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sábado, 14 de dezembro de 2013

trem noturno para lisboa

Bela cena do filme inspirado no livro. O amor pelos livros move os protagonistas

Raimund Gregorius, ou Mundus, é professor de línguas clássicas em uma universidade na Suíça. Metódico, tem fama de nunca errar. Numa manhã chuvosa está a caminho da aula quando impede que uma mulher salte da ponte de Berna, cidade em que mora. Num ato de desespero, ela anota um número de telefone na testa do professor e pede que ele a deixe acompanhá-lo.

“Português”, diz ao ser questionada sobre qual idioma estava balbuciando. A estranha entra com Mundus na sala sob os olhares perplexos dos alunos. Fica por apenas alguns minutos e sai sem dizer nada. Pronto, é o que bastava para que fosse ele a se jogar da ponte. Não literalmente, porém. A sonoridade do idioma português, com o sotaque lusitano, não sai de sua cabeça. Desnorteado, abandona a aula em silêncio e vai para a livraria buscar livros nesse idioma. Depara-se com “Um ourives das palavras”, de Amadeu Inácio de Almeida Prado, médico português. Em poucas horas, vai descobrindo a nova língua e compreendendo as palavras de Prado. Fascinado com o que lê, vai a Lisboa na mesma noite, no tal “Trem noturno para Lisboa”, em busca de mais informações sobre o autor. Lá fica sabendo que o médico morreu há trinta anos, encontra várias pessoas que conviveram com ele, conhece a bela Lisboa e suas vielas, aprende sobre o regime de Salazar e o quanto o fascismo daquele país prejudicou a vida de muitos, em especial a de Prado.


O livro, repleto de reflexões, alterna a narração da primeira grande aventura de Gregorius – já que ele largou tudo sem dar satisfação a ninguém – com relatos de Prado, sempre em itálico. Ambos buscam encontrar o sentido da vida, algo que os motive a continuar por aqui. Ressentimento, nostalgia, solidão, vontade de aventurar-se e receio da ‘resistência’ dos outros estão bem presentes neles. Assim como o amor pelos livros.

“Trem noturno para Lisboa” foi para as telas. O roteiro cinematográfico difere da obra em que foi baseado em vários aspectos, sobretudo no desfecho. Contam a mesma história, mas o filme parece querer responder algumas perguntas que haviam ficado no ar, além de dar um final mais feliz e ‘resolvido’. Enfim, não deixa de ser bonito e merece ser visto, mesmo com todos os personagens falando em inglês. Mas o livro, de Pascal Mercier, pseudônimo do escritor e filósofo Peter Bieri, é mais completo, mais instigante e precisa ser apreciado no tempo de cada leitor. Sem pressa. Em determinado momento, Gregorius encontra uma moça que costuma pegar o trem mais lento (na Europa há a opção de trens velozes), pois nele é possível desfrutar mais da viagem, e é quando mais gosta de ler. Talvez nos falte esse momento de contemplação absoluta para encontrarmos também o que nos move. E em que ritmo isso deve acontecer.


Trechos do livro

"O 'o', que ela pronunciava surpreendentemente como um 'u', a sonoridade clara, estranhamente abafada do ê e o macio chiado no final soaram-lhe como uma melodia que, para ele, perdurou mais tempo do que na realidade, uma melodia que ele simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto do dia."

"Haveria um mistério sob a superfície da atividade humana? Ou seriam as pessoas exatamente como se revelam através de suas ações explícitas?"

"É um engodo achar que os momentos decisivos de uma vida, em que seus rumos habituais mudam para sempre, sejam necessariamente acompanhados de uma dramaticidade ruidosa e estridente, acompanhada de grandes surtos. (...) Na verdade, a dramaticidade de uma experiência decisiva para a vida é de natureza inacreditavelmente silenciosa."

"Às vezes, temos medo de alguma coisa apenas porque temos medo de outra."

"Havia pessoas que liam e havia as outras. Era fácil distinguir se alguém era leitor ou não. Não havia maior distinção entre as pessoas do que esta."

"Quem sente dores ou medo não pode esperar."

"Dizer alguma coisa para outra pessoa: como podemos esperar que aquilo possa surtir efeito? O fluxo de pensamentos, imagens e sentimentos que passa por nós tem uma força tal que seria um milagre se não inundasse simplesmente todas as palavras que outra pessoa nos diz, relegando-as ao esquecimento, a não ser que coincidentemente, muito coincidentemente, combinem com as nossas próprias palavras."

"Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele próprio conhece?"

"A imaginação, o nosso último santuário."

"Como seria levar uma vida que se proíbe qualquer expectativa ousada e imodesta, uma vida em que somente houvesse expectativas banais, como a espera pelo próximo ônibus?"
"Por que os vestígios do passado me entristessem, mesmo quando são vestígios de alguma coisa alegre?"

"Viver o momento: soa tão certo e tão belo. Mas quanto mais desejo isso, menos percebo o que significa."

"Como seria depois de ler a última frase? Sempre temera a última página, e a partir do meio do livro já o afligia periodicamente o pensamento de que teria de haver irremediavelmente uma última frase."

"Será que tudo o que fazemos é pelo medo que temos da solidão?"

"Eles riram e riram mais e mais, olharam um para o outro e sabiam que também estavam rindo sobre risos passados e sobre o fato de que se ri melhor daquilo que mais importa."

3 comentários:

  1. Um dos melhores livros que tive a oportunidade de ler! As máximas do médico português, Amadeu Prado, ainda permanecem vivas dentro de mim, como a bolinar com minha mente e meu coração. Certamente, o lerei de novo, sem dúvida alguma.

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    Respostas
    1. Onde encontro o livro pra comprar?
      Não consigo encontrá-lo em lugar nenhum!

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    2. Oi, Luisa! Tem na Livraria Cultura. Livro excelente!!

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