"Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre, e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono."
Li este livro por causa do barulho em torno do lançamento do filme, dirigido por Fernando Meirelles, que rendeu indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz para Fernanda Torres. Aliás, muito merecidas.
Do autor, Marcelo Rubens Paiva, eu já havia lido, há muito tempo, Feliz Ano Velho. As estruturas são parecidas, inclusive pelo estilo autobiográfico. Lá, acompanhamos o acidente que o deixou tetraplégico. Aqui, a história parte de dois eixos centrais: o desaparecimento de seu pai durante a ditadura militar brasileira e os anos em que conviveu com a mãe, Eunice Paiva, já diagnosticada com Alzheimer.
O romance começa com a memória de uma infância privilegiada. Marcelo estudou nas melhores escolas, cresceu cercado por livros, música, professores, intelectuais, políticos. Os pais viajavam com frequência ao exterior, moravam em bairros nobres tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, tinham empregada doméstica e levavam uma vida confortável, típica da classe média alta dos anos 1970.
Até que veio a ditadura.
Rubens Paiva, seu pai, era deputado cassado e passou a atuar no apoio a exilados políticos. Foi preso, torturado e desapareceu. Sua morte só seria confirmada oficialmente décadas depois. O livro traz isso de forma dolorosa: como aceitar a morte de alguém cujo corpo nunca foi encontrado? Como conviver com a ausência e a dúvida, mesmo diante de todas as evidências?
A mãe de Marcelo, Eunice, também foi presa. Uma das filhas, ainda criança, estava com ela. Depois do desaparecimento do marido, ela se viu sem acesso aos recursos financeiros da família, já que tudo estava no nome de Rubens. Foi, então, obrigada a reconstruir a vida praticamente do zero. Deixou o Rio de Janeiro com os cinco filhos e retornou a São Paulo. Decidiu estudar, formou-se em Direito e tornou-se uma das maiores defensoras da causa indígena no país. Tudo isso enquanto tentava descobrir o que realmente havia acontecido com seu companheiro.
Duas passagens que me marcaram: quando a morte de Rubens Paiva, 25 anos depois, é oficialmente reconhecida e mãe e filho vão juntos ao centro de São Paulo buscar a certidão de óbito. Doze anos depois, em 2008, voltam ao centro velho de São Paulo para que Marcelo passasse a ser o responsável pela mãe, já em estágio avançado da doença.
"30 de janeiro de 2008. Saímos da estação Liberdade. Fazia sol, mas me lembro do cheiro de que ia chover. Talvez todo paulistano detecte com precisão o cheiro da chuva a caminho. Sente no ar que o mundo pode desabar e tudo vai mudar. Sabe que, se chove, segue-se o caos. E que, por mais que tentemos, a natureza ainda é quem comanda a rotina do maior núcleo urbano da América do Sul."
Mais adiante, entramos na fase da doença de Eunice. Aos poucos, ela começa a esquecer rostos, lugares, palavras. E o título do livro passa a ter ainda mais força: Ainda estou aqui fala da presença insistente da memória, mesmo na ausência de clareza. Há pequenos gestos que revelam isso, como o momento em que ela massageia as mãos de Marcelo para evitar a atrofia, algo que fazia desde o acidente dele. Mesmo confusa, ela ainda estava ali. Lendo essas palavras, não pude deixar de fazer analogias com o Billy, meu cachorro, também diagnosticado com essa doença em sua forma canina. Olhos distantes, já não queria mais os mesmos brinquedos, já não respondia às provocações. Porém, lembro dele me procurando e reagindo diante de um estímulo olfativo, por exemplo.
O livro é tocante. O filme é lindo, muito bem dirigido e atuado. Uma história que merece ser lida e vista. Ambos, super indicados. Porque não falam só de um drama pessoal, mas de uma história coletiva, marcada pela violência do Estado. Mais que isso, mostram que algumas memórias nunca vão se apagar.
"É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego." - Trecho de uma carta escrita por Rubens Paiva aos filhas, quando ainda era deputado
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