Por vários momentos, eu me incomodei com o desenrolar da história. Mas não porque considerei a leitura ruim ou cansativa. Muito pelo contrário. Justamente por ser tão verdadeira e tão próxima das dores que não conseguimos explicar. O incômodo vinha de outro lugar. Era o incômodo de quem está sendo atingida.
A protagonista é professora de escrita criativa, e seu melhor amigo acaba de se suicidar. Ele foi seu maior confidente, sua referência intelectual, o parceiro das conversas sobre literatura e sobre a vida. Foi também um amor antigo, conforme vamos descobrindo aos poucos.
A narrativa é toda dela. O que temos, portanto, é apenas seu ponto de vista sobre as circunstâncias que o levaram à morte e suas consequências, sobretudo para ela.
O amigo morto deixa um cachorro. Um dogue alemão enorme, Apolo. A viúva do suicida, conhecida como Esposa Três, diz que nunca quis o cachorro e que, agora, sozinha, não suportaria a convivência. Apolo havia sido deixado em um canil, onde passava os dias esperando na porta, recusando-se a comer, emitindo um lamento baixo e insistente. “Não se pode explicar a morte para um cachorro”, ela diz. Aos poucos, a narradora descobre o que o amigo falou sobre ela. Sozinha, sem filhos, com horários flexíveis e afeto por animais, parecia, aos olhos dele, a única pessoa capaz de cuidar de Apolo até o fim. Ela mora em um apartamento pequeno, alugado, em um prédio que não aceita animais. Mesmo assim, e sem nunca ter tido um cachorro antes, aceita. Porque entende que não há outra escolha possível. Chama a atenção o fato de que, ao longo de todo o livro, apenas o cachorro tem nome.
Temos, portanto, dois grandes amigos deixados um ao outro, como uma última forma de cuidado mútuo, mesmo depois da partida.
A partir daí, acompanhamos a evolução da convivência entre dois seres devastados pela perda. Apolo ocupa todos os espaços da casa. A dor do cachorro é visível. Está nos olhos, na falta de apetite, no não abanar do rabo. Está no lamento noturno, no estranhamento do toque, na ausência total de alegria. A ela, sobra pouco tempo para lamentações, já que seu esforço é para compreendê-lo. Não com a limitação da nossa linguagem, eu acrescento. É na literatura e na poesia que ela se apoia para conversar com o novo amigo, por quem vê sua afeição crescer a cada dia, a ponto de se dedicar inteiramente a ele, especialmente quando ele começa a apresentar sinais de fragilidade.
A construção do livro é feita por fragmentos, memórias, divagações e muitas referências literárias, em especial às que abordam animais. Sigrid Nunez costura autores e obras com leveza. Desonra, de J. M. Coetzee, é lembrado. A narradora chega a comparar o amigo com o personagem principal desse romance sul-africano. Assim como David Lurie, ele também teve, em vários momentos, uma vida promíscua, envolvendo-se com alunas. Ao mesmo tempo, compartilhava a paixão pela literatura e pelos grandes clássicos.
Ela também cita A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, e My Dog Tulip, de J. R. Ackerley, relato autobiográfico sobre o amor obsessivo e devotado entre um homem e sua cadela. Há ainda referências discretas, mas marcantes, a autores como Sidonie-Gabrielle Colette, Rainer Maria Rilke e Robert Graves.
Nunez percorre também a tradição da literatura juvenil e sentimental sobre animais, em especial cavalos e cães, mencionando obras como Beleza Negra, de Anna Sewell, contada pela perspectiva de um cavalo; Minha amiga Flicka, de Mary O'Hara; Caninos brancos e O chamado selvagem, de Jack London; O belo Joe, de Margaret Marshall Saunders; e O cão chamado Buck, que aparece em múltiplas listas de clássicos. São narrativas em que a sensibilidade e o sofrimento animal têm protagonismo, muitas vezes servindo como crítica moral ao comportamento humano.
Em determinado momento, a narradora recorda um trecho do escritor Robert Graves sobre a Batalha do Somme. Diante da cena de destruição, ele diz: “O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.” A frase reforça que a violência contra os animais nos atinge com outra frequência, talvez porque, como diz a própria narradora, sua capacidade de sofrimento nos escapa, mas também nos interpela de forma mais direta e sem defesas.
E há também a escrita. O amigo, em vida, falava do quanto andar era parte essencial do seu processo criativo. Da importância de caminhar sem rumo pelas ruas da cidade para encontrar o ritmo da frase. Para ele, escrever era também uma questão de batida. Boas frases começam com uma batida. Era a caminhada que preparava essa batida inicial.
Ele se via como um flâneur, termo francês que descreve quem caminha lentamente pela cidade, sem destino certo, apenas observando o mundo e absorvendo o que está ao redor. Mas questionava se uma mulher poderia realmente ser uma flâneuse. Não por falta de ideias, mas pelas interrupções. Porque uma mulher andando sozinha é alvo de olhares, comentários, assobios. A liberdade de andar e se perder, como ele dizia, exige também o privilégio de não precisar estar em alerta o tempo todo. E como se desmanchar no mundo, como se dissolver nos pensamentos, se é preciso estar sempre se protegendo? Queria muito dizer que ele estava errado.
Com o tempo, a narradora percebe que a artrite de Apolo está se agravando. O fim se aproxima. Quando isso acontece, ela consegue uma casa grande emprestada, longe de tudo e de todos. Da varanda, ouve o mar e observa o cachorro deitado na grama. Um enxame de borboletas brancas se move pelo gramado. Ela teme que Apolo possa matá-las com uma mordida. Mas ele não se move. As borboletas pousam sobre ele. E então ela sente o que vai acontecer.
A última frase do romance é um lamento: “Oh, meu amigo, meu amigo.” Mas não há ali um mergulho no vazio. Com Apolo, ela pôde permanecer até o fim. Diferentemente do amigo que partiu sem explicações, o cão esteve presente até o último instante. Há dor, mas foi uma despedida construída com o tempo, cuidado e amor.
“Você anda devagar, cada vez mais devagar — manquejando é o termo que estou evitando aqui. Meu medo é que um dia até cheguemos bem lá, mas você não consiga voltar.”
Ah, sim, virou filme. Ainda estou pensando se vou assistir.
Trechos
“Karenin e Tereza são dedicadas uma à outra. Ao refletir sobre esse vínculo puro e desinteressado, Tereza conclui que tal amor é, se não maior, melhor do que a coisa corrupta, carregada, eternamente decepcionante e comprometida que sempre teve com Tomas.”
“Aonde você estava indo? A nenhum lugar em particular. Sem destino, sem compromisso. Apenas passeando, as mãos nos bolsos, saboreando a rua. Era o que gostava de fazer. Se não posso andar, não posso escrever. Você trabalhava pela manhã e, em determinado momento, o qual sempre chegava, quando você parecia incapaz de escrever uma frase simples, saía e caminhava por quilômetros. Malditos eram os dias em que o mau tempo impedia isso (o que raramente acontecia, pois você não se importava com o frio ou com a chuva, apenas uma tempestade poderia frustrá-lo). Quando voltava, sentava-se novamente para trabalhar, tentando manter o ritmo estabelecido durante a caminhada. E, quanto mais tivesse tido êxito nisso, melhor seria a escrita. Porque tudo tem a ver com ritmo, você disse. Boas frases começam com uma batida. Você postou um ensaio, “Como ser um flâneur”, sobre o costume de passear e andar sem destino na cidade e o lugar que isso ocupa na cultura literária. Recebeu algumas críticas por questionar se realmente poderia haver uma flâneuse. Você não achava possível uma mulher vagar pelas ruas com o mesmo espírito e o mesmo comportamento de um homem. Uma pedestre estava sujeita a interrupções constantes: olhares, comentários, assobios, assédios. A mulher é criada para estar sempre em guarda: Esse cara não está andando muito perto dela? Será que não a está seguindo? Como, então, ela poderia relaxar o suficiente para experimentar a perda do senso do eu, a alegria do puro ser que era o ideal da verdadeira flânerie?”
“Não se pode explicar a morte para um cachorro. Ele não entendia que papai nunca mais voltaria para casa. Esperou na porta dia e noite. Por um tempo ele nem sequer comeu, e eu temia que morresse de fome. Mas a pior parte era que, de vez em quando, ele fazia aquele barulho, aquele uivo ou lamento, ou o que quer que fosse. Não alto, mas estranho, como um fantasma ou alguma outra coisa esquisita. Continuou fazendo isso. Eu tentava distraí-lo com um agrado, mas ele virava a cabeça. Uma vez até rosnou para mim. Ele fazia isso à noite. Eu acordava e não conseguia pegar no sono de novo. Eu ficava lá, ouvindo, até achar que fosse enlouquecer. Toda vez que conseguia me recompor, eu o via esperando perto da porta, ou ele começava a lamentar daquele jeito, e eu desmoronava novamente. Tive que tirá-lo de casa. E, agora que ele se foi, seria cruel trazê-lo de volta. Não consigo imaginá-lo sendo feliz outra vez naquela casa.”
“Na maior parte do tempo, ele me ignora. Poderia muito bem viver sozinho aqui. Faz contato visual às vezes, mas então desvia imediatamente o olhar. Seus grandes olhos castanhos são surpreendentemente humanos; eles me recordam os seus. Lembro-me de uma vez, quando tive que viajar, em que deixei meu gato com um namorado. Ele não gostava muito de gatos, mas depois me falou que foi bom ficar com ele pois, disse, Eu sentia sua falta, e tê-lo por perto era como ter uma parte de você comigo. Ter seu cachorro por perto é como ter uma parte de você comigo. A expressão dele não muda. É a expressão que imagino nos olhos de Greyfriars Bobby nos anos em que permaneceu deitado no túmulo do dono. E ainda não o vi abanar o rabo. (O rabo dele não foi cortado, apenas as orelhas — infelizmente, de maneira desigual, deixando uma menor que a outra. Ele também foi castrado.) Ele sabe que não deve subir na cama.”
“Uma digressão. Sobre o sofrimento animal, o que realmente sabemos? Há evidências de que cães e outros bichos têm maior tolerância à dor do que os seres humanos. Mas sua verdadeira capacidade de sofrimento — como o seu verdadeiro grau de inteligência — deve continuar sendo um mistério. Ackerley acreditava que estar tão envolvido emocionalmente com as pessoas e tentar agradá-las sempre tornava a vida de um cão cronicamente ansiosa e estressada. Mas eles sofriam de dor de cabeça?, ele perguntava, nem mesmo esse tipo de detalhe sobre eles é conhecido. Outra questão: Por que as pessoas muitas vezes acham o sofrimento animal mais difícil de aceitar do que o sofrimento de outros seres humanos? Veja Robert Graves, escrevendo sobre a Batalha do Somme: O número de cavalos e mulas mortos me chocou; estava tudo muito bem com os cadáveres humanos, mas parecia errado que animais fossem arrastados para a guerra assim.”