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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

na pior em paris e londres

George Orwell, no fim da década de vinte, resolveu experimentar a pobreza européia. De sua aventura surgiu “Na Pior em Paris e Londres”. No melhor estilo do jornalismo literário, ele nos conta os pormenores de suas noites e dias convivendo com os amigos que vai conhecendo ao longo da jornada miserável.

Esqueçam as imagens dos pontos turísticos dessas cidades, aqui somos jogados para os porões sujos de restaurantes e quartos frios de albergues. Um dos meus trechos favoritos é quando o autor compara os restaurantes baratos com os chiques. No primeiro, o cozinheiro tira a comida da panela com uma colher e, sem muito trato, a despeja no prato. Já nos restaurantes sofisticados, a comida é cuidadosamente arrumada, cada alimento combinando com o outro e, sempre que preciso, o chef dá o toque final: lambe os dedos para, com eles, dar a ajeitadinha final. Tudo tem que ficar perfeito.

A penúria do autor e de seus companheiros também é gritante. Não são raras as ocasiões em que eles têm que vender, ou melhor, penhorar a própria roupa para garantir um pedaço de pão que servirá de jantar durante a semana. Apesar das brigas, havia cumplicidade quando a coisa apertava. Dividiam os casacos e as migalhas. Com humor e certa indignação, o texto descreve as dificuldades dos moradores de rua, que não podem ficar mais que duas noites no mesmo albergue – hospedaria para os sem-tetos. Para piorar, quem fosse surpreendido dormindo na rua, seria preso. Que fique claro: a pessoa não podia deitar e dormir nas ruas e bancos. Mas podia sentar-se e “descansar”. É quando alguém teve a ideia de, por uns míseros centavos, estender um varal à frente dos bancos das praças. A pessoa sentava, apoiava os braços na corda e tirava poucos minutos de cochilo dos justos e injustiçados, antes que o suporte fosse brutalmente recolhido.

O mais próximo de trabalho digno que conseguiam era de lavador de pratos em hotéis e restaurantes, ou plongeur, como o autor descreve. Trabalhavam mais de quinze horas por dia. Ao fim do expediente só dava tempo para um rápido drinque, quando havia dinheiro sobrando, e um sono de menos de quatro horas. Logo, estavam de volta ao batente. Orwell chega a dizer que eles eram escravos modernos. Embora sejam assalariados, não eram mais livres do que se tivessem sido comprados e vendidos. Ainda assim, é o que os homens da rua almejavam, pois era a garantia de comida, cigarro e um teto – imundo, porém estável. Uma vez no emprego, logo se acomodavam e ligavam o piloto automático da função: lavar pratos, quebrar pratos, dar uma geral no chão, limpar o suor com o guardanapo, fingir que não vê a sujeira no chão, roubar leite e um pouco de comida, lavar mais pratos.

Sem se prender somente à sua experiência, o escritor jornalista recorre às memórias e aos relatos dos companheiros, como o artista de rua Bozo. Após ser soldado na França e na Índia, conseguiu um bom emprego em Paris como pintor de paredes e ficou noivo de uma garota por quem era apaixonado.  Entretanto, como tudo é trágico para essas pessoas desafortunadas, ela teve sua vida interrompida por um ônibus, que a esmagou. Assim, o pobre – literalmente – pintor ficou sozinho e desiludido. Buscou amparo nas bebidas e, entre uma embriaguês e outra, caiu de um andaime na obra em que trabalhava e teve o pé triturado. Sem emprego e com a insignificante indenização do empregador, passou a morar na rua e a sobreviver com as pinturas nas calçadas. Bozo traçava imagens com giz colorido, as pessoas olhavam, poucas davam moedas e, ao fim do expediente, ele apagava tudo e seguia em busca do próximo lugar para dormir. Era exceção. Não se importava com a pobreza e valorizava seu ofício. “Sou o que eles chamam de grafiteiro sério. Não desenho com giz em quadro-negro, como alguns por aí, uso cores apropriadas, as mesmas dos pintores. São caras para danar, especialmente os vermelhos.”

A higiene, por motivos óbvios, fica em segundo lugar. A relação com mulheres, que são poucas neste ambiente, também é rara e quase não chega a ser desejada. Quem nesta situação vai querer se deparar com uma mulher? E a vergonha e autoestima, afinal? Aliás, o orgulho está impregnado. O livro mostra como difícil, para os mendigos, manifestar gratidão.

O livro é instigante. Você quer saber como eles vão conseguir a próxima refeição. O que eles vão vender desta vez? Detalhe: o volume foi recusado por várias editoras e é o primeiro a trazer o pseudônimo George Orwell, cujo nome verdadeiro é Eric Arthur Blair. Orwell ficou conhecido por "1984", que traz a figura do Grande Irmão (Big Brother), e "Revolução dos Bichos". 

Ao que parece, ele superou o medo e repulsa que sentia pelos mendigos após tornar-se um deles. Talvez essas emoções sejam mais fáceis de serem contornadas que a indiferença e desinteresse, sentimentos que temos em relação aos nossos desabrigados e que fazem deles seres quase que invisíveis.

“A questão que levanto é por que essa vida continua, para que ela serve e quem quer que ela continue, e por quê.”


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