“Às vezes um sinal, um aceno, é tudo de que as pessoas precisam.”
Em Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk, temos uma protetora dos animais que investiga a morte de seus cachorros enquanto tenta alertar a pequena cidade em que mora sobre armadilhas espalhadas pelos caçadores locais. Lá, ela é retratada como uma mulher atormentada, desequilibrada, fantasiosa. Em Os grandes carnívoros, da escritora brasileira Adriana Lisboa, temos também uma mulher que luta pelos animais e, mais uma vez, a suspeita de distúrbio sob a máscara de radicalismo.
Adelaide, a protagonista, volta ao Brasil após um período na prisão nos Estados Unidos, onde participou de uma ação direta: o incêndio de um laboratório de testes com animais. Logo fiz a associação com a campanha SHAC (Stop Huntingdon Animal Cruelty), cujos integrantes foram perseguidos e condenados como “terroristas domésticos” pelo governo norte-americano. O documentário The Animal People (2019), produzido por Joaquin Phoenix, retrata bem esse cenário e ajuda a compreender o tipo de dor e vigilância que Adelaide carrega.
Ela foi convocada para a luta durante uma viagem ao México. Depois disso, nunca mais se afastou da causa. Inclusive, casou-se com um companheiro de militância apenas para conseguir a residência nos EUA. Era um casamento de fachada e, mesmo assim, o vínculo entre eles sempre foi forte e verdadeiro.
Chega ao Brasil apenas com sua mochila. Carrega o suficiente para partir novamente, caso precise. Acolhida pela tia, reencontra o pai doente e, antes de recomeçar, resolve tirar um tempo consigo mesma em uma cidade serrana do Rio de Janeiro. Aluga uma casa, consegue um trabalho, conhece poucas pessoas. Entre elas, Rai, o proprietário da casa, com quem estabelece uma relação. Ele sabe do seu passado, mas não a julga. Pelo contrário, trata-a com delicadeza e com um interesse aparentemente genuíno pelo seu amor pelos animais, pelo vegetarianismo.
Sua premissa é desconfiar sempre. "Desconfiar sempre e muito." De tudo e de todos. E, bem no momento em que começa a ceder, a vida a empurra para um abismo inesperado. É quando a dor toma corpo. Foi difícil ler. E dói perceber que nem toda violência tem nome ou justiça. Mas ela está ali, na pele e no silêncio que se segue. A cena em que recorre ao rio para se limpar é de cortar a alma.
O livro vai e volta em lembranças. Entre elas, a clareira. É ali, ainda menina, caminhando sozinha, como sempre gostou de estar, perto da casa dos avós, que ela tem uma espécie de epifania. Vê borboletas amarelas pairando sobre uma poça d’água e, de repente, se dá conta da vida dos animais. E mais: da sua própria participação naquilo.
"As coisas saíram um milímetro do lugar — ou entraram um milímetro no lugar, ela pensaria, ao se lembrar tantas vezes daquele dia ao longo dos anos. A bem da verdade, ela diria a Sofia, não foi só ela ter se dado conta da vida animal."
Outra memória que a assombra é a do seu cachorro Popeye, já velho e trancado no banheiro. Ela, adolescente, o ignorava. Era sua mãe quem cuidava dele. Se as borboletas foram o encantamento, Popeye foi o incômodo.
A narrativa costura com sensibilidade esses dois extremos: o que nos liga e o que nos afasta dos animais. Adriana Lisboa enfatiza nossas contradições. Mostra que o amor aos bichos muitas vezes convive com gestos de dominação, posse, indiferença. Portanto, o contraste entre o afeto superficial e a compaixão ética.
Porém, fica a dúvida sobre o crime e a violência: “Olha para as próprias mãos. Mais uma vez aquela pergunta: onde é que está a violência, aqui, nestas mãos? É possível que não esteja nas mãos. A violência, a violência que existe nela. Essa faculdade. Há um músculo específico onde essa coisa fica alojada? Um órgão, uma área do cérebro? Ou é só o corpo inteiro em dado momento num levante? Será que as mãos que executam atos de violência são as mesmas que fizeram a cama mais cedo — que arrumaram o lençol de algodão, que afofaram os dois travesseiros?”
As reflexões seguem com tudo o que aprendeu sobre os estudos dos animais. Derrida aparece com sua célebre cena do gato que o observa nu. A pergunta “quem chegou primeiro?” é constante. Adelaide busca entender os animais sem lhes impor a linguagem humana.
“Nunca ferimos ninguém. Incendiamos um laboratório de pesquisa. René Descartes, cristão devoto, torturou cachorros e entrou para a história como um dos fundadores da filosofia moderna. Nós fomos para a prisão.”
Sofia, a amiga que conheceu nos EUA e que permanece como uma ausência marcante, é a figura mais próxima de um vínculo. É com ela que Adelaide visita o santuário de animais resgatados. É com ela que compartilha a perplexidade diante do sofrimento animal, inclusive o sofrimento psicológico dos trabalhadores de abatedouros. Não se trata de idealizar. Sofia panfleta. Adelaide duvida. Mas ambas foram atravessadas por algo que não permite mais retorno.
Adelaide existe em estado de vigília. Carrega a luta no corpo, mas já não grita como antes.
"Ela desconfia das pessoas que dizem eu amo os animais. O deboche também cansava. Bater boca cansava. Por isso esses novos silêncios onde antes levantaria a voz. Às vezes acha que as ações de sabotagem eram uma forma de levantar o moral do grupo, de fazer com que acreditassem estar sendo levados a sério, mais do que qualquer coisa.”
Talvez porque tenha entendido que o que está em jogo não é apenas o ativismo, mas o que acontece quando ele confronta o poder. O que o Estado escolhe punir e o que escolhe silenciar.
Os grandes carnívoros é um livro sobre violência, mas também sobre o que muda quando a venda cai dos olhos. Sobre o que resta quando já não é possível voltar ao estado anterior.
Trechos
“Ela se levanta, noite alta. Acende o abajur, abre a mochila de montanhismo e tira as mudas de roupa que trouxe e que são todas as que possui. Neste momento, tudo o que tem de essencial no mundo ela pode levar nas costas. Tudo o que tem no mundo ela poderia, aliás, deixar para trás se a urgência exigisse. Em caso de fuga imprevista. Em caso de incêndio, por exemplo.”
“E era sempre aquela mulher adequada, discreta, que dizia as palavras corretas no tom de voz correto e, no entanto, se descolava ligeiramente da realidade ao redor. Até que as duas foram visitar o santuário de animais resgatados de fazendas. Ficava a pouco mais de uma hora de carro, indo na direção da extensa planície a leste das Rochosas. Ali, Sofia pareceu afinal baixar as defesas — deixar as armas do lado de fora, como naquela festa, anos depois. Ela já saiu do carro quase correndo, feito uma criança, tomada pela alegria. Conhecia todos os animais, muitos pelo nome. As cabras, as ovelhas, as arredias lhamas. As galinhas que no primeiro dia não sabiam ser possível sair, pela manhã, do celeiro onde passaram a noite. O boi que tinha nascido sem os dois olhos, o galo que protegia as galinhas mais velhas, os porcos imensos — a fêmea uma verdadeira lady de duzentos quilos, comendo laranjas inteiras como quem beliscasse petits-fours no chá da tarde.”
“Aprendeu que algo acontecia quando estava sozinha. No princípio era o escuro. Algo acontecia quando não havia as vozes dos seus primos e tios e pais e avós, quando ela mergulhava no rio barrento e tudo submergia no cochicho da água. E o que a água tinha a dizer era uma subtração de tudo o que era dito ao seu redor. Então ela entendeu que para pensar com clareza era bom estar sozinha. Era essencial, talvez, estar sozinha. Começou a fazer passeios que eram como peregrinações. Encontrou um lugar aonde chegava se descesse pelo caminho da casa dos avós e ladeasse o paiol e fosse na direção da casa do seu Jessé (ele amansava cavalos e morava num casebre de um cômodo só). Chegando lá, tomava a estradinha esburacada por onde quase ninguém transitava e seguia até a beira da mata. Havia um passador ali, numa cerca de arame farpado. Ela se espremia pelo passador e se arranhava nas pontas do arame farpado e chegava numa pequena clareira. No princípio era o escuro e a mulher surgiu por conta própria, sozinha, e abriu uma clareira: poderia ter sido assim. A mulher era uma menina. A clareira pertencia a ela, era o seu pequeno santuário. E ela se perguntava por quê: por que eu olho ao redor e sinto o cheiro das coisas ao redor e sinto a terra e as pedras e o mato debaixo dos meus pés e sinto o sol e a sombra na minha pele, por que é que eu me dou conta de tudo isso. Um dia, tinha chovido e uma grande poça d’água se formou. E havia borboletas-amarelas esvoaçando em torno da poça d’água. Por que ela via as borboletas, como era possível que visse as borboletas e soubesse que estava vendo as borboletas? Será que os outros animais também sabiam que sabiam, sabiam que viam? O que será que a borboleta sabia? O jegue que ficava num cercado junto à casa do seu Jessé? A saracura que cantava quebrei três potes? Depois ela voltou para a casa dos avós e tudo parecia levemente desfocado. Como quando brincava de colocar os óculos da avó e as coisas ficavam com uma espécie de névoa e a avó ralhava, dizia tira isso Adelaide você vai estragar a vista. As coisas saíram um milímetro do lugar — ou entraram um milímetro no lugar, ela pensaria, ao se lembrar tantas vezes daquele dia ao longo dos anos. A bem da verdade, ela diria a Sofia, não foi só ela ter se dado conta da vida animal. Foi ter se dado conta da vida animal e saber que ela própria fazia parte daquilo. Estranhamente, como ela também disse a Sofia na mesma ocasião, aquele dar-se conta não mudou sua relação com Popeye, que era o animal não humano mais próximo a ela. Estranhamente continuou se desobrigando dos cuidados com o cachorro quando ele já era um velho doente com onze anos e ela uma adolescente com dezessete. Defendeu uma rã da morte e da dissecção em sua escola (não tinha ilusões, sabia que não tinha salvado aquela rã de coisa alguma) mas não se ocupava daquele cachorro idoso que coabitava com ela. Os cuidados com ele eram, única e exclusivamente, responsabilidade da mãe. A mesma mãe que o havia treinado à base de chineladas a não urinar dentro de casa era o único humano que o levava para passear na rua, que o alimentava, e era também o humano que o fechava dentro do banheiro para que ele não molhasse a casa. O cachorro aparece em seus sonhos. E em sua imaginação. Ela se vê abrindo a porta do banheiro onde ele ficava trancado. O que será que o bicho sentia atrás daquela porta? Não é difícil imaginar, pensa. Não é um pensamento em nada parecido à bucólica memória de um bando de borboletas-amarelas numa clareira ao pé da mata. Se ela se deu conta da vida animal com as borboletas, foi com a memória de Popeye, mais tarde, que se deu conta da descompromissada crueldade humana com os animais. Do suposto amor humano pelos animais que tantas vezes vem colado à violência sem que isso necessariamente cause estranheza. Hoje ela sabe de muita gente de classe média e alta que apregoa a volta a uma vida rural e que num dia está aleitando uma ovelha no colo com uma mamadeira, um doce olhar de compreensão e carinho, para mais adiante assar a mesma ovelha com manifesta gratidão pelo corpo que o animal lhe doou em contrapartida por uma vida de amor e dedicação. É uma conta que não fecha. Sofia fez um panfleto sobre as pessoas, muito diferentes desses privilegiados em busca da roça perdida, que trabalhavam num abatedouro que visitou. Havia, segundo as suas pesquisas, uma minoria que de fato encontrava prazer no que fazia. Mas a maioria estava ali por falta de opção e lidava com casos mais ou menos graves de transtorno de estresse pós-traumático — depressão, ansiedade, pânico, agressividade crescente, paranoia e mesmo comportamento psicótico. À primeira morte, se o trabalhador quisesse continuar ali, deveria seguir um distanciamento emocional. Alguns diziam que matar a primeira vaca não tinha sido nada fácil. Sentiam pena, queriam desviar os olhos, queriam ir embora. Aos poucos, ia ficando mais fácil. No fim, já não sentiam mais nada. E isso tinha um custo. Adelaide foi panfletar junto com Sofia. Uma família passou, o pai disse, ao alcance dos ouvidos delas, ah esses hippies. Vamos pedir costeletas no almoço? A expressão no rosto de Sofia permaneceu inalterada.”
“O que pensa, o que sente uma baleia-azul? O que enxerga uma baleia-azul quando topa com uma prancha na superfície do oceano? O que veem as novilhas no pasto ao seguir com os olhos o carro que passa na estrada? O que vê o gato no homem nu? O que “vê” o boi a quem faltam os dois olhos quando sua língua roça na palma da mão de uma mulher? O que via o beija-flor que esvoaçou ao redor de Adelaide durante uns bons cinco minutos, outro dia, na varanda? Ela se imobilizou por completo para deixar que ele se aproximasse. Ele veio até bem perto do seu rosto. Ela querendo estender a mão para tocá-lo, mas sabendo que isso romperia o pacto. O beija-flor ficou ali, ia e vinha, ela ouvia o zumbido das asas. Ele se afastava um metro, voltava, afastava-se um pouco outra vez, voltava. Chegou a centímetros do seu rosto. O que ele via? O que será que viam, em suas gaiolas, as chinchilas no galpão, no dia daquela inocente visita a convite dos amigos que tinham casa em Teresópolis? Adelaide entrou ali não sabendo muito bem o que esperar. Não pensou muito a respeito. Achava, talvez, que as chinchilas seriam vendidas como animais de estimação ou algo assim. A família caminhando por ali, entre as gaiolas, o pai, a mãe, seu filho pequeno e o cachorrinho. Não teve coragem de fazer a pergunta, mas mais tarde, já em casa, com os olhos esbugalhados de terror, leu: as formas mais comuns de executar as chinchilas para extração da pele são o uso de gás, a eletrocução ou a quebra do pescoço. A eletrocução é feita com um eletrodo na orelha e outro na cauda do animal. Uma leitura levou a outra e depois a outra e foi como ter aberto uma das portas do inferno. E ela soube que as coisas nunca mais seriam as mesmas, que ela nunca mais seria a mesma. As palavras daquele ativista: a partir do momento em que a venda foi retirada dos seus olhos e ele viu a realidade do que acontecia ao seu redor, a partir dali foi como viver em luto permanente. O animal que ela segue com os olhos, com as mãos, com os ouvidos, o animal que a segue (tigre-de-bengala na floresta, baleia-azul no oceano Pacífico, novilha numa estrada rural): como entendê-lo sem cair na tentação de antropomorfizá-lo, sem querer vesti-lo com os seus atributos? Como entendê-lo mesmo sem entendê-lo totalmente? Como respeitá-lo, mesmo que não o entenda totalmente? O que ele espera dela? Será que ele espera alguma coisa dela? Derrida escreveu, Sofia disse, que era como se o gato o levasse de volta à narrativa terrível do Gênesis. E o filósofo se perguntava quem teria nascido primeiro, antes dos nomes. “Quem viu o outro chegar? Quem terá sido o primeiro ocupante — e, portanto, o senhor? Quem permanece sendo o déspota desde sempre?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário