“Corre! Segura. Ele está fugindo!”
“Nossa! Ele pulou o portão!”
“Fugiu!”
E lá se foi o cachorrinho preto e todo peludo subindo a rua da sua casa. Atrás dele, minha mãe e eu correndo. O cachorro faz o que mais temíamos: atravessa a avenida. Carros para todos os lados. Ele para e parece ficar à espera das donas. Mas quando nos aproximamos, torna a disparar. “Gugu, volte aqui.” Eu tropeço, ralo o joelho na calçada, mas insisto na busca. O cachorro resolve atravessar a avenida novamente, sem olhar para os lados. Faço o mesmo. Freada brusca. Buzinas e o ziguezague do cão fujão. Até que: “peguei!”
Voltamos para casa com um monte de pelo nos braços. Seguro-o pela barriga, as quatro patas para frente, língua para fora. Tudo isso aconteceu numa manhã. Estava me preparando para ir ao trabalho, quando o cachorro escapou escalando o portão.
Bolinha preta |
A partir daí, essa cena foi constante. Tudo começou em 1995, quando vi na rua o filhote bem pequeno e todo peludo. Parecia uma bolinha de pelúcia preta. Pelo tamanho, passou facilmente pelas grades do portão da residência em que estava. Quando desci do carro para resgatá-lo e chamar os proprietários, um homem se aproximou.
“Seu cachorro está fugindo”, eu disse.
“Na verdade, ele não é meu. Apareceu aqui e eu o deixei no meu quintal.”
“Ah, não é seu.”
“ Não. Você o quer?”
“Quero!”
Pronto. Peguei o cachorro e fui para casa.
“Mãe, venha cá.”
Ela se apaixonou.
“Coitadinho, parece o Boomer”, comentou referindo-se ao cão que ficou conosco por oito anos e que havia morrido um ano antes.
Gugu conhecendo a nova casa |
Na casa já havia a Tuti, de apenas quatro anos. Chorão, passou a dormir dentro de casa, hábito que se perpetuou para sempre.
“Esse cachorro é de raça”, disse o pai. Claro que não era.
Ganhou um nome: Goober. O apelido, Gugu, foi consequência. Além desse também acumulou o de Negão, como era chamado pelo meu irmão.
Suas fugas eram um transtorno. Tanto que o portão ganhou grades que o impediam de pulá-lo. O mesmo valeu para as janelas dos quartos.
Mas todos curtiam vê-lo assim tão serelepe. Confesso que até houve muitos incentivos de nossa parte. Além de saltitar, descobrimos outra paixão do Gugu: a bolinha. Ele vibrava toda vez que ouvia uma bola de tênis batendo no chão. Podia estar onde estivesse que vinha correndo e se posicionava na posição de goleiro. Defendia muito bem. E também driblava que era uma beleza. Meu pai era o mais entusiasmado com essa habilidade canina. Várias bolinhas apareciam em casa e todas, sem exceção, eram “comidas” após os “jogos”.
Foi crescendo e os pelos também. Cobriam toda sua carinha. Não dava nem para ver os olhos. E eles foram ficando cada vez mais embaraçados. Tudo isso levou a uma solução: tosa. Voltou parecendo um rato recém-nascido. Horrível. Quando meu pai o viu, disse, olhando para o cachorro: “o que é isso? Esse não é o Gugu. Pode jogar fora agora.” Acho que ele entendeu, pois se escondeu sob a pia da cozinha, tremendo. “Tadinho”. Mas, como todo cachorro, não guardou mágoas. Nem da tosa, nem do comentário. Pouco depois já estava pulando, correndo, pegando a bolinha e procurando por bichos na parede. Sim, bichos.
Certa vez apareceu uma lagartixa na parede da sala, logo acima do sofá. Eu mostrei para ele: “Gugu, pega o bicho. Olha o bicho.” Ele latia desesperado, querendo, de fato, pegar o animal. Subiu no sofá e de lá deu um pulo tão alto e a engoliu viva. Ainda ouço a bronca que levei do meu irmão. Merecidamente. Pobre, lagartixa. Não era para ter tido esse fim.
Sempre que queria vê-lo pulando de um sofá para outro, eu apontava para a parede, no ponto mais alto, e indicava que havia um bicho: “olha o bicho”. Apontava vários pontos diferentes. O cãozinho corria, latia, rosnava. Pulava em todos os cantos procurando o tal bicho, que na maioria das vezes não existia. Apenas um pouco de diversão. Para mim e para ele. E essa era apenas uma delas - ressalto que nunca mais engoliu lagartixa ou qualquer outro bicho vivo. Havia também o pega-pega. Imagine uma pessoa correndo de uma extremidade a outra da casa com o cachorro? Eu recomendo. Não há mau humor e estresse que resista.
Ele dormia na cama, ou melhor, nas camas. Durante a noite saltava da cama dos meus pais para a minha ou para a dos meus irmãos. E pedia sempre um travesseiro. Afinal, se os donos dormem apoiando a cabeça assim, por que com ele seria diferente? Também gostava de se acomodar nos nossos pés. Durante a noite, acordávamos com um peso nas pernas. Era meigo.
Negão e Fábio |
E os passeios? Esses eram sagrados. Não podia ouvir o tilintar da corrente que saltava, ria (sim, os cães riem), e saia em direção à porta. Adorava passear. E quem o levava sempre ouvia a pergunta “Ele fez tudo?” Acredito que não preciso explicar este trecho.
Gugu sofria com os ouvidos, constantemente estavam machucados e exigiam cuidados especiais. Os muitos pelos eram prejudiciais e nem sempre estávamos tão atentos a isso. Além da tosa, os ouvidos o levaram por muitas vezes até o veterinário. Havia, inclusive, um ritual de limpeza coordenado pela minha irmã. Ele odiava os fogos de artifícios. Finais de campeonato de futebol e festas de fim de ano o irritavam. Escondia-se atrás do sofá, debaixo da cama e em qualquer outro lugar onde pudesse se sentir seguro. Quando ouvia “é gol”, saia correndo.
Minha mãe dizia que ele achava que era “gente”, pois subia na cadeira e, literalmente, sentava-se à mesa. Todavia era educado. Não pegava nada além do que lhe era servido. E sempre com delicadeza e prudência. Cheirava com cautela todos os alimentos antes de ingeri-los.
Os anos foram passando e a idade pesando. Cambaleava. Já não era tão ágil para subir nos móveis. Já havia desistido da cadeira. Até comprei um puff para fazer de escada para ele subir na cama. No começo ele gostou e se adaptou. Mas desistiu. Ganhou um colchão embaixo da cama, onde se refugiava. Tornou-se um velhinho que gostava de se esconder. Já não se incomodava com os gols e com a virada do ano. Os problemas no ouvido resultaram na surdez quando ele tinha 13 anos. Em 2010, teve um AVC. Ficou mal, mas sobreviveu. Na lembrança, ligações perdidas da minha mãe quando ele foi levado de emergência para o veterinário. Contudo, um dos momentos mais felizes da minha vida foi quando o vi bebendo água depois do incidente. Disse “o Gugu está melhor! Está bebendo água.” E ele ficou tão bem que na sequência estava brincando com a bolinha. Sem a mesma agilidade, mas com o mesmo amor.
De gravatinha no dia do meu aniversário, em 2010 |
Apesar de não ser nada tão grave, submeteu-se, pouco antes do AVC, a uma cirurgia para retirada de um tumor benigno nos testículos. Fuçando no meu celular antigo, vejo várias mensagens trocadas com minha irmã: “Vou deixar o Gugu no veterinário. Você o pega na volta?” “Esta semana o Gugu não pode tomar banho, só na outra.” “Tem que comprar um xampu especial para ele.”
Toda atenção era pouca: o cuidado para não molhar a orelha na hora do banho. A preocupação em levá-lo para passear pelo menos uma vez ao dia. E, principalmente, o nervosismo constante por causa da rixa mortal que tinha com o Kiko, cão que chegou cinco anos depois dele. Não dizem que macho não briga com fêmea? Com ele era diferente. Chegou até a ter uma briga feia com a Tuti. Também tinha birra do Oliver, filhote dela, que era carinhoso e sensível. Mas eram briguinhas bobas. Já com o Kiko era extremamente agressivo. Tanto que os mantínhamos muito bem separados. Sufoco. Tensão. Não há outras palavras para definir o medo de os dois se atracarem até a morte. Felizmente, isso não aconteceu.
Comigo em uma das muitas festas de fim de ano |
Porém, ficaram juntos no final. Por muitos dias os levávamos todos os dias para tomar soro. Na maca, de um lado o Goober. Do outro, o Kiko. A Renata, minha irmã, disse que viu ambos darem uma afastadinha. Velhos ranzinzas. Tudo foi feito, mas não aguentaram a idade e a doença. O Gugu se foi num dia, em casa, nos braços da minha mãe. O Kiko, três dias depois, no veterinário. O Carnaval foi silencioso em 2011. Restam as lembranças e a certeza de que ambos nos amaram muito. Saudade de vocês, brigões.
Ainda lembro-me do meu último passeio com o Gugu. Foi numa manhã de sexta-feira. O dia estava ensolarado e muito bonito. Demos uma volta devagar pela rua. Antes disso, ele havia me seguido por toda a casa. Será que queria me dizer algo?
Eu também tive um assim. Vivemos aventuras maravilhosas, até que ele se foi aos 13 anos, em decorrência de problemas cardíacos. Seu nome estará sempre em nossas memórias: Pitter Afonso, um cão que pensava e agia como gente. Parabéns por publicar seus sentimentos!
ResponderExcluirGostei muito da sua narrativa, apesar de não ser exclusividade sua ter um amor especial por um bichinho amoroso como esse, a gente não deixa de se emocionar ao ver um relato desses.
ResponderExcluirSaudades de amiguinhos que se foram só são superadas pelas boas lembranças que eles deixaram.
Linda sua história. Sei exatamente o que sente. Até hoje não absorvi a perda do meu querido e amado Noel. Veja:http://www.saudecompleta.blogspot.com.br/#!http://saudecompleta.blogspot.com/2012/09/noel-dor-da-separacao.html
ResponderExcluirRealmente, ainda sinto muita falta dele. Cachorrinho pra lá de especial :-)
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