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segunda-feira, 27 de junho de 2011

sobre a televisão

Sob certas condições de Bourdieu

“Não se pode dizer grande coisa na televisão, muito especialmente sobre a televisão.” É assim que, diante das câmeras, Pierre Bourdieu inicia seu discurso contra o meio televisivo em dois programas apresentados, em 1996, com os recursos audiovisuais da Collège de France, da qual foi professor. E da transcrição dessas aulas surgiu “Sobre a Televisão”, livro que se tornou um best-seller e que chegou ao Brasil, em 1997, com tradução de Maria Lúcia Machado a partir da sexta edição francesa.

Aparentemente, não deve ter sido fácil para o sociólogo francês, crítico assíduo da mídia, submeter-se à televisão. Mas ele justifica a aparição no início de seu discurso: “sob certas condições”, somente desta forma um intelectual que se preze pode ir às telas. Bourdieu diz ter aceitado fazer um programa de televisão para falar sobre a televisão porque tinha em suas mãos todo o “domínio dos instrumentos de produção”, e porque tencionava propiciar uma reflexão verdadeira que extrapolasse os campos da faculdade.

Para aparecermos na televisão de uma forma digna, devemos ter algumas exigências: tempo não limitado, não permitir que nenhum assunto nos seja imposto e não deixar que nos ditem regras e técnicas para facilitar a compreensão do público, para preservar a moral e os bons costumes. É o que ele diz ter feito na transmissão pela Collège de France. Apenas cedeu num quesito: a simplificação. Para ser entendido por todos, é preciso recorrer à clareza e foi o que o sociólogo, conhecido por sua intransigente e rigor acadêmico, teve que fazer, mas, em suas palavras, sem perder a autonomia do discurso analítico e crítico.

Nos dois capítulos que compõem o livro, seguidos de dois textos adicionais, a televisão é apresentada como a vilã dos meios de comunicação, que põe em risco à população e todas as esferas da produção cultural, artística, literária, científica, filosófica e até judiciária. Ela expõe ao perigo a vida política e a democracia ao visar, sempre, os altos índices de audiência.

Como sociólogo, Bourdieu se sente na obrigação de mostrar o lado oculto das coisas. Talvez por isso o livro só veja o lado mais perverso da televisão. Ele não tem nenhuma intenção em elucidar os aspectos positivos e sua abrangência, mas apenas enfatizar as manipulações que não estão ao alcance de nossos olhos e da nossa percepção. Afirma que a televisão é dominada por uma censura invisível e que utiliza de vários artifícios para ser considerada um meio democrático e aberto, como o fato de ser “gratuita”. Já nos bastidores, ela impõe os assuntos que deverão ser discutidos pela sociedade e deixa pouco tempo para a reflexão do que está sendo difundido

Bourdieu fala, ainda, de um controle político, sobretudo pelos verdadeiros donos da televisão, em muitos casos as grandes organizações. Isso faz com que certos assuntos sejam proibidos a fim de não ferir a imagem dos reais patrocinadores das emissoras.

Jornalismo: receptáculo de ideias feitas

Embora o livro seja sobre a televisão, o que percebemos é uma crítica voltada, sobretudo, aos telejornais e, mais especificamente, aos jornalistas. O jornalismo é para o sociólogo um depósito de notícias de variedades dentro de uma sociedade em que “o sangue e o sexo, o drama e o crime sempre fizeram vender.” São notícias que elevam o índice de audiência e que distraem: os fatos-ônibus, assuntos de interesse comum, que não envolvem disputa e que geram consenso. Para facilitar a disseminação desses eventos, a televisão apela para a dramatização, exagerando um acontecimento e dando-lhe mais importância do que de fato ele tem, somam-se a isto os estereótipos. Outros assuntos sempre presentes são: esportes (com grande destaque), os rituais políticos, visitas de chefes de Estado, algumas gafes, acidentes e catástrofes naturais. Tudo o que pode instigar a curiosidade e que não exija nenhum conhecimento específico para que possa ser entendido ou questionado. Aliás, são todos assuntos que caem no lugar-comum, onde impera a uniformidade de opiniões e até sentimentos.

Este tipo de informação “é muito importante porque interessa a todo mundo sem ter conseqüências e porque ocupa tempo, tempo que poderia ser empregado para dizer outra coisa. Ora, o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas.” A denúncia é que, por ser a única fonte de informação para um grande número de pessoas, a televisão chega a ser um monopólio e ao preencher a tela com fatos-ônibus impede que o cidadão tenha acesso a dados que poderiam ser essenciais para que eles exerçam seus direitos democráticos.

Mesmo diante do lugar-comum, os jornalistas buscam, ou pensam buscar, o extraordinário, o extra-cotidiano e na ânsia de fazer diferente, de antecipar-se ao jornal concorrente, na eterna perseguição pelo furo de reportagem, acabam por caírem todos na mesma notícia. Como conseqüência, Bourdieu aponta a uniformização e a banalização dos conteúdos disseminados, tornando os produtos jornalísticos homogêneos. Na verdade, o que temos é uma produção coletiva. Cada jornal é pautado nos acontecimentos registrados na edição anterior do concorrente. Os jornalistas não podem deixar de noticiar o que foi noticiado “com sucesso” por seus pares nas outras emissoras e o que já é “sucesso na mídia.”

A crítica é amenizada quando o sociólogo sugere que a manipulação acontece sem que os envolvidos tenham consciência do que estão fazendo. É a “mentalidade-índice-de-audiência”, que atua inconscientemente ao exercer uma forte pressão econômica.  E é neste contexto que o livro aborda a violência simbólica, “que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e, também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”

Com tudo isso, a televisão forma fast-thinkers, ou seja, pessoas que pensam por “ideias feitas” e que são aceitas por todos, como dizia Flaubert. Assim, não há o risco de o receptor não entender a mensagem e a comunicação torna-se mais instantânea e vazia,  um verdadeiro fast food cultural ou “alimento cultural pré-digerido, pré-pensado.” Em outras palavras, a televisão dá opiniões prontas ao telespectador.

O campo jornalístico limita a produção cultural ao “selecionar” o que deve ficar em evidência. É por meio dos jornalistas que somos apresentados aos melhores de cada área: os “dez mais” da literatura, da arte, da medicina, entre outros. O único detalhe é que a escolha não é feita por quem domina profundamente o assunto, mas por quem tem apenas uma vaga idéia do que está sendo ilustrado.

Bourdieu ataca igualmente a utilização de falantes obrigatórios e os debates falsos, montados com dois amigos, mas que na televisão vão simular contratempos e idéias contraditórias. Tudo devidamente controlado e roteirizado para não ferir as regras, as técnicas televisivas, os produtores, as normas do canal, os donos, os anunciantes e todos os outros envolvidos neste jogo de entretenimento. São os “bons clientes”, que podem ser sempre convidados porque nunca "vão criar dificuldades, são conciliadores, dominam a oratória, mas sem causar embaraços.”

Quem influencia quem?

Todavia, a proposta do sociólogo francês é fazer emergir o espírito questionador conclamando os leitores para num esforço coletivo proteger a autonomia contra a influência da televisão, o que só é possível por meio da resistência e cumplicidade daqueles que atuam nos meios científicos e intelectuais. Ressalta que, quanto mais um profissional for reconhecido por seus pares, mais ele tende a resistir a pressões da mídia, ao contrário das pessoas pouco consagradas.

Apesar de terem sido levantados há mais de uma década, os temas ainda são atuais. Mesmo com a proliferação de vídeos caseiros e do YouTube, que permitem a “livre expressão” e o acesso às mais diversas informações pela Internet, a televisão continua sendo o mais abrangente meio de comunicação.

Como bem apontou Bourdieu, mesmo que tenha sido noticiado pelos veículos impressos, ou que tenha mais de 1 milhão de visualizações no YouTube, um fato só terá força após a sua aparição na televisão. Fica a pergunta para os jornalistas, em especial os da impressa escrita: vocês devem seguir este modelo dominante e apático ou vão optar pela diferenciação e questionamento verdadeiro, mesmo que tenham que abrir mão de um dia terem seu próprio “talk show” e consequente estrelato?

A grande ironia, ou fatalidade, é que a morte de Pierre Bourdieu, em 2002, foi seguida por homenagens em jornais, revistas e televisão. Era ele quem estava, desta vez, sob os holofotes da mídia, o principal alvo de seus ataques. Seria outra manobra midiática inconsciente?

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