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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

relato de um certo oriente

'Relato de um certo oriente', finalizado em 1989, é o primeiro romance de Milton Hatoum. A partir de várias vozes, acompanhamos a construção do passado da - talvez seja possível afirmar - protagonista.

O ponto de partida é a carta que ela escreve ao irmão, que está em Barcelona. Lá ela narra as memórias de personagens que fizeram parte de sua infância em Manaus, cidade que abandonou e a qual regressa após vinte anos. Não sabemos o nome e os motivos de nenhum dos dois.

As lembranças giram em torno daqueles que conviveram com Emilie, imigrante libanesa. Católica fervorosa, ela se casa com um libanês muçulmano que chegou ao Brasil para 'alcançar o desconhecido'. Enquanto a esposa dava festas e colecionava santos, o marido apoiava-se ensimesmado nas palavras do Alcorão. Apesar das diferenças, mantinham-se unidos pelo idioma e pelos costumes do país natal. Mas separados por segredos guardados, literalmente, num baú.

Eles têm quatro filhos: Hakim, Samara Délia e outros dois irmãos, que também não são nominados. A união entre eles não é algo espontâneo. É Samara a resposável pela já anunciada desestruturação desse núcleo. Aos quinze anos, engravida e é confinada num quarto do casarão em que moram. Repudiada, dá à luz Soraya Ângela. Quem sabe por ser a metáfora da ausência de sentido e privações ao seu redor, a menina nasce surda. Na voz de Hakim, temos o mais belo trecho do livro: a descrição do passeio único de mãe e filha. O nascimento de Soraya coincide ainda com a entrada da narradora principal e do seu irmão ao elenco. Um entre muitos mistérios da trama que caberá a cada um de nós decifrar.

Lá pelas tantas, o livro cita irmãos gêmeos a brincar na praça. Cena que imediatamente me remeteu ao segundo livro do escritor brasileiro de ascendência libanesa, 'Dois Irmãos', que também mescla recordações do oriente com desprezo e famílias repartidas no calor da Amazônia brasileira.

"Foi nessa época que elas saíram juntas pela primeira e única vez. Pareciam guiadas pelo medo. Caminharam de mãos dadas, esquivando-se das pessoas, evitando encarar os raros transeuntes que se expunham ao sol ardente do início da tarde. Os vizinhos apareceram nas janelas e Samara Délia se protegia dos olhares inclinando uma sombrinha vermelha que lhe tapava o rosto... As duas caminhavam juntas demais, e uma encurtava os passos para seguir os da outra; do terraço da fachada eu as vi desaparecer, sob um invólucro vermelho que as protegia do sol e as tornava acéfalas."


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