar fazer uma omelete. E eis que acompanhamos, justamente da imperfeição, surgir a poesia sob o olhar do garoto.

Na sequência, conhecemos a professora mencionada anteriormente, que enfrenta dúvidas sobre permanecer ou não na escola, especialmente devido a eventos que a desafiaram e às broncas recebidas de uma profissional mais velha. É justamente essa professora que protagonizará o próximo conto, durante o encontro com uma amiga que já foi próxima, mas que o tempo acabou afastando. E assim, sucessivamente, vamos conhecendo os personagens até chegarmos à Austrália. As histórias transitam entre Tóquio e Sydney.

O título se refere ao cenário central: o Café Marble, pequeno e aconchegante estabelecimento escondido em Tóquio. É lá que, todas as quintas-feiras, uma jovem entra, senta-se sempre no mesmo lugar e pede sempre a mesma coisa: chocolate quente. E é por ela que o atendente do estabelecimento se apaixona. Mal sabe o rapaz que ele é justamente o motivo que a leva a retornar semanalmente e pedir sempre a mesma bebida.

Não é nada muito profundo, mas cumpre o propósito de entreter e deixar certa inquietação sobre nossas próprias questões, ressaltando como pequenos encontros podem ser o ponto de partida para grandes reflexões e mudanças. Li durante uma semana de férias, entre uma ida e outra à praia. E foi perfeito.

"Basta estar em um lugar de que a gente gosta para recuperar o ânimo. Alguém me ensinou isso."

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

o quebra-nozes, de alexandre dumas


Eu já tinha assistido ao espetáculo de balé com a companhia Cisne Negro, mas nunca havia lido a versão adaptada por Alexandre Dumas. 

Essa versão de O quebra-nozes, escrita em 1844, é uma adaptação da obra de E.T.A. Hoffmann e serviu de base para o famoso balé de Tchaikovsky. A narrativa começa com um homem que chega a uma festa de Natal e se oferece para contar uma história às crianças. A partir daí, somos levados ao universo de dois irmãos: Marie (ou Clara, na adaptação do balé) e Fritz, que esperam ansiosamente pelos presentes de Natal. Eles são ricos, criados com conforto e cercados de brinquedos. Mas o momento mais aguardado é sempre a chegada do padrinho Drosselmeyer, inventor excêntrico que traz presentes únicos e quase mágicos.

Os brinquedos, porém, não são acessíveis. Ficam guardados em armários altos, protegidos por vidro, quase como obras de arte, e não objetos feitos para brincar.

É Marie quem rompe essa barreira. Literalmente. Ao quebrar o vidro para alcançar o Quebra-Nozes, ela atravessa não só o obstáculo físico que a separava dos presentes, mas também o limite entre o mundo real e o imaginário.

O que torna esse gesto ainda mais simbólico é o afeto imediato que ela desenvolve pelo boneco. O Quebra-Nozes não é o mais bonito, nem o mais novo. Está torto, tem dentes grandes e depois acaba quebrado. Ainda assim, é ele que Marie escolhe. Ela o protege, cuida, se emociona. Chega a desalojar uma boneca de sua cama para que o boneco possa repousar. Seu carinho vem de um vínculo mais profundo.

Na mesma noite em que o vidro do armário se rompe, começa a transformação. Os brinquedos ganham vida, o Quebra-Nozes se ergue como líder de um exército e enfrenta uma batalha contra o temido Rei dos Camundongos e suas tropas. Marie participa ativamente da defesa, chegando a jogar seu sapatinho para salvá-lo. No dia seguinte, ela chega a adoecer.

É então que a história se desdobra em outras camadas. Dentro da narrativa que o misterioso contador compartilha com as crianças na festa, Drosselmeyer surge como narrador de outra história: a da princesa Pirlipat, amaldiçoada pela Rainha dos Camundongos e transformada em uma criatura grotesca. Para curá-la, era preciso encontrar uma noz especial e alguém capaz de quebrá-la com os dentes. Quem cumpre essa missão é o próprio sobrinho de Drosselmeyer. Ao fazê-lo, ele mesmo acaba enfeitiçado e se transforma no Quebra-Nozes.

A guerra contra o Rei dos Camundongos, portanto, é consequência direta dessa antiga maldição.

O que se segue é uma viagem pelo Reino dos Doces, pela Terra da Neve e por outros recantos encantados que só existem no mundo dos sonhos. E o padrinho surge como o elo entre esses mundos.

Leitura rápida, cheia de simbologias, que dá vontade de revisitar o balé, a música e o próprio olhar de encantamento, tão natural nas crianças e tão facilmente esquecido por nós, adultos.

domingo, 29 de dezembro de 2024

último natal em paris


"E os animais, Alice? Você vê os cavalos e os cachorros? Eu odeio pensar que estejam sofrendo, mas ouço relatos dos mais terríveis sobre cavalos se afogando na lama grossa. É verdade? Os campos estão muito vazios aqui. É quase possível esquecer quantas belas criaturas corriam livremente por esta terra. Todos se foram, exceto os que eram velhos e mancos demais para ser úteis. Eu me pergunto o que aconteceu com os amados cavalos de Will, Hamlet e Shylock. Nem gosto de pensar."

Lá se foi o tempo em que a troca de cartas era a principal forma de manter contato com amigos ou familiares distantes. Hoje temos videochamadas, áudios, mensagens instantâneas. Até mesmo o e-mail, que já foi tão usado, parece obsoleto. Com isso, perdemos um pouco dos detalhes e da emoção que as antigas missivas carregavam.

É justamente isso que o livro Último Natal em Paris, de Hazel Gaynor e Heather Webb, recupera. Confesso que, nas primeiras páginas, ainda não tinha me convencido, mas logo meu interesse despertou. Comprei sem ler muito sobre ele; apenas vi que falava de Natal e da Primeira Guerra Mundial.

O que temos aqui é uma história quase inteiramente contada por meio de cartas — trocas entre amigos, irmãos, pais e, principalmente, entre Thomas Harding e Evie Elliott, que protagonizam a narrativa.

O ponto de partida é a viagem de Thomas, já idoso, saindo da Inglaterra em direção a Paris. É a cidade que, por muitos anos, simbolizou o sonho adiado dele com Evie. Sempre diziam que, quando a guerra terminasse, iriam juntos para lá. Agora, com a saúde frágil e acompanhado por sua cuidadora, ele leva consigo um pacote de cartas que marcaram os anos em que esteve a serviço militar.

Essas cartas começam no dia em que ele parte com seu melhor amigo, Will, para a primeira missão, em 1914. A partir daí, inicia-se a troca de mensagens com Evie, irmã de Will. É por meio delas que acompanhamos o nascimento do afeto entre os dois, além de conhecermos um pouco da vida nas trincheiras, das transformações sociais e dos impactos da guerra no cotidiano.

Mas não lemos apenas as cartas entre Thomas e Evie. Há também bilhetes, telegramas e mensagens trocadas entre outros personagens, o que enriquece o enredo e amplia a perspectiva da época.

Um ponto particularmente interessante é a presença dos animais ao longo da narrativa. Evie começa a desenhar pássaros e vai aperfeiçoando seus traços com o tempo. Os pássaros tornam-se símbolo de liberdade, em contraste com o confinamento da guerra. Já os animais usados para alimentação aparecem de forma triste e realista, como na falta que fazem na ceia de Natal. E os ratos, como sempre, como horripilantes. 

"As analogias com pássaros são bastante úteis, sabe? A carriça insufla seu pequeno peito para ter coragem e força, a cotovia dá sorte, e que tal o pavão, com seu imponente peito turquesa e sua bela cauda de penas coloridas? Você é como um pássaro. Uma águia, destinada a voar alto, mas sem nunca perder a visão aguçada. Você não é uma mulher de gaiola, é? Um dia, você não poderá conter o fogo que tem dentro de si e sairá por aí, irrefreável. Sua coluna é o início perfeito."

"Em outras notícias, temos uma infestação de ratos. Eu os ouço correr por trás das paredes e pela chaminé. Estremeço ao ouvir o arranhar das horríveis patinhas deles. Mills colocou armadilhas, e posso dizer que não há nada mais desagradável do que o paf e o crac que elas fazem ao serem acionadas. É de revirar o estômago. Tanto assim que estou em busca de um bom caçador de ratos. Não gosto muito de gatos, mas deve ser preferível a esse som terrível."

Há ainda uma cena marcante envolvendo cavalos. Descobrimos como também foram convocados para o esforço de guerra e acompanhamos a angústia do irmão de Evie, preocupado com seus animais.

"Falando em casa, seus cavalos foram levados para algum lugar? Will se preocupa com Shylock e Hamlet. Vimos as cargas partir – centenas deles, ou milhares, na verdade. Fomos informados de que estão confiscando todos os cavalos e os enviando ao front. Seu irmão cometerá traição se levarem os cavalos dele. Você sabe como ele os ama. Se forem para a batalha… Bem, não vamos falar disso. Faça o que puder."

Último Natal em Paris é emocionante. Para quem gosta de histórias de amor em tempos de guerra, é uma ótima escolha, cheia de emoção, memórias e reflexões sobre o poder das cartas.

"Você conhece minha paixão por Shakespeare, é claro. Você sabia que ele usou imagens de pássaros em sua obra mais do que qualquer outro? O poema mais obscuro dele é o complemento ao texto de outro escritor e se chama (agora, pois incialmente foi publicado sem título) “A Fênix e a Tartaruga”. Fala de um par de pássaros, uma fênix e uma pomba (a pomba-tartaruga), cujo amor cria uma união tão perfeita que desafia o sentido concreto e a lógica terrena e supera qualquer obstáculo. Mostrarei para você quando eu voltar. Tenho uma cópia entre minhas coisas da escola."


domingo, 22 de dezembro de 2024

casamento em dezembro


"Sentiu uma dor bem lá no fundo. Por um momento, imaginou uma vida diferente. Uma vida equilibrada e variada. Em vez de voltar para casa morta de exaustão, sem nada a oferecer, voltar para casa para alguém que se importava com ela."

Casamento em dezembro, da britânica Sarah Morgan, reúne tudo o que se espera de um romance natalino: paisagens cobertas de neve, lareira acesa, família reunida em uma cabana e reconciliações.

Maggie tem duas filhas e vive para a família, em uma casa no interior da Inglaterra, cercada por campos verdes e paisagens tranquilas. Sua época favorita do ano é o Natal, com tudo o que ele representa. Ela decora a casa com cuidado, prepara inúmeros pratos e guarda com carinho os enfeites que as meninas fizeram quando ainda eram crianças.

Mas, desta vez, tudo será diferente.

Seu casamento está praticamente acabado, embora ela e o marido ainda não tenham contado a ninguém. E, para completar, Maggie recebe uma ligação inesperada da filha caçula, Rosie, dizendo que decidiu se casar na véspera de Natal. Com um noivo que a família nem conhece. A notícia vira o centro da apreensão. Para piorar, a cerimônia será do outro lado do oceano, no Colorado, Estados Unidos.

Rosie sempre foi a filha mais frágil, com problemas de saúde desde pequena. Isso fez com que Katie, a mais velha, crescesse com um senso enorme de responsabilidade e acabasse escolhendo a medicina como profissão. Ela também estará presente neste Natal atípico, embora chegue esgotada, emocionalmente distante e pouco disposta a comemorar qualquer coisa. Sua principal motivação, na verdade, é tentar convencer a irmã a desistir da ideia repentina de casamento.

A narrativa alterna os pontos de vista entre as três mulheres. Vemos Maggie tentando manter a tradição, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar; Katie lidando com um trauma recente e fechada para qualquer tipo de emoção; e Rosie, determinada a mostrar que sua decisão é legítima e que Dan é, sim, o amor da sua vida.

Como era de esperar, a história às vezes se apoia em clichês. Algumas falas soam ensaiadas e certas atitudes são um tanto exageradas.

Ainda assim, Casamento em dezembro tem seus momentos. Pode ser uma boa pedida para quem busca uma leitura leve, com clima natalino e final feliz.

"Algumas pessoas tinham grandes sonhos e objetivos, mas Maggie apreciava as coisas pequenas. Os primeiros brotos na macieira, o raspar suave do lápis no papel enquanto Katie fazia o dever de casa na mesa da cozinha, o cheiro de roupa recém-lavada, a alegria da primeira xícara de café do dia e o puro prazer de um livro que a transportava para outra vida e outro lugar."

sábado, 21 de dezembro de 2024

dia de folga


“Esse era o problema dos dias de folga. Eles eram tão raros, e você esperava tanto por eles, mas, quando chegavam, seu corpo estava tão acostumado a se mover constantemente que era quase impossível relaxar.”

Dia de folga, de John Boyne, autor de O Menino do Pijama Listrado, se passa na véspera de Natal. Hawke, jovem soldado inglês, ganha uma trégua no meio do caos da Primeira Guerra Mundial. Essa folga, porém, não o tranquiliza. Enquanto o corpo está em constante movimento para se defender e revidar os ataques, a mente também se mantém ocupada. Ou seja, não há tempo para pensar no que se deixou para trás e nas consequências de suas escolhas. É justamente nesse breve momento de silêncio e contemplação que tudo se torna ainda mais pesado.

Hawke abre o presente enviado pela mãe: um par de meias quentes, limpas, feitas de lã. Considera um pequeno milagre tê-las recebido sem que fossem confiscadas. Ao colocá-las, percebe que não são tão confortáveis quanto as antigas, aquelas que já moldavam seus pés sujos, feridos, cheios de calos.

A metáfora é inevitável. O que era para aquecer e proteger se torna lembrança do que ficou para trás. O amor da mãe. A infância. As histórias com a babá. A morte do pai. A irmã, agora noiva. O irmão mais novo, querendo parecer mais velho para se alistar. O Natal sem mesa posta.

É nesse rebuliço interno que ele se vê caminhando floresta adentro, esperando encontrar o inimigo, fugindo de si, sentindo-se um desertor.

“A floresta está logo ali, e Hawke decide caminhar até ela. Coloca o capacete, pega o rifle. Caso os alemães que mataram Westman ainda estejam por perto. A rotina de guerra se impõe, até mesmo na trégua.”

Como num ciclo vicioso, ele retorna, sem ainda entender por onde andou. E é ali, no meio da lama, das ordens e das bombas, que se sente aliviado.

Em poucas páginas, Boyne nos oferece um conto sobre o que a guerra faz com o tempo, com a memória e com o corpo. Dia de folga reforça o quanto até uma trégua pode machucar. Porque parar, mesmo que por instantes, é lembrar. E lembrar dói. Hawke não volta à trincheira por dever. Volta porque entende que, depois de todas as feridas, ali é o seu único local possível.

“Era véspera de Natal e não haveria folga para os ímpios. Ele pegou seu rifle mais uma vez e ajeitou o capacete na cabeça. Precisava chegar à escada número cinco. Não havia tempo a perder. Bombas explodiam no céu sobre sua cabeça, um dos maiores shows de fogos no planeta. Melhor estar aqui do que numa floresta sozinho, ele pensou, quando pôs sua bota no degrau e começou a subir, sem hesitar enquanto se jogava para cima, ficava de pé e começava a atacar. É uma bela visão, ele pensou, enquanto o campo se acendia à sua frente como se fosse a entrada para outro mundo. A gente não vê esse tipo de coisa em casa.” 

sábado, 2 de novembro de 2024

o amigo


“A inocência é algo que nós, humanos, atravessamos e deixamos para trás, incapazes de retornar a ela. Mas os animais vivem e morrem nesse estado, e testemunhar a inocência violada em razão da crueldade com um simples pato pode parecer o ato mais bárbaro do mundo.”

Por vários momentos, eu me incomodei com o desenrolar da história. Mas não porque considerei a leitura ruim ou cansativa. Muito pelo contrário. Justamente por ser tão verdadeira e tão próxima das dores que não conseguimos explicar. O incômodo vinha de outro lugar. Era o incômodo de quem está sendo atingida.

A protagonista é professora de escrita criativa, e seu melhor amigo acaba de se suicidar. Ele foi seu maior confidente, sua referência intelectual, o parceiro das conversas sobre literatura e sobre a vida. Foi também um amor antigo, conforme vamos descobrindo aos poucos.

A narrativa é toda dela. O que temos, portanto, é apenas seu ponto de vista sobre as circunstâncias que o levaram à morte e suas consequências, sobretudo para ela.

O amigo morto deixa um cachorro. Um dogue alemão enorme, Apolo. A viúva do suicida, conhecida como Esposa Três, diz que nunca quis o cachorro e que, agora, sozinha, não suportaria a convivência. Apolo havia sido deixado em um canil, onde passava os dias esperando na porta, recusando-se a comer, emitindo um lamento baixo e insistente. “Não se pode explicar a morte para um cachorro”, ela diz. Aos poucos, a narradora descobre o que o amigo falou sobre ela. Sozinha, sem filhos, com horários flexíveis e afeto por animais, parecia, aos olhos dele, a única pessoa capaz de cuidar de Apolo até o fim. Ela mora em um apartamento pequeno, alugado, em um prédio que não aceita animais. Mesmo assim, e sem nunca ter tido um cachorro antes, aceita. Porque entende que não há outra escolha possível. Chama a atenção o fato de que, ao longo de todo o livro, apenas o cachorro tem nome.

Temos, portanto, dois grandes amigos deixados um ao outro, como uma última forma de cuidado mútuo, mesmo depois da partida.

A partir daí, acompanhamos a evolução da convivência entre dois seres devastados pela perda. Apolo ocupa todos os espaços da casa. A dor do cachorro é visível. Está nos olhos, na falta de apetite, no não abanar do rabo. Está no lamento noturno, no estranhamento do toque, na ausência total de alegria. A ela, sobra pouco tempo para lamentações, já que seu esforço é para compreendê-lo. Não com a limitação da nossa linguagem, eu acrescento. É na literatura e na poesia que ela se apoia para conversar com o novo amigo, por quem vê sua afeição crescer a cada dia, a ponto de se dedicar inteiramente a ele, especialmente quando ele começa a apresentar sinais de fragilidade.

A construção do livro é feita por fragmentos, memórias, divagações e muitas referências literárias, em especial às que abordam animais. Sigrid Nunez costura autores e obras com leveza. Desonra, de J. M. Coetzee, é lembrado. A narradora chega a comparar o amigo com o personagem principal desse romance sul-africano. Assim como David Lurie, ele também teve, em vários momentos, uma vida promíscua, envolvendo-se com alunas. Ao mesmo tempo, compartilhava a paixão pela literatura e pelos grandes clássicos.

Ela também cita A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e My Dog Tulip, de J. R. Ackerley, relato autobiográfico sobre o amor obsessivo e devotado entre um homem e sua cadela. Há ainda referências discretas, mas marcantes, a autores como Sidonie-Gabrielle Colette, Rainer Maria Rilke e Robert Graves.

Nunez percorre também a tradição da literatura juvenil e sentimental sobre animais, em especial cavalos e cães, mencionando obras como Beleza Negra, de Anna Sewell, contada pela perspectiva de um cavalo; Minha amiga Flicka, de Mary O'Hara; Caninos brancos e O chamado selvagem, de Jack London; O belo Joe, de Margaret Marshall Saunders; e O cão chamado Buck, que aparece em múltiplas listas de clássicos. São narrativas em que a sensibilidade e o sofrimento animal têm protagonismo, muitas vezes servindo como crítica moral ao comportamento humano.

Em determinado momento, a narradora recorda um trecho do escritor Robert Graves sobre a Batalha do Somme. Diante da cena de destruição, ele diz: “O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.” A frase reforça que a violência contra os animais nos atinge com outra frequência, talvez porque, como diz a própria narradora, sua capacidade de sofrimento nos escapa, mas também nos interpela de forma mais direta e sem defesas.

E há também a escrita. O amigo, em vida, falava do quanto andar era parte essencial do seu processo criativo. Da importância de caminhar sem rumo pelas ruas da cidade para encontrar o ritmo da frase. Para ele, escrever era também uma questão de batida. Boas frases começam com uma batida. Era a caminhada que preparava essa batida inicial.

Ele se via como um flâneur, termo francês que descreve quem caminha lentamente pela cidade, sem destino certo, apenas observando o mundo e absorvendo o que está ao redor. Mas questionava se uma mulher poderia realmente ser uma flâneuse. Não por falta de ideias, mas pelas interrupções. Porque uma mulher andando sozinha é alvo de olhares, comentários, assobios. A liberdade de andar e se perder, como ele dizia, exige também o privilégio de não precisar estar em alerta o tempo todo. E como se desmanchar no mundo, como se dissolver nos pensamentos, se é preciso estar sempre se protegendo? Queria muito dizer que ele estava errado.

Com o tempo, a narradora percebe que a artrite de Apolo está se agravando. O fim se aproxima. Quando isso acontece, ela consegue uma casa grande emprestada, longe de tudo e de todos. Da varanda, ouve o mar e observa o cachorro deitado na grama. Um enxame de borboletas brancas se move pelo gramado. Ela teme que Apolo possa matá-las com uma mordida. Mas ele não se move. As borboletas pousam sobre ele. E então ela sente o que vai acontecer.

A última frase do romance é um lamento: “Oh, meu amigo, meu amigo.” Mas não há ali um mergulho no vazio. Com Apolo, ela pôde permanecer até o fim. Diferentemente do amigo que partiu sem explicações, o cão esteve presente até o último instante. Há dor, mas foi uma despedida construída com o tempo, cuidado e amor.

“Você anda devagar, cada vez mais devagar — manquejando é o termo que estou evitando aqui. Meu medo é que um dia até cheguemos bem lá, mas você não consiga voltar.”

Ah, sim, virou filme. Ainda estou pensando se vou assistir.




Trechos

“Karenin e Tereza são dedicadas uma à outra. Ao refletir sobre esse vínculo puro e desinteressado, Tereza conclui que tal amor é, se não maior, melhor do que a coisa corrupta, carregada, eternamente decepcionante e comprometida que sempre teve com Tomas.”

“Aonde você estava indo? A nenhum lugar em particular. Sem destino, sem compromisso. Apenas passeando, as mãos nos bolsos, saboreando a rua. Era o que gostava de fazer. Se não posso andar, não posso escrever. Você trabalhava pela manhã e, em determinado momento, o qual sempre chegava, quando você parecia incapaz de escrever uma frase simples, saía e caminhava por quilômetros. Malditos eram os dias em que o mau tempo impedia isso (o que raramente acontecia, pois você não se importava com o frio ou com a chuva, apenas uma tempestade poderia frustrá-lo). Quando voltava, sentava-se novamente para trabalhar, tentando manter o ritmo estabelecido durante a caminhada. E, quanto mais tivesse tido êxito nisso, melhor seria a escrita. Porque tudo tem a ver com ritmo, você disse. Boas frases começam com uma batida. Você postou um ensaio, “Como ser um flâneur”, sobre o costume de passear e andar sem destino na cidade e o lugar que isso ocupa na cultura literária. Recebeu algumas críticas por questionar se realmente poderia haver uma flâneuse. Você não achava possível uma mulher vagar pelas ruas com o mesmo espírito e o mesmo comportamento de um homem. Uma pedestre estava sujeita a interrupções constantes: olhares, comentários, assobios, assédios. A mulher é criada para estar sempre em guarda: Esse cara não está andando muito perto dela? Será que não a está seguindo? Como, então, ela poderia relaxar o suficiente para experimentar a perda do senso do eu, a alegria do puro ser que era o ideal da verdadeira flânerie?”

“Não se pode explicar a morte para um cachorro. Ele não entendia que papai nunca mais voltaria para casa. Esperou na porta dia e noite. Por um tempo ele nem sequer comeu, e eu temia que morresse de fome. Mas a pior parte era que, de vez em quando, ele fazia aquele barulho, aquele uivo ou lamento, ou o que quer que fosse. Não alto, mas estranho, como um fantasma ou alguma outra coisa esquisita. Continuou fazendo isso. Eu tentava distraí-lo com um agrado, mas ele virava a cabeça. Uma vez até rosnou para mim. Ele fazia isso à noite. Eu acordava e não conseguia pegar no sono de novo. Eu ficava lá, ouvindo, até achar que fosse enlouquecer. Toda vez que conseguia me recompor, eu o via esperando perto da porta, ou ele começava a lamentar daquele jeito, e eu desmoronava novamente. Tive que tirá-lo de casa. E, agora que ele se foi, seria cruel trazê-lo de volta. Não consigo imaginá-lo sendo feliz outra vez naquela casa.”

“​​Na maior parte do tempo, ele me ignora. Poderia muito bem viver sozinho aqui. Faz contato visual às vezes, mas então desvia imediatamente o olhar. Seus grandes olhos castanhos são surpreendentemente humanos; eles me recordam os seus. Lembro-me de uma vez, quando tive que viajar, em que deixei meu gato com um namorado. Ele não gostava muito de gatos, mas depois me falou que foi bom ficar com ele pois, disse, Eu sentia sua falta, e tê-lo por perto era como ter uma parte de você comigo. Ter seu cachorro por perto é como ter uma parte de você comigo. A expressão dele não muda. É a expressão que imagino nos olhos de Greyfriars Bobby nos anos em que permaneceu deitado no túmulo do dono. E ainda não o vi abanar o rabo. (O rabo dele não foi cortado, apenas as orelhas — infelizmente, de maneira desigual, deixando uma menor que a outra. Ele também foi castrado.) Ele sabe que não deve subir na cama.”

“Uma digressão. Sobre o sofrimento animal, o que realmente sabemos? Há evidências de que cães e outros bichos têm maior tolerância à dor do que os seres humanos. Mas sua verdadeira capacidade de sofrimento — como o seu verdadeiro grau de inteligência — deve continuar sendo um mistério. Ackerley acreditava que estar tão envolvido emocionalmente com as pessoas e tentar agradá-las sempre tornava a vida de um cão cronicamente ansiosa e estressada. Mas eles sofriam de dor de cabeça?, ele perguntava, nem mesmo esse tipo de detalhe sobre eles é conhecido. Outra questão: Por que as pessoas muitas vezes acham o sofrimento animal mais difícil de aceitar do que o sofrimento de outros seres humanos? Veja Robert Graves, escrevendo sobre a Batalha do Somme: O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.”

sábado, 21 de setembro de 2024

mapa do coração



"Era perfeitamente possível sentir saudade de alguém que você nunca tinha conhecido, e ele era prova viva disso."

Quando se quer uma leitura rápida, os chick-lits sempre são uma boa pedida. Além de serem divertidos, esses livros costumam entreter de forma leve e agradável. "Mapa do coração", de Susan Wiggs, não se encaixa exatamente no gênero. A protagonista não é desastrada, nem se mete em confusões típicas desses romances, mas o livro está quase lá.

A história gira em torno de Camille Adams, de 36 anos, que mora com sua filha de 14, Julie. Seu marido, Jace, morreu há cinco anos, mas ela ainda não conseguiu superar a dor e a forma com que o perdeu. Elas moram em Bethany Bay, vila pitoresca localizada na baía de Chesapeake, na costa leste dos Estados Unidos. Esse cenário me remeteu a uma série que assisti com o mesmo nome, o que facilitou a visualização do lugar, que é realmente encantador. 

Camille e sua mãe têm uma loja no vilarejo, daquelas que vendem de tudo, sempre com itens bonitinhos destinados a alegrar as pessoas. Além disso, divide um estúdio de fotografia com um amigo que, sinceramente, não acrescenta nada à trama. Coitado, ele nem deveria estar lá – só é salvo pelo nome: Billy, o nome do meu cachorrinho lindo. Especialista em restaurar fotos antigas de rolos esquecidos pelo tempo, Camille acaba acidentalmente destruindo o filme de um renomado pesquisador e professor de história, o que quase arruina sua única chance de descobrir os últimos momentos de seu pai, morto na Guerra do Vietnã.

Mas é claro que nem tudo será perdido, e é óbvio que Finn será o novo amor de Camille. Contudo, ela ainda está bastante confusa. Precisa lidar com o medo de outro acidente, o que faz com que superproteja sua filha, impedindo que Julie saia, viaje ou mesmo pratique atividades que possam colocá-la minimamente em risco. Julie, por sua vez, sofre bullying na escola. O pai de Camille, Henry, está se recuperando de um câncer, o que também a deixa ainda mais apreensiva. 

No meio de tudo isso, um baú enviado da França, contendo fotos e objetos, revelará que a história de vida de Henry não é exatamente como Camille acreditava. Até então, sabia-se que a mãe de Henry, Lisette, havia morrido no parto, e seu pai fora morto após o fim da guerra. Porém, as imagens e relatos encontrados nos levam de volta à década de 1940, onde conhecemos a verdadeira história de amor de Lisette. Finn vai ajudá-los a desvendar esse mistério.

E, assim, todos viajam para o sul da França durante o verão, onde desfrutam de momentos inesquecíveis, fazem muitas descobertas, novas amizades e, mais importante, percebem que nunca é tarde para dar outro rumo à vida. Recomendo a leitura para as férias – seja na cadeira de praia, ao lado da lareira ou até mesmo durante o trajeto. Esse livro vai te ajudar a passar o tempo e, quem sabe, te inspirar a adicionar dois novos destinos ao seu roteiro de viagens, ou até considerar uma mudança mais definitiva. Tentem apenas, se possível, abstrair o excesso de clichês e diálogos melosos. Difícil, eu sei.