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sábado, 18 de março de 2017

vidas secas




"... a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam."

Eu não consigo tirar a imagem da Baleia da minha cabeça. Personagem mais viva e expressiva de “Vidas secas”, de Graciliano Ramos. Não posso dizer quais eram as intenções do autor ao dar voz à cachorra, mas somente quem já prestou atenção ao olhar dos animais poderia ter escrito com tamanho realismo seus pensamentos. O capítulo destinado a ela é a passagem mais triste da literatura. Mais que refletir as angústias dos sertanejos diante da seca, ela traz o sofrimento de todos os animais sujeitos aos humores e necessidades dos humanos.

Baleia é a alma dessa obra, que retrata trechos da vida de Fabiano, de sinha Vitória e das duas crianças, o filho mais velho e o menor. Assim mesmo, sem nomes. Havia ainda um sexto membro, o papagaio, que foi sacrificado para aliviar a fome dos ‘donos’.

A história começa com os ‘seis viventes’ atravessando a caatinga a pé. O sol é escaldante. A terra é seca. A fome e a sede castigam a todos. Encontram uma casa vazia e se hospedam. Mas ela tem dono. Pertence ao fazendeiro. Para continuarem lá precisam trabalhar para ele. Automaticamente também adquirem uma dívida. O livro é composto por 13 capítulos mais ou menos interligados. São episódios vividos pela família. Ora sob o ponto de vista de Fabiano, ora de Sinha Vitória, dos meninos e de Baleia, que foi o primeiro a ser escrito. 

Eles não têm praticamente nada. Até as palavras lhe faltam quando tentam expressar algum sentimento. A convivência é silenciosa. Cortada apenas por algum resmungo ou tentativa frustrada de dizer algo. Restam-lhes apenas os sonhos. Sinha Vitória sonha com uma cama de verdade. O filho mais novo quer ser vaqueiro, como o pai. Baleia sonha com um osso grande. O mais velho começa a se interessar pelas palavras e seus significados. E Fabiano sonha com um futuro melhor para os filhos.

Escrito em 1938, “Vidas secas” faz parte do pós-modernismo brasileiro, que trazia denúncias sociais. Aqui vemos, por meio de Fabiano, a opressão exercida pelos patrões, pelo governo, pela polícia e a submissão de homens e mulheres como nossos personagens. Eles até tenta reagir, mas são sempre calados. E tudo é muito mais intensificado por conta da seca. Mas eu acrescento mais uma denúncia: o sofrimento dos animais. Quando a seca do nordeste brasileiro é retratada, sempre aparecem menções aos animais que morrem. Magros. Só pele e osso. Mas eles não aparecem como eles mesmos. Animais e viventes que são. Eles aparecem como a desgraça total do ser humano. Sem água, sem animais, sem comida. 

No livro de Graciliano Ramos há uma exceção: Baleia. Ela faz parte da família. É a mais sensível de todos. Recebe vários pontapés, mas está sempre junto de seus donos. De certa forma, eles também gostam muito dela. Em especial, o garoto mais velho. No entanto, ao menor sinal de perigo, ela é sacrificada. E justamente quando está magra, doente, indefesa. A narrativa mostra a dor do animal, dando a ela características humanas, pois somente assim conseguimos enxergar o quanto sofre. Tudo é tão real que eu não consigo perdoar Fabiano. O que me consola é saber que sua decisão o atormentará para sempre. A partir daí, qualquer coisa faz com que ele se lembre da cachorra, de seus lugares favoritos, de suas peripécias. 

Outros animais padecem na obra. O papagaio que serviu de alimento. As aves de arribação (que na fúria contra o mundo, surgem como o motivo da estiagem), o porco (morto e alvo de impostos), as preás (presas de Baleia e muitas vezes o único alimento do grupo), o bezerro (morto e salgado no momento da segunda fuga da família, que nunca vai deixar de ter esperança em uma real mudança). Mas é Baleia que fala por todos os bichos. O capítulo dedicado a ela, como eu já disse, é dramático. Em seus delírios finais ela pensa na família. E em nenhum momento pensa que fizeram algo ruim contra ela. Deveria ser leitura obrigatória para todos. E gosto, sobretudo, do estilo seco e cortante utilizado por Graciliano. Sem poupar o leitor, mostra o que tem que mostrar. Como a vida é. Como somos. E como os animais são. Interessante observar que enquanto Baleia ganha características humanas, Fabiano torna-se bicho. Quem é melhor, afinal?

“Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme.”

Baleia consola o menino mais velho na versão para o cinema (1963)

Trechos

“E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.”

“Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida. Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente.”

“Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família.”

“A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava essa certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderado. Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem dos ossos. Naquele dia a voz estridente de sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de turco, topou o camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegando, chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil. O pequeno sentou-se , acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morreu no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.”

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