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domingo, 10 de agosto de 2025

o frio, o patinete, a livraria


Livros descobertos em uma tarde fria na Avenida Paulista: dicas de leitura com Sigrid Nunes, Richard Powers, Han Kang e outros

Está bem frio em São Paulo, para meu deleite, já que sou adepta às temperaturas mais baixas. Coisa rara, pois o inverno está cada vez mais escasso deste lado do Equador.

Quando deu cinco da tarde, resolvi dar uma caminhada. Eu estava inquieta porque parecia que não estava aproveitando o dia que tanto aprecio. Caminhei até uma livraria na Avenida Paulista, curtindo o ar melancólico da cidade, especialmente quando ela se preparava para fechar.

Quando digo fechar, quero dizer que as pessoas já estavam se recolhendo, ambulantes desmontando suas bancas, muitas lojas baixando as portas e todos encapuzados.

Chamou minha atenção a quantidade de patinetes elétricos disponíveis para os transeuntes. Lamentei não estar com meu celular para alugar um e seguir pela ciclovia, sentindo o vento no rosto.

Cheguei à livraria, onde sempre fico bem. É um ambiente aconchegante, instigante e cheio de possibilidades. Acho que nunca vou ler todos os livros que tenho e, ainda assim, estou o tempo todo em busca de novidades literárias.

Hoje me dei muito bem. Logo na primeira ilha de livros, me deparei com vários que, não fossem o preço, o espaço e a decisão de evitar a compra de livros físicos, eu teria levado todos. Estava ali Mitz, de Sigrid Nunes, escritora norte-americana que escreveu O amigo, romance que li recentemente e que trata do luto vivido por uma professora e por um cachorro. O livro que estava na minha frente romanceia a história de um sagui que viveu com Virginia Woolf e seu marido. Ao seu lado estava O que você está enfrentando, da mesma autora, que inspirou um filme de Pedro Almodóvar. Outro animal na capa, desta vez, um gato que, pela contracapa, estava em um abrigo. Preciso muito ler esses livros.

Um pouco mais adiante, me deparei com A trama das árvores, do romancista norte-americano Richard Powers. Já gostei da premissa, que traz vários personagens que se interligam por conta das árvores. Lembrei muito de quando tivemos que tomar a decisão sobre uma árvore plantada na calçada da casa dos meus pais. Ela cresceu tanto que começou a invadir a casa do vizinho e precisou ser transferida. Num ímpeto de arrependimento, minha irmã e eu fomos atrás dela, após descobrirmos o local para onde poderia ter sido levada. Tem um texto da Renata aqui no blog sobre isso. Enfim, entrou para minha lista de romances sobre natureza e meio ambiente.

Estamos, neste momento, tendo uma avalanche de literatura sul-coreana contemporânea, muitos dentro do que se chama leitura de cura. Já li vários e entendo que beiram a autoajuda, mas são muito melhores. Porém, se leu um, leu todos. Mas sabe quando queremos mais? Pois bem, eles nos conquistam pela capa, e não tem problema nenhum. Já anotei A loja de cartas de Seul, de Baek Seung-yeon, que estava lá me chamando. Mas não só de literatura de cura vivem os sul-coreanos. Há romances intensos, como os de Han Kang.

Nessa mesma ilha, encontrei Sem despedida, que fala de um pássaro que fica só após sua tutora ser hospitalizada. Confesso que estou curiosa para ver essa relação, muito porque lugar de pássaro não é dentro de casa, em uma gaiola. A capa mostra o aprisionamento. Da autora, li A vegetariana, que fala do devir-vegetal. Espetacular.

Só para constar, gostei muito da capa de O bom mal, coletânea de contos de Samanta Schweblin, que traz um coelho a contemplar o céu, como que pedindo ajuda. Não deixei na lista porque folheei e me pareceu prosa poética, e tenho certa resistência a esse tipo de narrativa. Posso estar enganada, todavia.

Deparei-me ainda com Orbital, romance de Samantha Harvey que une astronautas dos Estados Unidos, Rússia, Itália, Japão e Reino Unido em uma missão no espaço. A cada órbita, o livro promete uma reflexão. Gostei.

Outro que também me pareceu ter ligação com meu trabalho foi Os urubus não esquecem, do professor da USP Pedro Cesarino. Trata de uma mãe indígena que busca pelo filho desaparecido. Curiosamente, a capa traz uma canoa, que esteve presente em um sonho que tive esta noite. Nada acontece por acaso.

E, para finalizar, coloquei na lista de desejos um suspense: A luz entre as frestas – Inspetor Gamache, Livro 9, de Louise Penny. Passei boa parte da minha adolescência lendo as peripécias de Poirot, de Agatha Christie. Ainda não conhecia o detetive Gamache. Minha dúvida é se posso começar pelo livro 9, que anotei justamente porque se passa no frio, no Canadá, e também na época de Natal. Sim, já estou pensando no que vou ler em novembro e dezembro.

Assim terminei meu dia, cheia de livros, animais e vontade de andar de patinete. E você, qual livro descobriu recentemente em uma livraria? 



sábado, 12 de julho de 2025

o passeador de livros


"A palavra escrita nunca vai acabar, sra. Schäfer. Existem coisas que simplesmente não dá para expressar de outro jeito."

Carl Kollhoff tem 72 anos e seu trabalho é bem peculiar. Ele trabalha em uma livraria e entrega livros, pessoalmente, para um grupo seleto de clientes. Mais do que uma simples compra, as pessoas recebem obras que conversam diretamente com o momento de vida em que se encontram. É como se o livreiro lesse o coração e a mente dos seus clientes. Isso aparece no cuidado com a seleção do título, na forma como embala os volumes, como se fossem presentes, e na pontualidade com que chega à casa de cada um. Logo de cara fica claro que o que esperam, na verdade, é a sua companhia. Ele se torna o escape de que precisam para seguir com os dias.

Cada pessoa recebe, sem saber, um apelido literário, um personagem que traduz a sua personalidade: Mr. Darcy, de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Sra. Píppi Meialonga, de Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren; Effi Briest, de Effi Briest, de Theodor Fontane; Hércules, da mitologia grega. Assim Carl segue sua rotina há décadas, até que cruza com Schascha, uma garota de nove anos que bagunça sua ordem, traz aventuras e, acima de tudo, provoca uma virada em sua vida. Ao mesmo tempo, a atual dona da livraria, filha do fundador e grande amigo de Carl, planeja mudanças que o excluem definitivamente. Muito disso nasce do ressentimento por ele ter o dom de escolher exatamente o livro que cada pessoa precisa, algo que ela não consegue alcançar.

O enredo traz personagens solitários, envergonhados de suas limitações, vítimas de violência doméstica ou em busca de um novo sentido após a aposentadoria. Todos lidam com emoções que vão sendo, pouco a pouco, expostas e cuidadas por meio da literatura. Há ainda um gato com características de cachorro que acompanha as andanças do nosso protagonista. 

Vale destacar também que cada capítulo faz referência a uma obra literária: Gente independente, de Halldór Laxness; O estrangeiro, de Albert Camus; O vermelho e o negro, de Stendhal; Grandes esperanças, de Charles Dickens; As palavras, de Jean-Paul Sartre; Rastros (Spuren), de Ernst Bloch; e Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline. Pode ser o começo de uma boa lista de leitura ;-)

"O passeador de livros", de Carsten Henn, foi adaptado para o cinema em 2022, no filme alemão Der Buchspazierer, dirigido por Rolf Roring. Ainda assim, recomendo a leitura, que é leve e faz pensar no quanto os livros podem nos compreender como ninguém mais.

Trechos

"Tinha uma definição bastante clara do que, segundo ela, caracterizava um bom livro. Em primeiro lugar, era preciso mantê-la entretida de tal modo a deixá-la presa na cama, lendo até as pálpebras pesarem. Segundo, deveria levá-la às lágrimas em pelo menos três trechos; melhor ainda se fossem quatro. Terceiro, um bom livro jamais teria menos do que trezentas páginas e nem mais do que 380. Quarto: a capa em hipótese alguma poderia ser verde. Não se podia confiar em livros de capas verdes."

"Carl sempre ficava triste quando a mochila ficava vazia, sinal de que estava na hora de voltar para casa. Não que não gostasse de onde morava, mas Canino nunca o seguia até lá, e não havia ninguém à sua espera, ninguém que lhe desse uma cutucada com o ombro para pedir um carinho."

"Enquanto algumas pessoas tinham animais puramente domésticos, ele tinha uma companhia para passear. — Oi, Canino — disse ele, e sorriu. Carl dera esse nome a ele porque o gato se comportava como um cachorro: ia atrás dele, farejava tudo e marcava o território. Canino não miava, mas soltava uma espécie de rosnado."

"A diferença entre um romance com final feliz e um sem final feliz é apenas o ponto em que se para de contar a história."

"Foi bom ir embora. Foi fácil. Quando não pensamos nas consequências, nas brigas que virão, nas feridas que carregaremos, ir embora é muito fácil. Basta dar um passo após outro."

sábado, 5 de abril de 2025

clube de leitura dos corações solitários


"Levei o livro junto ao peito, com uma tristeza repentina e devastadora. Não por causa das pessoas que eu perdera e continuaria a perder, mas porque, mesmo com a perda sempre no horizonte, a vida ainda me chamava."

Ultimamente, tem surgido uma onda de romances que se passam em livrarias, bibliotecas ou giram em torno do amor pelos livros. Clube de Leitura dos Corações Solitários, de Lucy Gilmore, entra nessa mesma prateleira. É uma leitura leve, que entretém sem prometer grandes mensagens nem referências literárias sofisticadas.

A história gira em torno de Sloane Parker, bibliotecária introvertida, e Arthur McLachlan, idoso, rabugento e frequentador assíduo da biblioteca. A partir da relação inusitada entre os dois, outros personagens vão se conectando: a vizinha de Arthur, seu neto e um colega de trabalho de Sloane. Juntos, criam um improvável clube de leitura.

Como era de se esperar, nem tudo corre bem. Arthur tem um temperamento difícil e, mesmo entendendo que sua rigidez é para esconder suas verdadeiras emoções, confesso que em vários momentos considerei seu comportamento abusivo. Já Sloane vive enterrada nos livros e praticamente nunca se expõe ou entra em conflito. Está noiva de um quiropata que gosta dela, mas não desperta paixão, o que combina com o tom morno de sua vida. Guarda, porém, lembranças dolorosas da infância, dos conflitos familiares e da perda da irmã.

A vizinha é uma figura hilária. Ela tem suas questões com a filha, mas garante o toque de humor ao romance. Em contrapartida, o neto é um dos personagens mais sem graça que já vi. Sua presença em cena nada acrescenta, e suas descrições só pioram essa impressão.

Um ponto que me agradou foi a estrutura dos capítulos. Cada um é narrado sob o ponto de vista de um personagem. A abertura exibe a imagem de cartões de biblioteca, aqueles nos quais se anotavam os nomes de quem pegava o livro emprestado. Um detalhe simples, mas que chama a atenção.

Resumindo: não sei se indicaria. Há livros muito melhores para quem procura histórias sobre bibliotecas e livros. Um exemplo é A Biblioteca de Paris, de Janet Skeslien Charles.

domingo, 23 de março de 2025

lembranças ao vento


"Quando você não tem nada e já viu o pior, a educação é como um presente."

Olha, não sei como aguentei ir até o final de Lembranças ao Vento, da australiana Rhonda Forrest. Cheguei nele por recomendação da própria Amazon após a leitura de O vento que sussurra. A premissa até que é boa e poderia ter rendido um ótimo romance, mas o desenrolar se perde em tantos lugares-comuns que ficou difícil manter o interesse.

A história se passa na Austrália. Temos um veterano de guerra traumatizado que vai se refugiar em uma cidadezinha. Lá, dedica-se à criação artística. Faz aulas de pintura com modelos vivos e está sempre trabalhando em uma nova exposição. Também segue uma rotina rigorosa de exercícios físicos, parte do tratamento psicológico. Entre eles, a natação em um lago.

E é nesse lago que, todos os dias, ele vê uma mulher nadando. Só que de forma engraçada e totalmente errada. Ele, secretamente, a apelida de “garota borboleta”, por conta das tentativas (frustradas) dela em nadar nesse estilo.

Nem preciso dizer o que acontece.

Ela também tem suas questões. É refugiada do Afeganistão e está fugindo de um ex-patrão que se considera seu dono. 

Juntam-se aos dois todos os colegas das aulas de desenho. Eles fazem piqueniques, riem, comemoram... e só. No meio disso tudo, aparece a ex possessiva dele. Ah, tem um cachorrinho lindo. Sinceramente, foi talvez o que me segurou até o fim. Fiquei torcendo para que nada de ruim acontecesse a ele.

“Um cachorrinho saiu correndo de uma trilha estreita atrás do lago interrompendo seus pensamentos e girou ao seu redor dando saltos e lhe arranhando as pernas com as patas peludas enquanto tentava pular. Liam pegou o animalzinho no colo, que tentou lhe lamber o rosto com a pequena língua cor-de-rosa. Ele riu e deu um tapinha de boas-vindas no cachorro antes de colocá-lo de volta na areia.”

O romance até que tenta trazer uma crítica social à forma como os refugiados são tratados, mas se rende ao clichê e prejudica a mensagem. Sem contar a falta de cuidado com a revisão da versão em português.

domingo, 2 de março de 2025

os grandes carnívoros


“Às vezes um sinal, um aceno, é tudo de que as pessoas precisam.”

Em Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk, temos uma protetora dos animais que investiga a morte de seus cachorros enquanto tenta alertar a pequena cidade em que mora sobre armadilhas espalhadas pelos caçadores locais. Lá, ela é retratada como uma mulher atormentada, desequilibrada, fantasiosa. Em Os grandes carnívoros, da escritora brasileira Adriana Lisboa, temos também uma mulher que luta pelos animais e, mais uma vez, a suspeita de distúrbio sob a máscara de radicalismo.

Adelaide, a protagonista, volta ao Brasil após um período na prisão nos Estados Unidos, onde participou de uma ação direta: o incêndio de um laboratório de testes com animais. Logo fiz a associação com a campanha SHAC (Stop Huntingdon Animal Cruelty), cujos integrantes foram perseguidos e condenados como “terroristas domésticos” pelo governo norte-americano. O documentário The Animal People (2019), produzido por Joaquin Phoenix, retrata bem esse cenário e ajuda a compreender o tipo de dor e vigilância que Adelaide carrega.

Ela foi convocada para a luta durante uma viagem ao México. Depois disso, nunca mais se afastou da causa. Inclusive, casou-se com um companheiro de militância apenas para conseguir a residência nos EUA. Era um casamento de fachada e, mesmo assim, o vínculo entre eles sempre foi forte e verdadeiro.

Chega ao Brasil apenas com sua mochila. Carrega o suficiente para partir novamente, caso precise. Acolhida pela tia, reencontra o pai doente e, antes de recomeçar, resolve tirar um tempo consigo mesma em uma cidade serrana do Rio de Janeiro. Aluga uma casa, consegue um trabalho, conhece poucas pessoas. Entre elas, Rai, o proprietário da casa, com quem estabelece uma relação. Ele sabe do seu passado, mas não a julga. Pelo contrário, trata-a com delicadeza e com um interesse aparentemente genuíno pelo seu amor pelos animais, pelo vegetarianismo.

Sua premissa é desconfiar sempre. "Desconfiar sempre e muito." De tudo e de todos. E, bem no momento em que começa a ceder, a vida a empurra para um abismo inesperado. É quando a dor toma corpo. Foi difícil ler. E dói perceber que nem toda violência tem nome ou justiça. Mas ela está ali, na pele e no silêncio que se segue. A cena em que recorre ao rio para se limpar é de cortar a alma.

O livro vai e volta em lembranças. Entre elas, a clareira. É ali, ainda menina, caminhando sozinha, como sempre gostou de estar, perto da casa dos avós, que ela tem uma espécie de epifania. Vê borboletas amarelas pairando sobre uma poça d’água e, de repente, se dá conta da vida dos animais. E mais: da sua própria participação naquilo.

"As coisas saíram um milímetro do lugar — ou entraram um milímetro no lugar, ela pensaria, ao se lembrar tantas vezes daquele dia ao longo dos anos. A bem da verdade, ela diria a Sofia, não foi só ela ter se dado conta da vida animal."

Outra memória que a assombra é a do seu cachorro Popeye, já velho e trancado no banheiro. Ela, adolescente, o ignorava. Era sua mãe quem cuidava dele. Se as borboletas foram o encantamento, Popeye foi o incômodo.

A narrativa costura com sensibilidade esses dois extremos: o que nos liga e o que nos afasta dos animais. Adriana Lisboa enfatiza nossas contradições. Mostra que o amor aos bichos muitas vezes convive com gestos de dominação, posse, indiferença. Portanto, o contraste entre o afeto superficial e a compaixão ética.

Porém, fica a dúvida sobre o crime e a violência: “Olha para as próprias mãos. Mais uma vez aquela pergunta: onde é que está a violência, aqui, nestas mãos? É possível que não esteja nas mãos. A violência, a violência que existe nela. Essa faculdade. Há um músculo específico onde essa coisa fica alojada? Um órgão, uma área do cérebro? Ou é só o corpo inteiro em dado momento num levante? Será que as mãos que executam atos de violência são as mesmas que fizeram a cama mais cedo — que arrumaram o lençol de algodão, que afofaram os dois travesseiros?”

As reflexões seguem com tudo o que aprendeu sobre os estudos dos animais. Derrida aparece com sua célebre cena do gato que o observa nu. A pergunta “quem chegou primeiro?” é constante. Adelaide busca entender os animais sem lhes impor a linguagem humana.

“Nunca ferimos ninguém. Incendiamos um laboratório de pesquisa. René Descartes, cristão devoto, torturou cachorros e entrou para a história como um dos fundadores da filosofia moderna. Nós fomos para a prisão.”

Sofia, a amiga que conheceu nos EUA e que permanece como uma ausência marcante, é a figura mais próxima de um vínculo. É com ela que Adelaide visita o santuário de animais resgatados. É com ela que compartilha a perplexidade diante do sofrimento animal, inclusive o sofrimento psicológico dos trabalhadores de abatedouros. Não se trata de idealizar. Sofia panfleta. Adelaide duvida. Mas ambas foram atravessadas por algo que não permite mais retorno.

Adelaide existe em estado de vigília. Carrega a luta no corpo, mas já não grita como antes.

"Ela desconfia das pessoas que dizem eu amo os animais. O deboche também cansava. Bater boca cansava. Por isso esses novos silêncios onde antes levantaria a voz. Às vezes acha que as ações de sabotagem eram uma forma de levantar o moral do grupo, de fazer com que acreditassem estar sendo levados a sério, mais do que qualquer coisa.”

Talvez porque tenha entendido que o que está em jogo não é apenas o ativismo, mas o que acontece quando ele confronta o poder. O que o Estado escolhe punir e o que escolhe silenciar.

Os grandes carnívoros é um livro sobre violência, mas também sobre o que muda quando a venda cai dos olhos. Sobre o que resta quando já não é possível voltar ao estado anterior.

Trechos

“Ela se levanta, noite alta. Acende o abajur, abre a mochila de montanhismo e tira as mudas de roupa que trouxe e que são todas as que possui. Neste momento, tudo o que tem de essencial no mundo ela pode levar nas costas. Tudo o que tem no mundo ela poderia, aliás, deixar para trás se a urgência exigisse. Em caso de fuga imprevista. Em caso de incêndio, por exemplo.”

“E era sempre aquela mulher adequada, discreta, que dizia as palavras corretas no tom de voz correto e, no entanto, se descolava ligeiramente da realidade ao redor. Até que as duas foram visitar o santuário de animais resgatados de fazendas. Ficava a pouco mais de uma hora de carro, indo na direção da extensa planície a leste das Rochosas. Ali, Sofia pareceu afinal baixar as defesas — deixar as armas do lado de fora, como naquela festa, anos depois. Ela já saiu do carro quase correndo, feito uma criança, tomada pela alegria. Conhecia todos os animais, muitos pelo nome. As cabras, as ovelhas, as arredias lhamas. As galinhas que no primeiro dia não sabiam ser possível sair, pela manhã, do celeiro onde passaram a noite. O boi que tinha nascido sem os dois olhos, o galo que protegia as galinhas mais velhas, os porcos imensos — a fêmea uma verdadeira lady de duzentos quilos, comendo laranjas inteiras como quem beliscasse petits-fours no chá da tarde.”

“Aprendeu que algo acontecia quando estava sozinha. No princípio era o escuro. Algo acontecia quando não havia as vozes dos seus primos e tios e pais e avós, quando ela mergulhava no rio barrento e tudo submergia no cochicho da água. E o que a água tinha a dizer era uma subtração de tudo o que era dito ao seu redor. Então ela entendeu que para pensar com clareza era bom estar sozinha. Era essencial, talvez, estar sozinha. Começou a fazer passeios que eram como peregrinações. Encontrou um lugar aonde chegava se descesse pelo caminho da casa dos avós e ladeasse o paiol e fosse na direção da casa do seu Jessé (ele amansava cavalos e morava num casebre de um cômodo só). Chegando lá, tomava a estradinha esburacada por onde quase ninguém transitava e seguia até a beira da mata. Havia um passador ali, numa cerca de arame farpado. Ela se espremia pelo passador e se arranhava nas pontas do arame farpado e chegava numa pequena clareira. No princípio era o escuro e a mulher surgiu por conta própria, sozinha, e abriu uma clareira: poderia ter sido assim. A mulher era uma menina. A clareira pertencia a ela, era o seu pequeno santuário. E ela se perguntava por quê: por que eu olho ao redor e sinto o cheiro das coisas ao redor e sinto a terra e as pedras e o mato debaixo dos meus pés e sinto o sol e a sombra na minha pele, por que é que eu me dou conta de tudo isso. Um dia, tinha chovido e uma grande poça d’água se formou. E havia borboletas-amarelas esvoaçando em torno da poça d’água. Por que ela via as borboletas, como era possível que visse as borboletas e soubesse que estava vendo as borboletas? Será que os outros animais também sabiam que sabiam, sabiam que viam? O que será que a borboleta sabia? O jegue que ficava num cercado junto à casa do seu Jessé? A saracura que cantava quebrei três potes? Depois ela voltou para a casa dos avós e tudo parecia levemente desfocado. Como quando brincava de colocar os óculos da avó e as coisas ficavam com uma espécie de névoa e a avó ralhava, dizia tira isso Adelaide você vai estragar a vista. As coisas saíram um milímetro do lugar — ou entraram um milímetro no lugar, ela pensaria, ao se lembrar tantas vezes daquele dia ao longo dos anos. A bem da verdade, ela diria a Sofia, não foi só ela ter se dado conta da vida animal. Foi ter se dado conta da vida animal e saber que ela própria fazia parte daquilo. Estranhamente, como ela também disse a Sofia na mesma ocasião, aquele dar-se conta não mudou sua relação com Popeye, que era o animal não humano mais próximo a ela. Estranhamente continuou se desobrigando dos cuidados com o cachorro quando ele já era um velho doente com onze anos e ela uma adolescente com dezessete. Defendeu uma rã da morte e da dissecção em sua escola (não tinha ilusões, sabia que não tinha salvado aquela rã de coisa alguma) mas não se ocupava daquele cachorro idoso que coabitava com ela. Os cuidados com ele eram, única e exclusivamente, responsabilidade da mãe. A mesma mãe que o havia treinado à base de chineladas a não urinar dentro de casa era o único humano que o levava para passear na rua, que o alimentava, e era também o humano que o fechava dentro do banheiro para que ele não molhasse a casa. O cachorro aparece em seus sonhos. E em sua imaginação. Ela se vê abrindo a porta do banheiro onde ele ficava trancado. O que será que o bicho sentia atrás daquela porta? Não é difícil imaginar, pensa. Não é um pensamento em nada parecido à bucólica memória de um bando de borboletas-amarelas numa clareira ao pé da mata. Se ela se deu conta da vida animal com as borboletas, foi com a memória de Popeye, mais tarde, que se deu conta da descompromissada crueldade humana com os animais. Do suposto amor humano pelos animais que tantas vezes vem colado à violência sem que isso necessariamente cause estranheza. Hoje ela sabe de muita gente de classe média e alta que apregoa a volta a uma vida rural e que num dia está aleitando uma ovelha no colo com uma mamadeira, um doce olhar de compreensão e carinho, para mais adiante assar a mesma ovelha com manifesta gratidão pelo corpo que o animal lhe doou em contrapartida por uma vida de amor e dedicação. É uma conta que não fecha. Sofia fez um panfleto sobre as pessoas, muito diferentes desses privilegiados em busca da roça perdida, que trabalhavam num abatedouro que visitou. Havia, segundo as suas pesquisas, uma minoria que de fato encontrava prazer no que fazia. Mas a maioria estava ali por falta de opção e lidava com casos mais ou menos graves de transtorno de estresse pós-traumático — depressão, ansiedade, pânico, agressividade crescente, paranoia e mesmo comportamento psicótico. À primeira morte, se o trabalhador quisesse continuar ali, deveria seguir um distanciamento emocional. Alguns diziam que matar a primeira vaca não tinha sido nada fácil. Sentiam pena, queriam desviar os olhos, queriam ir embora. Aos poucos, ia ficando mais fácil. No fim, já não sentiam mais nada. E isso tinha um custo. Adelaide foi panfletar junto com Sofia. Uma família passou, o pai disse, ao alcance dos ouvidos delas, ah esses hippies. Vamos pedir costeletas no almoço? A expressão no rosto de Sofia permaneceu inalterada.”

“O que pensa, o que sente uma baleia-azul? O que enxerga uma baleia-azul quando topa com uma prancha na superfície do oceano? O que veem as novilhas no pasto ao seguir com os olhos o carro que passa na estrada? O que vê o gato no homem nu? O que “vê” o boi a quem faltam os dois olhos quando sua língua roça na palma da mão de uma mulher? O que via o beija-flor que esvoaçou ao redor de Adelaide durante uns bons cinco minutos, outro dia, na varanda? Ela se imobilizou por completo para deixar que ele se aproximasse. Ele veio até bem perto do seu rosto. Ela querendo estender a mão para tocá-lo, mas sabendo que isso romperia o pacto. O beija-flor ficou ali, ia e vinha, ela ouvia o zumbido das asas. Ele se afastava um metro, voltava, afastava-se um pouco outra vez, voltava. Chegou a centímetros do seu rosto. O que ele via? O que será que viam, em suas gaiolas, as chinchilas no galpão, no dia daquela inocente visita a convite dos amigos que tinham casa em Teresópolis? Adelaide entrou ali não sabendo muito bem o que esperar. Não pensou muito a respeito. Achava, talvez, que as chinchilas seriam vendidas como animais de estimação ou algo assim. A família caminhando por ali, entre as gaiolas, o pai, a mãe, seu filho pequeno e o cachorrinho. Não teve coragem de fazer a pergunta, mas mais tarde, já em casa, com os olhos esbugalhados de terror, leu: as formas mais comuns de executar as chinchilas para extração da pele são o uso de gás, a eletrocução ou a quebra do pescoço. A eletrocução é feita com um eletrodo na orelha e outro na cauda do animal. Uma leitura levou a outra e depois a outra e foi como ter aberto uma das portas do inferno. E ela soube que as coisas nunca mais seriam as mesmas, que ela nunca mais seria a mesma. As palavras daquele ativista: a partir do momento em que a venda foi retirada dos seus olhos e ele viu a realidade do que acontecia ao seu redor, a partir dali foi como viver em luto permanente. O animal que ela segue com os olhos, com as mãos, com os ouvidos, o animal que a segue (tigre-de-bengala na floresta, baleia-azul no oceano Pacífico, novilha numa estrada rural): como entendê-lo sem cair na tentação de antropomorfizá-lo, sem querer vesti-lo com os seus atributos? Como entendê-lo mesmo sem entendê-lo totalmente? Como respeitá-lo, mesmo que não o entenda totalmente? O que ele espera dela? Será que ele espera alguma coisa dela? Derrida escreveu, Sofia disse, que era como se o gato o levasse de volta à narrativa terrível do Gênesis. E o filósofo se perguntava quem teria nascido primeiro, antes dos nomes. “Quem viu o outro chegar? Quem terá sido o primeiro ocupante — e, portanto, o senhor? Quem permanece sendo o déspota desde sempre?”

domingo, 9 de fevereiro de 2025

o vento que sussura


"É nas lendas e fábulas que mantemos vivos nossos ancestrais, nossa cultura e nossa história. Transformamos memórias em histórias e, se não fizermos isso, nós as perdemos. Se as histórias desaparecerem, as pessoas desaparecem também."

Viagem no tempo e um provável ciclo sem fim. Assim podemos definir este romance, que me lembrou muito a série Outlander. Não cheguei a ler os livros, mas vi a versão para a TV. Aliás, excelente.

Em, O vento que sussurra, de Amy Harmon, temos como protagonista a renomada escritora Anne Gallagher, que mora em Nova York. Ela perdeu os pais ainda criança e foi criada pelo avô, imigrante irlandês que sempre lhe contou muitas histórias sobre sua terra natal. Eles viajaram juntos por vários países, e ele sempre incentivou o interesse da neta por história. Mas nunca, por decisão dele, voltaram às origens. Tanto que Anne se torna famosa por escrever romances históricos, embora nunca tenha ambientado nenhum deles naquele país que só conhecia pelos relatos do avô.

Após a morte dele, Anne fica completamente arrasada e decide levar suas cinzas para o local onde ele nasceu. Antes de morrer, ele diz que em breve eles irão se reencontrar. E também afirma que ela terá uma linda história de amor para escrever. Talvez a mais bela de todas.

Então, ela viaja sozinha para o interior do país. Lá chegando, entra em um barco para jogar as cinzas em um lago. Nesse momento, uma neblina densa aparece e ela é atacada. Quando acorda, percebe que foi, de algum modo, transportada para o ano de 1921, às vésperas da guerra pela independência. É resgatada pelo médico Thomas Smith, que também cuida de um garotinho de seis anos. Anne é confundida com a mãe da criança, desaparecida anos antes. O pai do menino foi morto em uma rebelião, e acredita-se que a mãe tenha tido o mesmo destino.

Enquanto a trama se desenrola e vamos descobrindo a relação da protagonista com esses novos, ou talvez antigos, personagens, o romance nos conduz por cenários históricos marcados por tensão política. Entre os personagens reais citados, destaca-se Michael Collins, uma das figuras centrais no processo de independência da Irlanda. A leitura é envolvente, com toques de mistério. Nada muito profundo, mas com delicadeza suficiente para nos fazer pensar que há forças que nos guiam, atravessam o tempo e nos conectam a histórias que talvez já tenham começado antes mesmo de sabermos.

"Sempre me perguntei, absorta em pilhas de pesquisas, se a mágica da história se perderia se pudéssemos voltar e vivê-la. Será que envernizávamos o passado e fazíamos de homens comuns heróis e imaginávamos beleza e valor onde havia apenas tristeza e desespero?"

sábado, 1 de fevereiro de 2025

a paciente silenciosa


"Quando se coloca um nome em algo, não dá mais para ver essa coisa como um todo nem a importância dela."
Leitura típica de aeroporto. Quer um thriller interessante para ler enquanto espera seu voo? A paciente silenciosa, do autor e roteirista britânico nascido no Chipre, Alex Michaelides, é uma excelente pedida.

O livro conta a história perturbadora de Alicia Berenson, pintora renomada que aparentemente levava uma vida tranquila até matar o marido com cinco tiros no rosto, sem explicações. Após o crime, Alicia simplesmente para de falar, mergulhando em um profundo silêncio. Internada em uma clínica psiquiátrica, passa a ser a sensação tanto do público quanto dos profissionais da saúde mental.

É aí que surge Theo Faber, psicoterapeuta que decide trabalhar para quebrar a mudez e entender o que realmente aconteceu na noite do crime. Para isso, segue todos os passos que ela deu até o fatídico acontecimento. O que encontra é uma vida cheia de traumas, traições e remorsos. Não dá para falar muito sem comprometer a experiência da leitura.

Só tenho a dizer que, quem já foi leitor de Agatha Christie, vai sacar lá pelas tantas o que realmente aconteceu.

"De certa maneira, tentar agarrar flocos de neve que desaparecem é como tentar agarrar a felicidade: um ato de posse que imediatamente se transforma em nada. O que me lembrou que havia um mundo inteiro fora daquela casa — um mundo de imensidão e inconcebível beleza que, por enquanto, estava fora do meu alcance."

sábado, 25 de janeiro de 2025

ainda estou aqui


"Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre, e agora triste, e depois estarei alegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono."

Li este livro por causa do barulho em torno do lançamento do filme, dirigido por Fernando Meirelles, que rendeu indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz para Fernanda Torres. Aliás, muito merecidas.

Do autor, Marcelo Rubens Paiva, eu já havia lido, há muito tempo, Feliz Ano Velho. As estruturas são parecidas, inclusive pelo estilo autobiográfico. Lá, acompanhamos o acidente que o deixou tetraplégico. Aqui, a história parte de dois eixos centrais: o desaparecimento de seu pai durante a ditadura militar brasileira e os anos em que conviveu com a mãe, Eunice Paiva, já diagnosticada com Alzheimer.

O romance começa com a memória de uma infância privilegiada. Marcelo estudou nas melhores escolas, cresceu cercado por livros, música, professores, intelectuais, políticos. Os pais viajavam com frequência ao exterior, moravam em bairros nobres tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, tinham empregada doméstica e levavam uma vida confortável, típica da classe média alta dos anos 1970.

Até que veio a ditadura.

Rubens Paiva, seu pai, era deputado cassado e passou a atuar no apoio a exilados políticos. Foi preso, torturado e desapareceu. Sua morte só seria confirmada oficialmente décadas depois. O livro traz isso de forma dolorosa: como aceitar a morte de alguém cujo corpo nunca foi encontrado? Como conviver com a ausência e a dúvida, mesmo diante de todas as evidências?

A mãe de Marcelo, Eunice, também foi presa. Uma das filhas, ainda criança, estava com ela. Depois do desaparecimento do marido, ela se viu sem acesso aos recursos financeiros da família, já que tudo estava no nome de Rubens. Foi, então, obrigada a reconstruir a vida praticamente do zero. Deixou o Rio de Janeiro com os cinco filhos e retornou a São Paulo. Decidiu estudar, formou-se em Direito e tornou-se uma das maiores defensoras da causa indígena no país. Tudo isso enquanto tentava descobrir o que realmente havia acontecido com seu companheiro.

Duas passagens que me marcaram: quando a morte de Rubens Paiva, 25 anos depois, é oficialmente reconhecida e mãe e filho vão juntos ao centro de São Paulo buscar a certidão de óbito. Doze anos depois, em 2008, voltam ao centro velho de São Paulo para que Marcelo passasse a ser o responsável pela mãe, já em estágio avançado da doença. 

"30 de janeiro de 2008. Saímos da estação Liberdade. Fazia sol, mas me lembro do cheiro de que ia chover. Talvez todo paulistano detecte com precisão o cheiro da chuva a caminho. Sente no ar que o mundo pode desabar e tudo vai mudar. Sabe que, se chove, segue-se o caos. E que, por mais que tentemos, a natureza ainda é quem comanda a rotina do maior núcleo urbano da América do Sul."

Mais adiante, entramos na fase da doença de Eunice. Aos poucos, ela começa a esquecer rostos, lugares, palavras. E o título do livro passa a ter ainda mais força: Ainda estou aqui fala da presença insistente da memória, mesmo na ausência de clareza. Há pequenos gestos que revelam isso, como o momento em que ela massageia as mãos de Marcelo para evitar a atrofia, algo que fazia desde o acidente dele. Mesmo confusa, ela ainda estava ali. Lendo essas palavras, não pude deixar de fazer analogias com o Billy, meu cachorro, também diagnosticado com essa doença em sua forma canina. Olhos distantes, já não queria mais os mesmos brinquedos, já não respondia às provocações. Porém, lembro dele me procurando e reagindo diante de um estímulo olfativo, por exemplo.

O livro é tocante. O filme é lindo, muito bem dirigido e atuado. Uma história que merece ser lida e vista. Ambos, super indicados. Porque não falam só de um drama pessoal, mas de uma história coletiva, marcada pela violência do Estado. Mais que isso, mostram que algumas memórias nunca vão se apagar.

"É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego." - Trecho de uma carta escrita por Rubens Paiva aos filhas, quando ainda era deputado



sábado, 18 de janeiro de 2025

chocolate quente às quintas-feiras


"No momento em que se concretiza, o sonho deixa de ser sonho e se torna realidade. Adoro sonhar. Por isso, preciso partir para o próximo sonho!"

Mais um livro na linha de Antes que o café esfrie, estilo literário que vem sendo designado como literatura de cura. Simplificando, é aquela leitura que deixa um quentinho no coração. A narrativa é simples, sempre trazendo dilemas, culpas ou medos.

Em Chocolate quente às quintas-feiras, da autora japonesa Michiko Aoyama, temos doze contos curtos que se entrelaçam por meio dos personagens, que ora são protagonistas, ora coadjuvantes. Entre eles está o da mãe executiva, que delegou todos os cuidados com o filho ao marido e não sabe exatamente quem é a professora da criança nem quais são as atividades que ele realiza, detalhes geralmente atribuídos às mães. É interessante notar como ninguém critica o pai por não saber dessas coisas, enquanto a mãe sempre carrega julgamentos e muita, muita culpa. A situação se agrava quando o marido, antes totalmente dedicado ao lar, decide, literalmente, vender sua arte. Para isso, precisará viajar, deixando a esposa sozinha com o trabalho, as obrigações domésticas e os cuidados com o filho. Ela se vê completamente perdida, especialmente ao precisar fazer uma omelete. E eis que acompanhamos, justamente da imperfeição, surgir a poesia sob o olhar do garoto.

Na sequência, conhecemos a professora mencionada anteriormente, que enfrenta dúvidas sobre permanecer ou não na escola, especialmente devido a eventos que a desafiaram e às broncas recebidas de uma profissional mais velha. É justamente essa professora que protagonizará o próximo conto, durante o encontro com uma amiga que já foi próxima, mas que o tempo acabou afastando. E assim, sucessivamente, vamos conhecendo os personagens até chegarmos à Austrália. As histórias transitam entre Tóquio e Sydney.

O título se refere ao cenário central: o Café Marble, pequeno e aconchegante estabelecimento escondido em Tóquio. É lá que, todas as quintas-feiras, uma jovem entra, senta-se sempre no mesmo lugar e pede sempre a mesma coisa: chocolate quente. E é por ela que o atendente do estabelecimento se apaixona. Mal sabe o rapaz que ele é justamente o motivo que a leva a retornar semanalmente e pedir sempre a mesma bebida.

Não é nada muito profundo, mas cumpre o propósito de entreter e deixar certa inquietação sobre nossas próprias questões, ressaltando como pequenos encontros podem ser o ponto de partida para grandes reflexões e mudanças. Li durante uma semana de férias, entre uma ida e outra à praia. E foi perfeito.

"Basta estar em um lugar de que a gente gosta para recuperar o ânimo. Alguém me ensinou isso."

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

o quebra-nozes, de alexandre dumas


Eu já tinha assistido ao espetáculo de balé com a companhia Cisne Negro, mas nunca havia lido a versão adaptada por Alexandre Dumas. 

Essa versão de O quebra-nozes, escrita em 1844, é uma adaptação da obra de E.T.A. Hoffmann e serviu de base para o famoso balé de Tchaikovsky. A narrativa começa com um homem que chega a uma festa de Natal e se oferece para contar uma história às crianças. A partir daí, somos levados ao universo de dois irmãos: Marie (ou Clara, na adaptação do balé) e Fritz, que esperam ansiosamente pelos presentes de Natal. Eles são ricos, criados com conforto e cercados de brinquedos. Mas o momento mais aguardado é sempre a chegada do padrinho Drosselmeyer, inventor excêntrico que traz presentes únicos e quase mágicos.

Os brinquedos, porém, não são acessíveis. Ficam guardados em armários altos, protegidos por vidro, quase como obras de arte, e não objetos feitos para brincar.

É Marie quem rompe essa barreira. Literalmente. Ao quebrar o vidro para alcançar o Quebra-Nozes, ela atravessa não só o obstáculo físico que a separava dos presentes, mas também o limite entre o mundo real e o imaginário.

O que torna esse gesto ainda mais simbólico é o afeto imediato que ela desenvolve pelo boneco. O Quebra-Nozes não é o mais bonito, nem o mais novo. Está torto, tem dentes grandes e depois acaba quebrado. Ainda assim, é ele que Marie escolhe. Ela o protege, cuida, se emociona. Chega a desalojar uma boneca de sua cama para que o boneco possa repousar. Seu carinho vem de um vínculo mais profundo.

Na mesma noite em que o vidro do armário se rompe, começa a transformação. Os brinquedos ganham vida, o Quebra-Nozes se ergue como líder de um exército e enfrenta uma batalha contra o temido Rei dos Camundongos e suas tropas. Marie participa ativamente da defesa, chegando a jogar seu sapatinho para salvá-lo. No dia seguinte, ela chega a adoecer.

É então que a história se desdobra em outras camadas. Dentro da narrativa que o misterioso contador compartilha com as crianças na festa, Drosselmeyer surge como narrador de outra história: a da princesa Pirlipat, amaldiçoada pela Rainha dos Camundongos e transformada em uma criatura grotesca. Para curá-la, era preciso encontrar uma noz especial e alguém capaz de quebrá-la com os dentes. Quem cumpre essa missão é o próprio sobrinho de Drosselmeyer. Ao fazê-lo, ele mesmo acaba enfeitiçado e se transforma no Quebra-Nozes.

A guerra contra o Rei dos Camundongos, portanto, é consequência direta dessa antiga maldição.

O que se segue é uma viagem pelo Reino dos Doces, pela Terra da Neve e por outros recantos encantados que só existem no mundo dos sonhos. E o padrinho surge como o elo entre esses mundos.

Leitura rápida, cheia de simbologias, que dá vontade de revisitar o balé, a música e o próprio olhar de encantamento, tão natural nas crianças e tão facilmente esquecido por nós, adultos.