Recitar por noventa e nove vezes, ou uma volta no terço, cada um dos noventa e nove nomes de Alá. Cada dia, um nome diferente. No décimo sexto dia de oração, o nome é Al-Qahhâr, o Dominador. E é neste ponto, “em algum lugar no Afeganistão ou alhures”, que encontramos a mulher que cuida de seu homem.
Ele sobreviveu após levar um tiro na nuca. Era considerado um herói por lutar pelos ideais de seu povo, por uma jihad, que o autor chama de guerra santa. Mas, após ser atingido e ficar inválido, é abandonado pela mãe, pelos irmãos e pelos companheiros. Restam-lhe a mulher e suas duas filhas.
Apenas a respiração, sempre no mesmo ritmo, indica que há vida naquele corpo estático e fraco. Os olhos estão abertos, mas nunca piscam. Não lacrimejam. Cabe à mulher a tarefa de pingar de tempos em tempos duas gotas de colírio em cada um deles. “Uma, duas. Uma, duas”. Cabe a ela, da mesma forma, a missão de manter o soro entrando na medida exata em suas veias, dar-lhe banho e, claro, orar para que ele “volte”, seguindo as orientações do mulá.
Presa no ritual conjugal, a mulher se dispersa e, aos poucos, para de proclamar por noventa e nove vezes cada um dos noventa e nove nomes de Alá. Irrita-se por não ter tido a oportunidade de fugir. Irrita-se porque o homem não se recupera. Irrita-se por ele ainda manter-se vivo. Irrita-se por ele nunca a ter ouvido. Ela conheceu o marido somente três anos após o casamento. Como estava em combate, ele foi representado por uma foto e por seu kandjar (em persa, facão) durante a cerimônia. Foi com esses objetos que ela, verdadeiramente, casou-se. Três anos é, igualmente, o tempo que passaram juntos durante os dez anos em que estão casados. Afinal, sempre preferiu a batalha.
Este é primeiro romance de Atiq Rahimi - afegão que saiu de seu país e se refugiou na França na década de oitenta - escrito em francês. Seus textos, como Terra e Cinzas, trazem a guerra e as lembranças tristes de uma vida que é empurrada e estipulada. A obra foi escrita em memória de uma poetiza afegã assassinada pelo marido e, em 2008, conquistou o Prêmio Goncourt, considerado o mais importante para a literatura francesa. Pode-se dizer que é uma doce vingança feminina contra as opressões de certos homens. Em sua ira, a protagonista dispara na direção do marido, que jaz imóvel na cama como uma pedra, todos os seus segredos: lembranças da infância, ressentimentos, desejos delirantes, pensamentos obscenos. Alguns desses segredos podem, inclusive, ferir a honra de seu homem. Ele torna-se sua syngué sabour. Na cultura persa, é o nome que dão à pedra mágica para a qual podemos contar todos os segredos. Até que chega um momento em que ela explode. Quando isso acontece, a pessoa que fez a confissão fica livre de seus tormentos. Al-Sabour também é o último nome de Deus, o Paciente.
“Isso mesmo, é você, é você minha syngué sabour! Vou lhe dizer tudo, minha syngué sabour, tudo, tudo. Até que eu me liberte dos meus sofrimentos, das minhas infelicidades. Até que você, que você...” Ela não conclui a frase.
Syngué sabour, a pedra-de-paciência é um daqueles raros livros que lemos de uma só vez e que tem um desfecho sem ponto final. Seria tudo uma alucinação de quem por tanto tempo teve que cultivar o silêncio? Ou um grande segredo realmente consegue fazer uma pedra despertar e, em seguida, explodir tudo ao seu redor?
Muito bacana o texto! Na minha opinião,considero que 'um grande segredo realmente consegue fazer uma pedra despertar e, em seguida, explodir tudo ao seu redor', isso ocorre até mesmo no dia a dia! hehe É importante deixarmos sempre nossa opinião sobre todos os assuntos da vida, desde relacionamento até trabalho!
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