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quinta-feira, 13 de agosto de 2015

moby dick

A grande baleia apenas queria seguir seu caminho

Aquelas ilhas rochosas ultrapassadas pelo navio eram refúgio de grande número de focas e provavelmente alguns filhotes que haviam perdido suas mães e algumas mães que haviam perdido seus filhotes deviam ter se aproximado do navio, acompanhando-o durante algum tempo, chorando e soluçando com seu peculiar lamento quase humano.


Em 2014 eu me propus a ler clássicos da literatura mundial. Fiz a lista e resolvi começar por aquele que as pessoas consideravam mais chato. Deu ‘Moby Dick’, de Herman Melville. Claro que não entrevistei centenas de pessoas. Para ser sincera, perguntei para menos de meia dúzia. Mas não deixa de ser referência.

Comprei a versão bilíngue no formato digital e preparei-me para o pior. O livro abre com ‘Etimologias’, que traz os diversos nomes das baleias em todos os oceanos. Bem pesado.

Mas logo vieram as ‘Quimeras’ ou ‘Miragens’ (dependendo da tradução) do marinheiro Ishmael e eu me diverti muito com suas divagações. Fala sobre sua ânsia de novamente estar em um navio. Tanto que está disposto a fazer qualquer coisa, até mesmo trabalho considerado escravo. “Quem não é escravo? Dize-me”, questiona. Ele fala sobre a magia que envolve a água e do desejo do ser humano de estar sempre perto dela. Isso me lembra o trânsito nos feriados prolongados. Para onde todos vão? Para onde? “Coloca esse homem em pé e estimula-o a caminhar e infalivelmente seus pés o levarão à água, se houver água nessa região.” 

Desconsiderando as ‘Etimologias’, digo que esse é o início de livro mais bonito que já li.


“Trate-me por Ishmael. Há alguns anos – não importa quantos ao certo –, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma: sempre que, sem querer, me vejo parado diante das agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro: e, em especial, quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moral muito forte que me impeça de sair à rua e rigorosamente arrancar os chapéus de todas as pessoas – então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar. Esse é o meu substituto para a arma e para as balas. Com garbo filosófico, Catão corre à sua espada; eu embarco discreto num navio. Não há nada de surpreendente nisso. Sem saber, quase todos os homens nutrem, cada um a seu modo, uma vez ou outra, praticamente o mesmo sentimento que tenho pelo oceano.”

Só não gostei dessa colocação: “Esse é o meu substituto para a arma e para as balas
”. Há armas no mar, sim, Ishmael. 

E lá vai ele para seu encontro com as águas. Sua primeira parada é em New Bedford, no estado norte-americano de Massachusetts. Lá se instala numa hospedaria bem ruim. O dono logo avisa que terá que dividir a cama com outro hóspede. Sem ter mais opções, aceita. No recinto percebe que a outra pessoa ainda não havia chegado. Aliviado, dorme. Acorda assustado com uma figura enorme e toda tatuada. É Queequeg, arpoador selvagem da Nova Zelândia, que surge com seus rituais e deixa Ishmael morrendo de medo. Ri horrores quando Queequeg deita com ele como se nada demais estivesse acontecendo. Talvez não estivesse mesmo. Tudo é percepção e cultura, afinal. Ficam amigos e juntos vão para Nantucket, importante porto baleeiro, e conseguem embarcar no Pequod com a promessa de alguns anos em alto mar.

Daí acabam suas passagens e Ishmael passa a ser apenas o observador (e narrador) do que acontece no navio. As atenções são todas voltadas para Ahab, o capitão, e seus três comandantes, Starbuck (daí o nome da famosa franquia de café), Stubb e Flask. Na verdade, o mote do livro é o desejo de Ahab de se vingar da grande baleia Moby Dick, que lhe arrancou uma perna. Mesmo que os tripulantes tenham seus motivos particulares para estarem no Pequod, o que os guiará será o sentimento destruidor de Ahab. 

Durante toda a leitura fiquei curiosa em relação ao nome Moby Dick. A única informação que encontrei foi que sua origem pode ter vindo do artigo Mocha Dick: Or The White Whale of the Pacific: A Leaf from a Manuscript Journal, publicado em 1839 pelo editor de jornais norte-americano Jeremiah Reynolds, relato da captura de um enorme cachalote que afundou vários navios. Moby porque o animal era frequentemente visto perto da Ilha Mocha, no Chile. E Dick por ser nome comum. Mas são especulações.


O livro tem 135 capítulos. A história, embora seja linear, traz diferentes narrativas: pensamentos filosóficos, peças teatrais, passagens da Bíblia, sermões, explicações sobre os produtos extraídos dos cachalotes. Por vezes até nos esquecemos que tudo é sob o ponto de vista de Ishmael, das coisas que viu e ouviu. Algumas partes são bem maçantes, como aquelas em que a anatomia das baleias é detalhada. Senti-me em minhas aulas de biologia no ensino médio, tal a forma com que eram descritas suas estruturas. Ou quando cada equipamento dentro do navio é detalhado: a linha, o arpão, a perna artificial de Ahab e até um caixão (prestem atenção nele).

A obra não foi bem aceita durante seu lançamento. Consideraram a narrativa extravagante. Somente anos depois é que viria a ser considerada importante. Marcou ainda a decadência de Melville, até então um escritor em alta. Faz parte do romantismo norte-americano, mas com o pé no realismo e é baseado na história real de um navio que afundou após ser atingido por uma baleia. Parece que próprio Melville foi marinheiro, o que explica o tom didático de muitas passagens.

Há várias interpretações para esse texto, algumas dizem que o desejo de matar Moby Dick é, na verdade, a revolta contra a sociedade da época, marcada pela escravidão, novos arranjos comerciais e muitos latifúndios. Até análises freudianas tentaram explicar suas entrelinhas. Eu vejo de outra forma. É possível traçar as várias percepções em relação aos animais. Há de tudo: o animal como produto, o animal como selvagem, o animal como criatura de Deus, o animal como interlocutor, como inimigo e como esperança. Houve momentos em que vislumbrei respeito pelos bichos. Mas o antropocentrismo reina, basta considerarmos que Ahab quer matar a baleia porque ela se defendeu quando ele tentava matá-la. Cheguei a lembrar do ‘Velho e o Mar’, de Ernest Hemingway, escrito quase um século depois, que traz temática parecida. Lá Santiago, o velho, sofre demasiadamente com uma pesca. Diz que só consegue a carne do peixe por traição, já que o animal não lhe desejava nenhum mal, o que não o impede de seguir pescando. O mesmo vale para Moby Dick. Que mal a baleia queria ao homem? E mesmo assim, defendendo-se assustada, teve que passar a vida cheia de arpões e linhas espetadas no corpo, resultado das várias empreitadas dos baleeiros enfurecidos e gananciosos. Na vida real, quantos animais não viveram (e vivem) assim? No livro, escrito em 1851, havia a estimativa de mais de 13 mil baleias capturadas por ano somente pelos Estados Unidos. Quantas ainda existem hoje?

Não há tolice dos animais da terra que não seja imensamente excedida pela insanidade dos homens. Agarro-me a essa frase e ao final espetacular para indicar a leitura do livro. Felizmente aquela foi a última viagem do Pequod. Todos, com exceção do narrador, naufragaram junto com o ódio de Ahab. Já Moby Dick, mesmo velha e machucada, continuou a triunfar em seu lar. E é por ela que sempre vou torcer.


A edição que li
Trechos de Moby Dick

"Uma vez mais. Vamos dizer que te encontres no campo, em terras altas cheias de lagos. Toma o caminho que desejares e aposto dez contra um que ele te conduzirá a um vale e te deixará nas proximidades de uma lagoa ou corrente de água. Há magia nesse fato. Permite que o mais distraído dos homens mergulhe em seu mais profundo sonho – coloca esse homem em pé e estimula-o a caminhar e infalivelmente seus pés o levarão à água, se houver água nessa essa região. Se a sede te assaltar no grande deserto americano, caso tua caravana inclua um professor de metafísica tenta essa experiência. Como todos sabem, há uma união perene entre meditação e água."

"E qual o problema, se alguns capitães velhos e avarentos mandam-me pegar uma vassoura e varrer o convés? Se pesada, quanto valerá essa indignidade na balança do Novo Testamento? Será que o Arcanjo Gabriel terá menos consideração por mim porque, pronta e respeitosamente, obedeço a esses velhos avarentos neste caso particular? Quem não é escravo? Dize-me."

"Diante das circunstâncias até pensei em escapar pela janela, porém o quarto era nos fundos do segundo andar. Não sou covarde, mas não sabia o que pensar daquele patife roxo, vendedor de cabeças. A ignorância é mãe do medo, e por me sentir confuso e embaraçado com relação àquele estranho, confesso que agora estava com tanto medo dele como se o diabo em pessoa tivesse entrado no quarto na calada da noite. Na verdade, estava tão amedrontado que não tinha coragem de falar com ele e obter uma resposta satisfatória sobre tudo o que parecia inexplicável em sua pessoa."

"Não se pode esconder a alma."

"As práticas dos baleeiros logo o convenceram que até os cristãos podem ser miseráveis e maus, e muito mais que todos os selvagens governados por seu pai."

"Não faço qualquer objeção à religião de uma pessoa, seja qual for, desde que essa pessoa não mate ou insulte os outros porque não acreditam em sua crença."

"Mas quando um homem suspeita de que há algo errado, certas vezes acontece já estar tão envolvido no assunto que luta para esconder suas suspeitas até de si mesmo."

"Queequeg fez-me compreender que, devido à ausência de cadeiras e sofás, o rei, os chefes e as pessoas importantes tinham o costume de fazer engordar os servos para lhes servirem de assento e para “mobiliar” a casa confortavelmente. Só precisavam comprar oito ou dez preguiçosos e espalhá-los pelas salas e alcovas. Além disso, eram muito cômodos nas excursões. Muito melhores que essas cadeiras de jardim que podem ser convertidas em bengalas." 


"Poder-se-ia comparar o convés escorregadio de um navio baleeiro à repulsiva imundície dos campos de batalha, dos quais tantos soldados retornam para beber sob os aplausos de todas as damas?"

2 comentários:

  1. Para mim, é espectacular, embora algumas versões são melhores do que outros, especialmente se falamos de filmes. Moby Dick é épica, uma história que ilustra grandes cenas, preocupações filosóficas e dualidade que encontra-se em todas as criaturas. A história da grande baleia branca, é um magnífico dramatização do espírito humano em um cenário de natureza primitiva. Actualmente encontro-me ler este clássico, tomar algumas páginas e ele realmente está me cativar. Eu só vi o filme No Coração do Mar do Ron Howard é, e é um espetáculo visual bastante interessante que recebe cenas específicas com força suficiente. Uma grande história, grandes performances, grandes efeitos especiais e cenas de ação enérgicos, mas talvez o script é um pouco dispersos querendo cobrir muitos tópicos, a mensagem final não deixa de ser claro e não consegue mover como deveria.

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  2. Não assisti a nenhum dos filmes, mas depois do seu comentário fiquei com vontade. Muito obrigada :-)

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