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domingo, 27 de dezembro de 2020

big tech: a ascensão dos dados e a morte da política






"Quem domina a tecnologia mais avançada
também domina o mundo".


"Big Tech, a ascensão dos dados e a morte da política" traz uma coletânea de textos escritos, desde 2013, pelo pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov. Em todos, fica a mensagem: cuidado com o que os algoritmos podem fazer com sua liberdade.

O autor, que é crítico feroz da forma com que se dá o progresso tecnológico, aponta que a hegemonia das empresas que nasceram no Vale do Silício pode custar a nossa democracia. Sob a falsa promessa de garantir serviços mais baratos e acessíveis, Google, Microsoft, Facebook, Amazon e Apple representam o que o neoliberalismo tem de mais perverso: a competição acima de tudo. Para ele, é o "triunfo da ideologia neoliberal subsequente à Guerra Fria que suprimiu com êxito os aspectos não econômicos da nossa existência social, fazendo com que a identidade de consumidor sobrepujasse a de cidadão." E como dizer não para estratégias que nos oferecem um mundo melhor e mais colaborativo? Diante do cenário que nos é apresentado, fica fácil conquistar adeptos, amantes da marca e pessoas dispostas a fornecer qualquer informação em troca de curtidas, afinal, a causa é nobre e os ganhos parecem ser inúmeros. O que não percebemos é que estamos, sim, sendo manipulados, agindo exatamente de acordo com a expectativas desses impérios. Adorno, um dos maiores pensadores da indústria cultural, há décadas já dizia que somos meros coadjuvantes de um filme que tem como ator principal o lucro, que sob o pretexto de que somos universais, dá a errônea impressão de que as pessoas identificam-se com os produtos culturais. Diferentemente da televisão e do cinema, alvos de suas críticas, agora esse filme é viralizado e em questões de segundo impacta milhares de espectadores, criando uma rede na qual tudo é possível, desde que você abra mão da sua privacidade.

"O mercado está dividido entre cinco grandes empresas de tecnologia: Apple, Google, Facebook, Microsoft e Amazon. E muitas startups têm uma única estratégia de saída e um único modelo de negócio: serem adquiridas por uma dessas grandes empresas. Com isso, elas não precisam se preocupar com a viabilidade de seus modelos de negócio, com a geração de receitas e com a lucratividade: basta conceberem o serviço de tal modo que este seja complementar às estratégias de expansão de gigantes."

Para exemplificar sua afirmação ele cita o Uber, que só nasceu graças ao afrouxamento de leis trabalhistas. Ou o Airbnb, que não existiria sem a política econômica que prevaleceu por décadas incentivando as pessoas a verem imóveis como ativos lucrativos.

"As plataformas digitais ganham dinheiro com a promessa de converter os direitos públicos duramente conquistados – o direito à liberdade de expressão, à segurança, ao transporte – em serviços eficientes, proporcionados pelo setor privado, mas desprovidos de garantias."

Outro grande (falso) atrativo das tecnologias digitais é a construção de uma grande aldeia global, na qual todos estariam conectados e livres para se comunicar sem restrições. O que há, porém, é outro domínio feudal, controlado pelas grandes empresas de tecnologias. Temos e-mail gratuito, mas em troca deixamos disponíveis todos os nossos dados, páginas navegadas pela internet, conexões que fazemos e assuntos de interesse. Tudo isso será convertido em análises e sugestões que nos levarão a comprar mais e mais. É ilusão pensarmos que as intenções são boas e que o objetivo é propiciar uma sociedade na qual todos possam ter os mesmos direitos. Na verdade, cada sensor disponível (nos carros, nos celulares, nos relógios, nos óculos, na geladeira e até na lâmpada da nossa sala) é uma forma de controle. Infelizmente, não nos damos contas disso, pois estamos presos a estes serviços. Eu mesma, enquanto escrevo sobre ensaios que criticam a tecnologia Google, estou aqui utilizando seus recursos, sendo monitorada e recebendo anúncios em minha caixa de e-mail e timeline das redes sociais. Tonta que sou, acabo achando que tudo é para facilitar minha vida. Em vez de pensar no que vou comer no jantar, tenho já na minha frente a opção que, teoricamente, mais me agradaria. É justamente esta submissão que esperam de nós. A igualdade desaparece diante desse novo sistema hierárquico camuflado em expressões como 'redes' e 'reputação'. Quer algo mais neoliberalista?

"O fato de esse novo sistema emergente ser pós-capitalista não significa que não seja também neofeudal, com as grandes empresas de tecnologia desempenhando o papel de novos senhores que controlam quase todos os aspectos de nossa existência e definem os termos do debate político e social mais abrangente."

A distração que nos engana

E aqui é importante destacar outro ponto levantado pelo pesquisador bielorrusso. Muito se fala sobre como as redes sociais nos deixam dispersos e contribuem para sermos, a cada dia, mais preguiçosos. Pode até ser verdade, mas o argumento dele é que a distração que a internet nos provoca é rigorosamente calculada. A cada clique que damos fornecemos informações que vão nos levar a páginas e anúncios que nos amarram até que a compra seja feita. E quando isso acontecer, outros estímulos serão feitos, até que teremos uma fatura do cartão de crédito muito maior que nossos ganhos mensais. Quem assistiu ao documentário "Dilemas da Rede", produzido pela Netflix (ops, outra grande da tecnologia que sabe usar muito bem os dados a seu favor) consegue visualizar como isso acontece atrás das telas. Lá, eles mostram os "engenheiros" trazendo de volta ao mundo virtual um garoto que, num desafio feito pela família, se propôs a ficar desconectado. Bastou uma mensagem extremamente aderente ao que ele queria para que se agarrasse novamente ao aparelho celular. E, desta vez, com muito mais afinco.

"Essa fadiga pode ser explicada como uma consequência natural dos modelos extrativistas de dados adotados pelos provedores das plataformas: são eles que projetaram os sistemas para nos distrair ao máximo, pois é assim que maximizam a quantidade de vezes que clicamos nos sites – e, portanto, fornecemos nossos dados. Eles continuam escavando a nossa psique tal como as empresas de petróleo escavam o solo; e os dados seguem jorrando de nossos reservatórios emocionais."

Claro que isso não é culpa da tecnologia em si, mas do sistema no qual estamos inseridos. Aqui vale resgatar Pierre Dardot e Christian Laval que falam, em “A nova razão do mundo”, sobre a evolução e as transformações que fizeram com que o neoliberalismo se tornasse, mais que um sistema político e econômico, uma racionalidade que permeia nosso modo de viver. Para eles, “os neoliberais opõem-se a qualquer ação que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados”. A lógica aplicada é a da concorrência a qualquer preço. Não importa o que seja feito, o importante é sempre sair na frente, é ser um empreendedor.

"O verdadeiro inimigo não é a tecnologia, mas o atual regime político e econômico – uma combinação selvagem do complexo militar-industrial e dos descontrolados setores banqueiro e publicitário –, que recorre às tecnologias mais recentes para alcançar seus horrendos objetivos (mesmo que lucrativos e eventualmente agradáveis)."

Para Morozov, os cidadãos só terão realmente a soberania sobre a tecnologia quando reconquistarem a soberania política e econômica. Quando deixarem de ser marionetes no jogo do ganha a ganha. O que temos hoje é um ambiente tóxico que não admite vida fora do mercado. Reinam o individualismo e o consumismo.

"A tese deste livro é simples: hoje, toda discussão de tecnologia implica sancionar, muitas vezes involuntariamente, alguns dos aspectos mais perversos da ideologia neoliberal."

As promessas feitas pelas corporações do Vale do Silício, como a missão do Google, de "organizar as informações do mundo para que sejam universalmente acessíveis e úteis para todos", só valem diante desta racionalidade que, acima de tudo, pede menos intervenção do Estado do bem-estar social em prol de um comércio totalmente desregulado, ou melhor, de um comércio baseado em dados e reputação, que passa a ser a lei vigente dentro dessas plataformas.

"A nossa reputação passa a refletir essas mudanças imediatamente. As leis, por outro lado, só são alteradas depois de muito tempo."

Para o autor, a missão do Google deveria trazer sua real intenção, que é “monetizar toda a informação do mundo e torná-la universalmente inacessível e lucrativa”.

"Continuamos a considerar os dados como se fossem uma mercadoria mágica e especial que, sozinha, poderia defender-se contra qualquer gênio maligno que ousasse explorá-la."


Por uma causa social

A tecnologia poderia perfeitamente ser utilizada para diminuir as desigualdades sociais, erradicar a pobreza, acabar com a fome e contribuir para a preservação do meio ambiente. Mas essas questões trazem lucro para essas empresas? Se sim, certamente, serão incluídas no leilão que ocorre a cada navegação que fazemos pelo mundo virtual. Gostei muito da forma com que ele ilustra isso, o que vai ao encontro do meu projeto de doutorado, a defesa dos animais. Imagine que alguém, por meio de reportagens, artigos e outros materiais oferecidos por defensores dos animais, resolva que o melhor caminho é o vegetarianismo. Logo, passará a fazer buscas (no Google) para encontrar pratos, restaurantes, dicas nutricionais e tudo mais para embasar sua nova escolha. E é aí que começam os lances. De um lado, os protetores dos animais. Do outro, a forte indústria da carne. Os algoritmos entram em ação e vão analisando todo o histórico (repleto de vieses) dessa pessoa que, por acaso, já frequentou churrascarias, já teve confraternizações com amigos no qual havia petiscos de origem animal. Por outro lado, ela já esteve diante de imagens de animais sendo abatidos e de estatísticas sobre os malefícios da gordura animal. Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três. Vendido para a indústria da carne. Automaticamente, feeds com esses momentos felizes ao lado de bifes começam a aparecer e adeus vegetarianismo.

"Suponha que você está pensando em virar vegetariano. Então resolve acessar o recurso de Graph Search no Facebook a fim de saber quais são os restaurantes vegetarianos favoritos dos seus amigos que moram nas proximidades. O Facebook entende que você está considerando tomar uma decisão importante que vai afetar diversas indústrias: uma ótima notícia para os produtores de tofu, ainda que péssima para a seção de carnes do supermercado. O Facebook seria tolo se não lucrasse com esse conhecimento, por isso, em tempo real, ele organiza um leilão de anúncios para verificar se a indústria da carne tem mais interesse em você do que a de tofu. É nesse ponto que o seu destino lhe escapa das mãos. Parece besteira até que você entra no supermercado e recebe no celular a notificação de que a seção de carnes está oferecendo descontos de 20%. No dia seguinte, ao passar pela churrascaria local, o celular vibra de novo, com outra oferta de desconto. Entre aqui, aproveite esta oferta! Após uma semana de deliberação – e muitas promoções para consumo de carne –, você decide que talvez seja melhor não virar vegetariano. Caso encerrado."

Venceu quem pagou mais. Lógica neoliberalista. Mas vamos supor que o tofu tivesse mais força, será que teríamos mais vegetarianos no mundo? Lá em 1948, George Orwell escreveu "1984", que mostra uma sociedade monitorada pelo Grande Irmão. De algum modo, ele consegue mudar, conforme sua vontade, até os motivos de uma manifestação nas ruas. Estão todos pedindo churrasco? Agora para tudo porque quero tofu. Numa passe de mágica, os cartazes são mudados, a história reescrita e o tofu passa a ser o protagonista dos pleitos. Distopia? Talvez naquela época. Hoje, essa é a nossa realidade virtual e real. Porque está cada vez mais difícil separar uma da outra.

Voltando ao vegetarianismo, fica fácil aceitar esses argumentos quando eu mesma já presenciei campanhas contra o consumo de carne serem derrubadas por pecuaristas com poder, dinheiro e influências para rebaixar quem quer seja. E, neste sentido, torna-se ainda mais urgente tratar os reais motivos que nos levam ao consumismo desenfreado, provocação feita por Morozov. Enquanto perdurar a nossa inércia e utopismo digital, não vai interessar a ninguém do Vale do Silício criar aplicativos para combater a pobreza ou qualquer outra causa social. Para ele, o Facebook, que tem a proposta de levar internet para todos, está tão interessado na inclusão digital quanto os agiotas se interessam para inclusão financeira, ou seja, apenas pelo dinheiro.

A inovação, religião dos tempos atuais, só pode ser realmente aceita se vier com muito, mas muito lucro. E isso vai se tornando mais grave à medida que este controle invade a educação e a saúde. Na Inglaterra, um acordo do sistema nacional de saúde britânico (NHS) com a Alphabet permite que a inteligência artificial monitore as pessoas, fazendo com que sua contribuição seja maior ou menor de acordo com o seu estilo de vida. A questão é que ao impor essa condição, a IA atua apenas nos efeitos do problema e não na sua causa, neste caso específico nos custos da saúde e não no que leva as pessoas a não se alimentarem corretamente, por exemplo. Com isso, elas podem ser penalizadas sem que a causa raiz seja identificada. Este comportamento pode implicar na dissolução do estado de bem-estar. Enquanto nossas informações são restritas aos governos, ainda temos esperança de que possam estar seguras. À medida que isso é privatizado, passa a valer o quanto se ganha com esses dados, e questões éticas são postas de lado diante da tão falada emancipação que a internet pode proporcionar. Aliás, o objetivo é sempre atuar nos efeitos. Fazendo uma analogia boba: se estiver muito barulho, é mais fácil (e lucrativo) oferecer protetores auriculares, e não se aprofundar no que está por trás dos ruídos ensurdecedores.

"Uma política preocupada em saber as causas antes de corrigir os efeitos pode eventualmente ser uma política de exageros emotivos, levando ao nacionalismo ou a coisas piores. Mesmo assim, ela nos serviu bem até agora, apesar das perdas que sofremos em decorrência de sua ineficiência. A tentação da política baseada na IA é evidente: é barata, limpa e supostamente pós-ideológica."

"No final, acabaremos todos negociando com derivativos que associam o direito de receber determinados serviços médicos em função do nosso comportamento físico. É assim que o condicionamento físico e a saúde corporal vão aos poucos se subordinando ao domínio do dinheiro e das finanças."


"Essa privatização dos cuidados médicos estaria bem alinhada com as tendências gerais de privatização e da ampliação da previdência corporativa (à custa da previdência social) que têm se observado em diversas economias desenvolvidas de ambos os lados do Atlântico."

Ruim, pero no mucho?

Obviamente, nem tudo são pedras. A tecnologia trouxe, sim, inúmeros ganhos. Ela nos mostrou que é possível viver com menos, nos aproximou de pessoas com quem podemos ter afinidades e, consequentemente, iniciar novos negócios, contudo, a crítica é que tudo isso torna-se irrelevante perto do que podemos perder caso o conto de fadas apresentado persista desta forma.

"O conto de fadas do empoderamento, difundido pelo Vale do Silício, não passa disso: um conto de fadas. Ele oculta o fato de que a informação dita gratuita disponível no Google não é igualmente útil para um universitário desempregado ou para um fundo de hedge dissimulado com acesso a tecnologias avançadas que transformam dados em informações financeiras lucrativas."

Em nome do estilo de vida que nos é apresentado como desculpa para aceitarmos as vantagens dessas empresas (compartilhamento de carros, por exemplo), deixamos de perceber a manipulação a qual somos submetidos, pois independentemente de nossas "escolhas", os mais ricos continuarão com seus iates, limusines e jatos particulares. E o mundo continuará a ser poluído pelas grandes indústrias.

Daí chegamos à resiliência, palavra da moda que todas as empresas adoram pregar. Você precisa ser resiliente para lidar com as adversidades, aceitar as mudanças e se adaptar constantemente aos novos cenários. Certo? Errado! Esta foi a forma com que o mundo corporativo encontrou para que o indivíduo não incomode a evolução dos negócios, calando-se e aceitando tudo o que é imposto, o que inclui deixar sua vida totalmente aberta para quem quiser manobrá-la.

"Esse crescente culto da resiliência mascara um reconhecimento tácito de que nenhum projeto coletivo poderia sequer aspirar a controlar as profusas ameaças à existência humana – a única expectativa ao nosso alcance é a de reunirmos condições para enfrentar cada uma dessas ameaças individualmente. “Quando adotam o discurso da resiliência”, comentam Reid e Evans, “os formuladores de políticas o fazem com objetivos explícitos de impedir que os seres humanos concebam o perigo como um fenômeno do qual deveriam se libertar e até mesmo, pelo contrário, o ditam como aquilo a que agora devem se expor”.


A democracia está se afundando nas fake news

Outra ameaça oriunda das tecnologias digitais são as fake news, que podem colocar em xeque a própria democracia. De certo modo, sempre existiram. O que temos hoje é sua rápida proliferação com total apoio das grandes empresas de tecnologia. A lógica é simples, quanto mais cliques, mais monetização. E sabemos que o ódio é muito mais atrativo que o amor, atraindo mais visualizações.

Evgeny Morozov escreveu um prefácio especial para a compilação de seus textos aqui no Brasil, na qual menciona a nossa eleição presidencial de 2018 e como as tecnologias tiveram um papel decisivo no resultado. Robôs, hoje, conseguem disparar mensagens criteriosamente escolhidas para todos os públicos.

E que mal tem em usar dados para ganhar um dinheiro? Aparentemente, se estamos de acordo, nenhum. Porém, temos realmente consciência de tudo o que acontece ao fazermos isso?

"O diabo não usa dados. É muito mais difícil monitorar as injustiças sociais do que a vida cotidiana dos indivíduos submetidos a elas."

Inclusive, as fake news podem ser a superfície de um problema ainda mais grave. Servem para nos distrair das coisas que realmente nos controlam, como os ricos fundos financeiros que incentivam todo esse esquema de dados.

"Será a crise das fake news a causa do colapso da democracia? Ou seria ela só a consequência de um mal-estar mais profundo, estrutural, que está em desenvolvimento há muito tempo? Como é impossível negar a existência de uma crise, a pergunta que toda democracia madura deveria estar se fazendo é se sua causa são mesmo as fake news ou é provocada por algo completamente diferente. Nossas elites não querem saber. Sua narrativa sobre as fake news é, ela mesma, fake: uma explicação superficial para um problema complexo e sistemático, cuja existência elas ainda se recusam a reconhecer."

E assim vamos seguindo dentro deste universo paralelo, que é o virtual. Lá, somos conduzidos de um lado para outro conforme os lucros. Para nós, é vendida a ideia de que somos livres para navegar, que temos diante de nós todo o conhecimento do mundo a apenas alguns cliques e que ganhamos tempo por ter algoritmos que fazem escolhas por nós ou sensores que nos ajudam a iluminar os ambientes escuros sem que tenhamos o esforço de apertar um interruptor. Contudo, somos, na verdade, Truman Burbank, protagonista do filme de 1998, que tinha toda a sua vida monitorada. Aliás, a vida que achava real nada mais era que uma farsa montada para entreter os espectadores de uma rede nacional de TV. No nosso caso, somos ainda menos. Ao invés de protagonistas desse show, somos coadjuvantes de um sistema que espera os nossos cliques para se engrandecer. Nos deixando apenas com a farsa impressão de que temos alguma importância. Somos o último homem narrado por Nietzsche em "Assim falou Zaratustra".

"Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.”

Por uma falsa sensação de comodidade e conforto, entregamos todos os nossos dados sem hesitar. Sequer pensamos que eles podem ter algum valor e o quanto que eles representam para a ascensão dessas empresas. Importante frisar que este crescimento deve-se, sobretudo, à falta de intervenção do governo e à precarização do trabalho. Vejam o Uber e o Ifood, que pouco oferecem aos milhares de motoristas que fazem seus negócios girarem. Sem os custos que poderiam garantir mais segurança, direitos trabalhistas adquiridos a muito custo, voltamos à época em que o extrativismo de petróleo e, indo um pouco mais além, do carvão, proporcionavam à população: estou te dando um emprego e um salário, então, fique satisfeito. Não fosse isso, você estaria passando fome. A diferença aqui é que, ao contrário de outros extrativismos da história, desta vez temos um storytelling. Uma narrativa muito bem contada, embasada em serviços gratuitos, em acesso a tudo o que quisermos (desde que haja um cartão de crédito válido, claro) e melodia constante de que estamos contribuindo para um mundo melhor. Mas, voltando ao extrativismo, continuamos tendo grande concentração de riquezas. Os mais pobres continuam à margem da sociedade sendo alvos de discriminação, mesmo quando são atores essenciais, por exemplo, na entrega dos produtos adquiridos? Enquanto isso se arrastar, Morozov estará certo.

"As empresas do Vale do Silício estão construindo o que chamo de “cerca invisível de arame farpado” ao redor de nossas vidas. Elas nos prometem mais liberdade, mais abertura, mais mobilidade; dizem que podemos circular onde e quando quisermos. Porém, o tipo de emancipação que de fato obtemos é falsa; é a emancipação de um criminoso que foi recém-libertado, mas que ainda está usando uma tornozeleira."

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