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segunda-feira, 23 de junho de 2014

te pego na saída

Este é o segundo volume das memórias de Fabrício Carpinejar. Mais que sua autobiografia, é o retrato da infância de todos aqueles que hoje têm entre 30 e 45 anos. Aliás, acredito que esta seja a proposta do autor. O texto é bem conciso e não segue a linha tempo. São as lembranças que ditam a ordem em que os capítulos estão dispostos. Destaco alguns episódios de ‘Te pego na saída’. Um deles é a doce narrativa sob o título ‘Encadernado pela imaginação’. Ao contrário das outras crianças da escola, ele não tinha cadernos de capa dura. Os seus eram de brochura, cuidadosamente encapados pela mãe, durante a madrugada, na véspera do início das aulas. Envergonhado, cobria-os com a mão para que os demais não os vissem. O que poderia ser motivo de chacota, hoje é poesia. E como não deve ter se sentido a criança que cria grande expectativa em torno de sua primeira festa de aniversário para, no fim, ninguém aparecer? O episódio me remeteu ao protagonista de 'O oceano no fim do caminho', de Neil Gaiman. Outro ponto com o qual me identifiquei foi a história do abacateiro, que morre para dar lugar ao novo quarto da casa. Só quem já teve uma árvore vai entender. Quase fechando suas lembranças, Carpinejar fala sobre os irmãos caçulas: os mais apegados à família e os que estão sempre ali, prontos a ajudar. Talvez por minha irmã mais nova ser assim, fiquei contagiada pelo o que foi colocado.  

Na resenha que escrevi sobre o primeiro livro da série, ‘Não atravesso a rua sozinho’, dou mais detalhes sobre essa coletânea, muito bem chamada de 'Vida em pedaços'. Imperdível para os nostálgicos de plantão.

domingo, 22 de junho de 2014

o xale


"O xale" é a reunião de dois textos da norte-americana Cynthia Ozick: o que deu nome ao livro e 'Rosa'. Eles foram publicados no começo dos anos 80 na revista The New Yorker. Embora tenham sido divulgados em separado, eles se completam. Falam sobre o nazismo, o holocausto dos judeus e a dificuldade de seguir adiante. No primeiro, Rosa, uma jovem mãe, usa seu xale para proteger a filha do inverno polonês. Com a menina no colo e a sobrinha ao lado, segue a fila rumo ao campo de concentração. Em seus delírios, o tecido é mágico, capaz de alimentar a criança. Até que ele é roubado, deixando a menina na mira dos nazistas. Na segunda narrativa, mais de trinta anos se passam e Rosa está nos Estados Unidos, ainda agarrada ao xale, símbolo de sua última esperança, e ao passado que antecede à captura de sua família. 

O tema já rendeu diversos livros e filmes. O que difere os textos de Cynthia Ozick é o depois, muito depois da guerra. Rosa sobreviveu, mas não quer ser vista como alguém que escapou. Porque, para ela, ainda está presa. "Pra mim, só existe um tempo; não existe depois", diz ao fugir de qualquer aproximação e conversa 'fiada' que tenta mostrar que ela precisa esquecer, aproveitar a vida. Difícil ler o livro sem me lembrar das cenas de "A vida é bela", minha referência para o cenário da primeira narrativa. A capa do livro traz o arame farpado que vai mostrar que Rosa pode estar certa. O cárcere é perpétuo, afinal. "Sem uma vida, a pessoa vive onde elas podem. Se tudo que elas têm é pensamentos, é lá que elas vivem."

Trechos

"Rosa não sentia fome; sentia-se leve, não como quem está andando, mas como quem está desmaiada, em transe, sem sentidos, como quem já é uma anjo flutuante, alerta e vendo tudo, mas no ar, sem estar realmente ali, sem tocar a estrada."

"Repare também na palavra especial que eles usaram: sobrevivente. Aquilo era novidade. Desde que que não tivessem que dizer ser humano, para eles estava bom."

sábado, 21 de junho de 2014

misery

'Misery' (1987), de Stephen King, é a companhia perfeita para um dia nublado ou uma noite fria e chuvosa. O enredo é tenebroso, assim como boa parte da obra desse autor best-seller. Posso dizer que não tivesse ele escrito 'O Iluminado', que tenho que revisitar, eu diria que 'Angústia', como o livro chegou ao Brasil, é uma versão suave de 'Jogos Mortais', aquela série cinematográfica no qual as pessoas vão sendo exterminadas aos poucos, mas com alta dose de crueldade. #sóquenão. Além de nos prender com o suspense que gira em torno do sequestro do escritor Paul Sheldon por sua 'fã número um', Annie Wilkes, o livro nos mostra o processo criativo da escrita. Após sofrer um acidente de carro durante uma nevasca, Paul é resgatado por Annie, que logo reconhece o criador de Misery, protagonista de sua série de livros favorita. Leva-o para sua casa, que fica num local escondido no Colorado. Com as pernas esmagadas, é preso na cama e sua dor só é aliviada com o Novril, analgésico potente criado por King. Rapidamente, ele se vicia na droga, que se torna objeto de chantagem: tem que fazer tudo o que Annie quer para ganhar outro comprimido. E sua situação piora quando sua sequestradora termina de ler o último livro com Misery. Lá Paul mata a heroína e enfurece sua fã. Corpulenta, ela espanca o escritor sem se importar que seu corpo já esteja despedaçado. E esse é apenas o começo das agressões físicas e psicológicas que vai sofrer. Daí para frente teremos machado, serra elétrica, cortador de grama, churrasqueira e até espumante. A narrativa é tão viva que sentimos dor junto com ele. Contudo, o pior momento é quando a psicopata, nota máxima no quesito maldade, o faz queimar os manuscritos de seu novo livro que, claro, não traz Misery. Detalhe, eram os originais sem nenhuma outra cópia. E sob a mira do olhar enfurecido de sua algoz, o escritor é obrigado a escrever outro livro, que trará Misery de volta. O que ele não contava é que, mesmo naquele cenário macabro, iria se envolver com a história. Arriscando uma interpretação, eu diria que Annie representa o sofrimento necessário para que uma obra surja. "Para ser um escritor é preciso ter um pouco de talento, mas o único pré-requisito de verdade é a capacidade de lembrar a história de cada cicatriz", diz Paul ao divagar sobre seu ofício, os bloqueios, a êxtase quando a ideia nasce e a euforia com que vai colocando tudo no papel. 'Misery' vale pelo terror, para quem gosta, porém, vale muito mais pela aula que Stephen King nos dá sobre sua forma de conceber os textos. Fica aqui a principal dica: "a preguiça é a mãe de todos os vícios". E seguindo o destino dos best-sellers do autor, o livro foi para o cinema, em 1990, com o título 'Louca obsessão'.

Trecho

“Saíra para comprar um videocassete e voltara para casa com algo muito melhor. Ele tivera uma IDEIA! Tentar TER UMA IDEIA não era um processo tão nobre nem tão sublime — embora fosse tão misterioso e necessário — quanto o outro. Quando se está escrevendo um livro, quase sempre aparece um bloqueio em alguma parte, e não adianta querer ir adiante, a não ser que se tenha uma IDEIA. Quando precisava de alguma IDEIA, Paul geralmente vestia um casaco e saía para um passeio. Para ele, caminhar era um ótimo exercício, embora fosse também tedioso. Se não tivesse que sair em busca de uma IDEIA, Paul levava um livro. Quando não havia com quem conversar durante o passeio, o livro tornava-se uma necessidade. Mas quando era realmente preciso TER UMA IDEIA, o tédio estava para o bloqueio na história como a quimioterapia está para um sujeito canceroso.”

sexta-feira, 20 de junho de 2014

a raposa sombria

Logo nas primeiras páginas de 'A raposa sombria' somos levados ao rigoroso inverno da terra do gelo, a Islândia. E entramos sem pensar, encantados pela beleza da prosa de Sjón. Eu classificaria a história como um conto. Ele não é linear e chega a beirar o fantástico. Talvez sejam os devaneios do frio. Ou da alma gélida, quem sabe. No início, ou meio, como veremos mais para frente, um caçador está diante de uma raríssima raposa do ártico. Esperta, ela conhece todos os truques para se defender, o que inclui brincar com os sentidos do caçador. Com textos curtos, às vezes uma única frase por página, o islandês nos envolve com sua aurora boreal. A raposa surge como o peso do qual o caçador quer se livrar, seus pensamentos indesejados. Em outro ponto da neve, temos um homem que fecha um caixão, enquanto serve chá para um mensageiro. Não vou dizer mais nada para não estragar a beleza da narrativa, sobretudo quando surge a conexão entre essas duas partes. O autor, Sjón, escreveu com Björk e Lars von Trier a trilha de 'Dançando no Escuro', filme que faturou o Oscar de melhor canção em 2001. Aliás, recomendo a leitura com essa trilha tocando. E se puderem ler num dia bem frio, como eu fiz, melhor ainda. Está garantida uma leitura que mexerá muito com você.

Aurora boreal na Islândia