"A palavra escrita nunca vai acabar, sra. Schäfer. Existem coisas que simplesmente não dá para expressar de outro jeito."
Carl Kollhoff tem 72 anos e seu trabalho é bem peculiar. Ele trabalha em uma livraria e entrega livros, pessoalmente, para um grupo seleto de clientes. Mais do que uma simples compra, as pessoas recebem obras que conversam diretamente com o momento de vida em que se encontram. É como se o livreiro lesse o coração e a mente dos seus clientes. Isso aparece no cuidado com a seleção do título, na forma como embala os volumes, como se fossem presentes, e na pontualidade com que chega à casa de cada um. Logo de cara fica claro que o que esperam, na verdade, é a sua companhia. Ele se torna o escape de que precisam para seguir com os dias.
Cada pessoa recebe, sem saber, um apelido literário, um personagem que traduz a sua personalidade: Mr. Darcy, de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Sra. Píppi Meialonga, de Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren; Effi Briest, de Effi Briest, de Theodor Fontane; Hércules, da mitologia grega. Assim Carl segue sua rotina há décadas, até que cruza com Schascha, uma garota de nove anos que bagunça sua ordem, traz aventuras e, acima de tudo, provoca uma virada em sua vida. Ao mesmo tempo, a atual dona da livraria, filha do fundador e grande amigo de Carl, planeja mudanças que o excluem definitivamente. Muito disso nasce do ressentimento por ele ter o dom de escolher exatamente o livro que cada pessoa precisa, algo que ela não consegue alcançar.
O enredo traz personagens solitários, envergonhados de suas limitações, vítimas de violência doméstica ou em busca de um novo sentido após a aposentadoria. Todos lidam com emoções que vão sendo, pouco a pouco, expostas e cuidadas por meio da literatura. Há ainda um gato com características de cachorro que acompanha as andanças do nosso protagonista.
Vale destacar também que cada capítulo faz referência a uma obra literária: Gente independente, de Halldór Laxness; O estrangeiro, de Albert Camus; O vermelho e o negro, de Stendhal; Grandes esperanças, de Charles Dickens; As palavras, de Jean-Paul Sartre; Rastros (Spuren), de Ernst Bloch; e Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. Pode ser o começo de uma boa lista de leitura ;-)
"O passeador de livros", de Carsten Henn, foi adaptado para o cinema em 2022, no filme alemão Der Buchspazierer, dirigido por Rolf Roring. Ainda assim, recomendo a leitura, que é leve e faz pensar no quanto os livros podem nos compreender como ninguém mais.
Trechos
"Tinha uma definição bastante clara do que, segundo ela, caracterizava um bom livro. Em primeiro lugar, era preciso mantê-la entretida de tal modo a deixá-la presa na cama, lendo até as pálpebras pesarem. Segundo, deveria levá-la às lágrimas em pelo menos três trechos; melhor ainda se fossem quatro. Terceiro, um bom livro jamais teria menos do que trezentas páginas e nem mais do que 380. Quarto: a capa em hipótese alguma poderia ser verde. Não se podia confiar em livros de capas verdes."
"Carl sempre ficava triste quando a mochila ficava vazia, sinal de que estava na hora de voltar para casa. Não que não gostasse de onde morava, mas Canino nunca o seguia até lá, e não havia ninguém à sua espera, ninguém que lhe desse uma cutucada com o ombro para pedir um carinho."
"Enquanto algumas pessoas tinham animais puramente domésticos, ele tinha uma companhia para passear. — Oi, Canino — disse ele, e sorriu. Carl dera esse nome a ele porque o gato se comportava como um cachorro: ia atrás dele, farejava tudo e marcava o território. Canino não miava, mas soltava uma espécie de rosnado."
"A diferença entre um romance com final feliz e um sem final feliz é apenas o ponto em que se para de contar a história."
"Foi bom ir embora. Foi fácil. Quando não pensamos nas consequências, nas brigas que virão, nas feridas que carregaremos, ir embora é muito fácil. Basta dar um passo após outro."
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