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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

a queda de gigantes



“A classe operária é mais numerosa do que a classe dominante, e mais forte. Eles dependem de nós para tudo. Produzimos a comida que eles comem, construímos as casas em que eles moram e fabricamos as roupas que eles vestem. Sem nós, eles morrem. Não podem fazer nada a menos que a gente deixe. Nunca se esqueça disso.”

Que livro sensacional. Sempre fui fã de histórias que retratam as grandes guerras. E “A queda de gigantes”, do escritor galês Ken Follett, não deixou a desejar. Acompanhamos aqui várias tramas simultâneas, datadas de 1911 até 1924, e sempre ligadas aos fatos da primeira guerra mundial.

Temos o núcleo de galeses, liderados pelos irmãos Ethel e Billy Williams. Os ingleses, comandados pelo Conde Fitz e por sua irmã, Lady Maud. Os alemães, com Walter von Ulrich. Os norte-americanos, com Gus Dewar. E os russos, e mais empolgantes, com os irmãos Grigori e Lev Peshkov. Todas as histórias, de certa forma, interligadas. Personagens reais se misturam com os fictícios, como o rei Jorge V, Winston Churchill, Woodrow Wilson, Kaiser Guilherme, Lênin e Trótski. Romance de tirar o folego. Não conseguia parar de ler. Este é o primeiro volume da trilogia “O século”, que retrata a evolução desses personagens, e seus descendentes, durante todo o século XX. 

Começamos com os trabalhadores das minas de carvão no País de Gales reivindicando melhores condições. Cansados da exploração dos patrões, se rebelam. Do outro lado, a aristocracia não sabe lidar com essas mudanças de pensamento e atitude. O líder é Billy Williams, que começou a trabalhar nas minas assim que completou 13 anos. Aos 16 foi responsável pelo resgate de colegas durante uma explosão. Sua irmã, Ethel, é governanta na casa dos ricos Fitzherberts. Enquanto Conde Fitz vive os luxos que seu título e riqueza proporcionam, sua irmã vai ser uma das embaixadoras dos direitos das mulheres com Ethel, que acaba entrando para a política após a gravidez. E é na casa dos Fitzherberts que jovens influentes em seus respectivos países se reúnem com o rei Jorge V para debater os indícios da iminente guerra. 

Na Rússia os dois irmãos tomam rumos bem diferentes. Eles tiveram uma infância bem complicada. Presenciaram o assassinato dos pais por tropas do czar e vivem em condições precárias tanto no trabalho quanto em casa. Mas enquanto Grigori esforça-se para juntar dinheiro e ir para os Estados Unidos, Lev vive se metendo em encrencas. E em uma dessas acaba roubando o sonho do irmão mais velho e embarca para a América em seu lugar. Para Grigori sobram as trincheiras e um lugar de destaque na Revolução Russa.

Enquanto isso, Walter von Ulrich apaixona-se por Lady Maud justamente quando Inglaterra e Alemanha estão em lados opostos. O namoro proibido dá o tom romântico ao texto. 

Nos Estados Unidos, o jovem assessor do presidente Gus Dewar também vive algumas desilusões amorosas. Mas trava interessantes debates políticos com uma amiga jornalista e com o presidente Wilson.

Com exceção do Conde Fitz e Lev, os demais personagens são propensos a lutar por boas causas. Interessante ver que há consenso em relação à guerra. Em determinado momento todos se perguntam o que estão fazendo ali, lutando contra inimigos que desconhecem e por causas que não são tão relevantes. “Já não conseguia se lembrar dos motivos, antes tão claros para ele, que haviam levado a Grã-Bretanha a entrar em guerra”, pensa Conde Fitz.

“O homem era o único animal que matava seus semelhantes aos milhões e que transformava a natureza em um deserto de crateras de arame”, traz outra reflexão, desta vez de Walter.

Aliás, os trechos que descrevem as batalhas nas trincheiras são bem tensos e muito bem escritos. Conseguimos ter uma boa visão do que era estar ali e das decisões rápidas que precisavam ser tomadas. Além das mortes e de como a pessoa se tornava apenas mais um corpo estirado no chão, já que o batalhão precisava seguir adiante. “Depois da experiência do campo de batalha, seria difícil levar a sério algumas das preocupações que as pessoas tinham em tempos de paz”. E é isso que fica após a leitura, super recomendada e que mostra como basta a insensatez de alguns e a conivência de outros para derrubar potências
e gigantes.

Como se não bastasse tantas mortes, os homens também envolveram os cães e
outros animais na guerra. Na foto, um cão mensageiro saltando por uma
 trincheira alemã. Fonte: Incrível História

Trechos

“O partido trabalhista não clama pela revolução. Nós já vimos a revolução na prática em outros países, e ela não funciona. Mas nós clamamos por mudança. Uma mudança séria, profunda, radical.”

“Os homens gostavam de inventar um conto de fadas no qual havia uma divisão de trabalho na família: enquanto o homem saía para ganhar dinheiro, a mulher cuidava da casa e das crianças. A realidade não era bem assim. A maioria das mulheres que Ethel conhecia trabalhava 12 horas por dia, além de cuidar da casa e das crianças. Malnutridas, sobrecarregadas, morando em barracos e vestindo trapos, elas ainda assim entoavam canções, riam e amavam seus filhos. Para Ethel, uma única mulher dessas tinha mais direito de votar do que 10 homens juntos.”

“Para Lênin, relaxar significava passar uma ou duas horas debruçado sobre um dicionário de língua estrangeira.”

“Era famoso por suas reuniões em que ninguém podia se sentar: segundo ele, as pessoas decidem mais rápido assim.”

 “Ele decidiu que era melhor relatar a situação a um superior e transferir o problema para outra pessoa.”

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

a irmã da pérola




“Sonhava com as noites frias e enevoadas de casa.”

E lá fui eu de mais um livro de Lucinda Riley. Foi o que menos gostei. O que aprecio em seu texto é justamente o ambiente frio e acolhedor. A névoa das paisagens que ela descreve e o friozinho que me faz sentir, mesmo que em pensamento. O que foi impossível com “A irmã da pérola”, quarto volume da série “As sete irmãs”. Nele, temos a história de Ceci. Já a achava meio sem graça antes. Conhecer seu ponto de vista só aumentou minha aversão pela personagem. Para piorar, ela vai para o lugar mais quente da Austrália. Até agora estou sentindo calor.

Essa série fala de seis irmãs suíças que são adotadas por Pa Salt, homem misterioso até mesmo para elas. Embora tenha sido próximo das filhas, ninguém sabe o que faz e como conquistou sua fortuna. Quando morre, deixa uma pista para cada uma delas dizendo de onde vieram. A primeira foi adotada no Rio de Janeiro (outro lugar quente, mas parte dos fatos acontecem na França). A segunda veio da Noruega. A terceira, do interior inglês. Em posse de suas coordenadas, todas partem para descobrir suas origens. A sétima é uma incógnita. Não faz (ainda) parte do time. Vale comentar que todas levam nome de estrelas da Constelação das Plêiades.

Ceci, a quarta irmã, vai para os recantos australianos. Lá descobre que tem sangue aborígene e nos seus ancestrais descobre o amor pela a arte, o que justifica suas próprias aptidões. Não me convenci nem um pouco. Ceci era grudada em Estrela, a terceira irmã. Quando esta parte para a Inglaterra em busca de seu passado, fica completamente desorientada. Proximidade que fazia mal a ambas. A separação permite que Ceci entre em contato com outras pessoas e que encontre outro motivo para viver. Antes de partir para a Austrália, faz uma parada na Indonésia e acaba se envolvendo com um fugitivo. Caso totalmente desnecessário no contexto. Ai, Lucinda! Andou pisando na bola. Na Austrália, ela se depara com relatos sobre seus antepassados: Kitty McBride e os gêmeos Drummond e Andrew. Ela veio da fria Escócia, e a todo momento parece sentir falta do frescor de seu país.
“Enquanto escrevia uma carta para a família, quase podia sentir o ar nebuloso e gelado, e visualizar a enorme árvore de Natal na Princess Street, enfeitada com minúsculas luzes que balançavam e dançavam com a brisa”. Eles vieram da Alemanha. Todos em busca de oportunidades no novo mundo. Kitty veio como dama de companhia da tia dos irmãos, já muito bem estabelecidos e donos de vários negócios, dentre eles o de pérolas. Até que foi gostoso acompanhar a história deles. Mas isso não chegou a salvar o livro. Com exceção de um trecho ou outro, fiquei bem decepcionada. Uma pena.

Trechos


“Kitty voltou ao convés, fascinada com o gado que ainda estava sendo desembarcado. Os animais pareciam magros e desnorteados enquanto desciam aos tropeços pela prancha. – Tão longe dos campos verdes e frescos de casa – sussurrou para si mesma.”

“Tudo está planejado antes mesmo de respirarmos pela primeira vez.”

“Então pensei que não era nunca dos grandes momentos que eu me lembrava; eram sempre as pequenas coisas, escolhidas aleatoriamente por alguma alquimia estranha, que ficavam no meu álbum de fotografias mental.”

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

a lista dos meus desejos


Jocelyne está com quase cinquenta anos. Tem dois filhos e é casada com Jocelyn. Havia uma chance em um milhão de ela se casar com alguém que tinha a versão masculina do seu nome. E isso aconteceu. Temos, assim, o casal Jo e Jo no romance “A lista dos meus desejos”, do francês Grégoire Delacourt. A vida do casal é simples. Eu diria que morna. Sem sal. Mas vão tocando. Ela é uma pessoa com baixa autoestima. Se acha feia e sem atrativos. Tem um armarinho e, contrariando todas suas expectativas, fica famosa nas redes sociais com um blog sobre tricôs, o “dedosdeouro”. Outra vez uma chance em um milhão do sucesso ter acontecido. É cercada por bons amigos, entre eles duas irmãs gêmeas que estão sempre apostando a sorte na loteria. Por influência delas, Jocelyne acaba jogando uma única vez. E ganha! A partir daí tem que lidar com o dilema que surge: como trocar seus dias tranquilos pelas mudanças que o dinheiro pode trazer? Pensa nos filhos. O rapaz ambicioso. A filha mais ligada em artes e movimentos sociais. Pensa no marido e nos poucos e bons momentos que têm juntos. Enquanto isso, os dias passam e ela não desconta o cheque de dezoito milhões deu euros. Até que é surpreendida por algo que vai machucá-la profundamente. E que vai nos dar muita raiva. Leitura previsível que vai tentar nos dar uma lição de moral. Bem ou mal, até que gostei. Será que eu também hesitaria em sacar o dinheiro? Hmm, sei não ;-)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

anexos



Anexos, da norte-americana Rainbow Rowell, foi escrito em 2011, mas se passa entre 1999 e 2000. Pega justamente a época do bug do milênio. Quem se lembra? Y2K, problema previsto para acontecer em todos os sistemas informatizados do mundo. Isso mobilizou praticamente todos os profissionais de TI. No fim, nada aconteceu. O enredo é bem interessante, apesar de bobo. Isso mesmo, não nos deixa nenhuma reflexão. Não ‘agrega valor’, como as ‘pessoas de negócios’ gostam de dizer (aliás, odeio este termo, apenas o citei aqui para reforçar todo o desprezo que tenho por ele. Rá!). Enfim, ainda sim, a leitura é divertida. Principalmente pelo formato do livro. Boa parte são trocas de e-mails entre duas amigas, Beth e Jeniffer, que trabalham na redação de um jornal. Elas são hilárias. Tudo começa com a presença no útero que uma delas diz estar sentindo. Apenas para exemplificar o nível das conversas, aspectos do dia a dia contatos com bom humor. E todo o bate-papo é acompanhado por Lincoln, o rapaz da segurança da informação. Toda empresa tem o seu Lincoln. Eles são responsáveis por vigiar os e-mails e garantir que nenhuma mensagem com teor proibido circule pelo ambiente empresarial. E lá está ele trabalhando durante a madrugada, período mais propício para exercer sua atividade, quando se depara com as mensagens das duas. Todas contendo as palavras da lista negra. O que ele faz? Nada. Fica curioso para saber os desfechos das histórias e não manda o sinal de alerta que deveria ter mandado. O interesse vai aumentando cada vez mais até que, quando percebe, está apaixonado por uma delas. O mais engraçado é que ele passa a ser assunto das discussões das duas. Final bonitinho, esperado. Sessão da tarde. Leitura rápida, ideal para uma ponte aérea, por exemplo.


“O prédio não fica completamente vazio, disse ele. Tem gente trabalhando na redação.

Você conversa com eles?

Não, leio seus e-mails.”

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

chá de sumiço


“Não é a situação ideal. Mas precisamos fazer
o melhor com as coisas que temos.”

E eis que leio mais um livro da irlandesa Marian Keyes, minha escritora chick-lit preferida. Mais um da hilária família Walsh. Os livros dessa autora são divertidos, nos deixam de bom humor e são ótimos para os momentos em que estamos para baixo. Eu costumo recomendar “Melancia”, o primeiro dela que li, para quem sofre de dores de amor. Aqui temos Helen Walsh, a caçula. Como nas histórias de todas as outras irmãs, a sua não começa muito bem. Detetive particular sem nenhum trabalho, acabou de perder o apartamento e teve que voltar para a casa dos pais. Tem um namorado lindo, mas com três filhos - um que a odeia - e uma ex-mulher que está sempre por perto. No meio de tudo, surge seu ex-namorado, com quem teve um caso mal resolvido, e lhe oferece um caso: investigar o sumiço de um cantor de um banda que fez sucesso no passado e que está prestes a fazer um show nostálgico. Como o cara sumiu, os outros membros estão desesperados porque essa é a única chance que eles têm para resolver seus próprios problemas pessoais. Helen aceita, mas durante suas investigações têm que lidar com uma crise de depressão. Em muitos momentos, tudo o que ela quer é sumir do mapa também. Guardada as devidas proporções, alguns trechos me lembraram “A redoma de vidro”, de Sylvia Plath. A mesma angústia da personagem lá, aqui estão reproduzidas. Claro que com o toque de humor peculiar à Marian. Chorei de rir com as divagações da nossa heroína narradora. A autora aproveita para ironizar, e ridicularizar, as bandas adolescentes. Do sucesso no passado para a decadência de seus integrantes no presente. Mesmo desengonçados e fora de forma, tentando fazer os passinhos ensaiados e usando as roupinhas que os destacaram. Fiquei imaginado como estão hoje os ‘meninos’ de bandas como New Kids on The Block, Menudos, Backstreet Boys. Pensando bem, não me interessa. Por outro lado, quero muito ler os outros livros da família Walsh. Sem contar, que dá para viajar para Irlanda com essas leituras :-)

“Há sempre um fundo de verdade em tudo o que as pessoas dizem, mesmo que elas não saibam disso.”

“Vou ter todo o tempo do mundo para cozinhar depois de morrer” (esta frase me representa)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

nossas noites


"Resolvi que não vou ficar preocupado
com o que as pessoas pensam."


Terminei de "Nossas noites", de Kent Haruf já faz um tempo. Mas só agora consegui escrever sobre ele. É lindo. Leitura fofa que traz o amor na velhice. Addie tem 70 anos e um dia vai até a casa de seu vizinho, Louis, que tem a mesma idade, com um convite: "o que você acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?" O velhinho, que não é tão velhinho assim, se assusta com a ousadia da mulher. Ela se adianta e diz que não é nada sobre sexo e tal. Apenas sente-se sozinha. “Estou falando de ter uma companhia para atravessar a noite, para esquentar a cama. De nós nos deitarmos na cama juntos e você ficar para passar a noite. As noites são a pior parte. Você não acha?”

Louis fica tenso. Nem sabe direito o que dizer da proposta da vizinha que, embora conheça há anos, quase não teve contato.

Addie vai embora dizendo que as portas estarão abertas caso ele aceite. A noite chega e, ainda em transe, ele se arruma, separa uma muda de roupa e vai. “Cortou as unhas das mãos e dos pés e, quando escureceu, saiu pela porta dos fundos e foi caminhando pela viela atrás das casas, carregando um saco de papel com seu pijama e sua escova de dentes.”

A partir daí acompanhamos a rotina do casal recém formado. Eles fazem coisas simples, como andar pela cidade, ir ao mercado. Vez ou outra vão ao teatro ou fazem uma viagem rápida até a cidade mais próxima. E, principalmente, conversam. Falam sobre tudo. Sabe quando vemos alguma coisa interessante e queremos logo comentar com quem gostamos? Pois a relação entre eles permite ter esse alguém. Junta-se a eles o neto de seis anos de Addie. A esposa de seu filho saiu de casa e ele tem que deixar a criança com a avó para poder trabalhar. A narrativa é tão gostosa que é como se nós estivéssemos fazendo todos os passeios, piqueniques e tendo as mesmas pequenas aventuras. Mas, em paralelo, terão que lidar com preconceitos e críticas. Eu acreditava que o fim seria meio piegas, mas não. Mostra que ainda temos um longo caminho a percorrer até que possamos ser, de fato, felizes. “É uma coisa nova, não é?, disse ela. Mas é um tipo bom de coisa nova, eu acho.”

A Netflix já anunciou o filme baseado no livro. Vejam o trailer

domingo, 18 de junho de 2017

a redoma de vidro




“Você nunca se decepciona quando não espera nada de alguém.”

O livro é narrado pela protagonista, Esther Greenwood. Ela tem dezenove anos e sofre de depressão. Só que ainda não sabe. Apesar de estudar em uma boa universidade e estar em Nova York para um estágio em uma famosa revista de moda, ela não vê sentido em praticamente nada. Tudo e todos a aborrece. Ao mesmo tempo ela é extremamente exigente com o trabalho e com os estudos. Ela teme o fracasso. Mas tanta cobrança a consome até que sucumbe. 


Na última semana em Nova York já dá fortes sinais de que não está bem. Após ser quase violentada durante uma das inúmeras festas que tem que ir, ela vai até o terraço do hotel em que está hospedada e joga pelos ares tudo o que tem, incluindo os vários presentes que ganhou da revista. Volta para casa apenas com uma sacola cheia de abacates.

Em casa, ela se tranca em sua redoma de vidro. A doença avança e ela é levada a um psiquiatra. Entre uma consulta e outra, ela vaga sem rumo por sua pequena cidade. Ela só quer dormir e nunca mais acordar. É fácil nos identificarmos com a protagonista. A narrativa é tão precisa que nos transporta para dentro de Esther. É como se nós estivéssemos passando pelas mesmas angústias. E a forma com que a doença se desenvolve é tão sutil que só nos damos conta quando o suicídio começa a ser a única solução. Antes disso, ela é apenas uma garota que não se conforma com as máscaras da sociedade. Alguém que não se encaixa ao modismo e que acredita que as pessoas são tolas e superficiais. Há algo, porém, que faz com que essa percepção, digamos não errada do mundo, seja insuportável a ponto de ela não conseguir lidar com mais ninguém.

Esse é o único romance de Sylvia Plath e é considerado autobiográfico. A poeta suicidou-se aos trinta anos, poucos meses após concluí-lo. Com certeza, deixou várias pistas que não foram interpretadas.
 

Trechos

“Resolvi tomar um banho quente de banheira. Deve haver um bocado de coisas que um banho quente não cura, mas não conheço muitas delas. Sempre que fico triste pensando se um dia eu vou morrer, ou perco o sono de tão nervosa, ou estou apaixonada por alguém que não verei por uma semana, me deixo sofrer até certo ponto e então digo: ‘vou tomar um banho quente.’”

“La estava eu outra vez, construindo a fantasia glamourosa de um homem que se apaixonaria por mim no instante em que me visse, tudo isso baseada em praticamente nada.”

“Eu poderia ter chamado o serviço de quarto, mas aí teria que dar gorjeta ao funcionário, e eu nunca sabia quanto dar. Eu tivera experiência bastante desagradável tentando dar gorjeta a pessoas em Nova York.”

“Odeio dar dinheiro para as pessoas fazerem o que eu poderia estar fazendo com facilidade. Me deixa nervosa.”

“Comecei a enumerar as coisas que eu não sabia fazer.”

“O problema é que eu sempre fora inadequada, só não tinha pensado nisso ainda.”

“Era o dia seguinte de Natal e um céu cinza debruçava-se sobre nós, abarrotado de neve. Eu me sentia estufada, apática e desiludida, como sempre me sinto depois do Natal.”

“A mãe do bebê sorria sem parar, segurando aquele bebê nos braços como se fosse a primeira maravilha do mundo. Fiquei encarando a mãe e o bebê em busca de uma pista que explicasse sua satisfação mútua, mas, antes de ter chegado a alguma conclusão, o médico me mandou entrar.”

“Odeio falar para grupos de pessoas. Normalmente escolho uma pessoa e me foco nela, mas aí fico achando que os outros estão me encarando e se sentindo excluídos. Também odeio gente que pergunta como você está e, mesmo sabendo que você está na pior, espera que você responda ‘tudo bem’”.

“Não teria feito a menor diferença se ela tivesse me dado uma passagem para a Europa ou um cruzeiro ao redor do mundo, porque onde quer que eu estivesse – fosse o convés de um navio, um café parisiense ou Bangcoc -, estaria sempre sob a mesma redoma de vidro, sendo lentamente cozida em meu próprio ar viciado.”

quarta-feira, 3 de maio de 2017

uma semana de inverno


Que leitura mais agradável. Simplesmente devorei "Uma semana de inverno", de Maeve Binchy. Quando o comprei não sabia nada sobre ele nem sobre a autora. Foi o título, a partir de recomendação da loja virtual (olhe só como me conhecem) que me convenceu. Amo inverno e o aconchego que ele proporciona. Adoro sentir o vento gelado no rosto durante uma caminhada e ficar sob edredons com uma xícara de chá quente e um bom livro. Coincidentemente, exatamente na semana em que estava com ele, fez frio em São Paulo. Então, pude realmente entrar na história.

É um romance com cara de livro de contos e tramas que se cruzam. São 11 capítulos, cada um dedicado a um personagem. No primeiro, conhecemos Chick Starr. Muito jovem, ela saiu da costa oeste da Irlanda para seguir os passos de um norte-americano por quem se apaixonou. O que era para ser um conto de fadas torna-se pesadelo quando, dois meses depois, ele a abandona em Nova York. Com vergonha da família e amigos que pensam que ela está vivendo um grande amor, ela se isola e mente. Passa a escrever contando a boa vida que leva do outro lado do oceano. Tempos depois, passa a visitar sua cidade natal anualmente. Sempre mantendo sua versão fictícia dos fatos. Até o dia em que sua sobrinha pede para visitá-la, o que seria o fim das aparências. Após inventar outra grande mentira, ela retorna definitivamente para a Irlanda. É quando as coisas começam a funcionar e sua vida passa a ser verdadeira. Ela aceita o desafio de transformar um casarão antigo no topo do penhasco, a Casa da Pedra, em hotel. Começam os trabalhos para fazer tudo funcionar, mesmo quando todos acham a ideia maluca.

Os demais capítulos vão mostrar os 'funcionários' do hotel, os primeiros hóspedes e o caminho que percorreram até chegar ali. Sem que nenhum deles tivesse planejado tal destino. Conhecemos a divertida Srta. Queenie, a dona do casarão. Rigger, rapaz que auxilia na restauração da casa. Orla, a esperta sobrinha, que também vai dar uma mão para a tia na cozinha.

O primeiro grupo de hóspedes tem Winnie, que se vê obrigada a passar as férias com a provável futura sogra. John, um astro de cinema que resiste a assinar contrato com a TV. Henry e Nicola, casal de médicos que passaram uma temporada trabalhando em navios de cruzeiro. Anders, executivo sueco, herdeiro de uma grande empresa, que não combina com o mundo dos negócios. Os Wall, casal viciado em concursos de revistas e jornais. Srta. Nell Howe, diretora ranzinza de uma escola em Londres que acabou de se aposentar. Freda, bibliotecária que se apaixona perdidamente por um homem casado e que deixa de lado seus próprios interesses. Há ainda Gloria, gatinha adotada pelos habitantes da casa que transita por todos os lugares.

Tudo acontece ao mesmo tempo. Ou seja, temos as impressões de cada um dos personagens sobre o hotel, seus hóspedes e localização, o que nos fará ler mais de uma vez o mesmo acontecimento, mas sob outra perspectiva. Como eu disse, cada capítulo fala sobre a vida inteira da pessoa (ou casal em dois casos). Tudo, porém, é contado de forma sucinta. A autora consegue colocar em apenas poucas linhas a retrospectiva de anos. Isso torna a leitura rápida e com gostinho de quero mais. Confesso que fiquei morrendo de vontade de me hospedar na Casa da Pedra, com seu café da manhã, seus itinerários para caminhadas, sua vista e, principalmente, hóspedes e funcionários que não vão lhe questionar ou julgar.


"Quando se age com boas maneiras,
os outros agem assim com você também."


Costa Oeste da Irlanda, cenário do livro

segunda-feira, 1 de maio de 2017

a irmã da sombra



Já estou com saudades dos personagens de "A irmã da sombra", terceiro livro da série "As sete irmãs", de Lucinda Riley.

Apenas para relembrar, são seis irmãs (a sétima ainda é um mistério) que foram adotadas em diversas partes do mundo. Seus nomes fazem referência à Constelação das Plêiades. O pai, que ninguém sabe ao certo de onde veio ou o que fazia, morre e deixa pistas a cada uma delas sobre suas origens biológicas. No primeiro livro, Maia desembarca no Brasil e acompanhamos a criação da estátua do Cristo Redentor entre 1922 e 1931. No segundo, Ally vai até a Noruega, com seus fiordes e seus grandes compositores.

O cenário desta vez foi o interior da Inglaterra. Foi delicioso acompanhar as aventuras de Estrela D'Apliése por esses lados. Tirando a ambientação, posso dizer que todos os livros de Lucinda Riley, não só os desta série, são idênticos. Mulheres que vão atrás de suas raízes por várias partes do mundo (Hmm teve um homem em "A Rosa da Meia-Noite").

Estrela é calada e está sempre à sombra de Ceci, a irmã que foi adotada quase que ao mesmo tempo que ela.

A pista que seu pai deixou a leva até uma livraria em Londres e ao seu excêntrico dono, Orlando, colecionador de livros raros. Formal ao extremo, ela se sente ao lado do Chapeleiro Maluco, de "Alice". Aos poucos, ela se envolve com sua família, basicamente uma prima, um sobrinho e um irmão bonitão, Mouse. Adivinhem? Por meio das histórias que eles contam, ela é transportada até 1910 e aos antepassados que podem ser sua família de sangue. Como eu já disse várias vezes, os livros de Lucinda são bons somente no momento em que os estamos lendo. Não nos fazem refletir. No máximo, nos fazem querer conhecer os lugares que descreve. No caso, fiquei morrendo de vontade de visitar a região de Lake District, na Inglaterra. Passatempo gostoso. Para relaxar e viajar.


Lake District, cenário de "A irmã da sombra"

sábado, 29 de abril de 2017

orgulho e preconceito

A versão que li. Com a capa do filme de 2005

"Sem pensar muito bem de homens ou do matrimônio,
o casamento sempre fora seu objetivo."

Eu estava na livraria esperando para ser atendida e, aleatoriamente, peguei um livro. Era uma edição de bolso de “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen. Eu tenho todos os seus livros, mas nunca os li. E olhe que até na casa dela eu já fui. Há treze anos, em abril de 2004. Era um bonito dia de primavera na Inglaterra. Lembro ainda hoje de ficar observando a mesinha em que ela escrevia. Saí de lá com duas de suas obras, que envelheceram na estante. Até o dia em que tive que ficar esperando na livraria. Bem, lá mesmo, em pé, comecei a ler o romance. Ri muito logo no começo. Voltei para casa e imediatamente baixei a versão para o e-reader. Na atual fase da minha vida, é mais fácil ler com esses dispositivos. Enfim, intercalei a leitura do meu original, em inglês, com a tradução muito mal feita que estava disponível gratuitamente na Amazon.

Minha edição em inglês
Este é o segundo romance da autora, escrito entre 1796 e 1797, quando ela tinha apenas 21 anos, mas só foi publicado em 1813. Seu título inicial era “Primeiras impressões”, mudado por conta de outros livros com o mesmo nome, mas que resume bem o seu conteúdo. Há várias menções sobre os erros que cometemos ao avaliar a pessoa a partir de um primeiro encontro. 

A história se passa na Inglaterra do século XVIII e descreve a sociedade rural do período de regência britânica. Tem final bem previsível, mas o que vale é a forma com que é contada. Tudo sob o ponto de vista de Elizabeth, a segunda de cinco filhas de um casal que vive no campo, próximo a Londres. Logo nas primeiras linhas vemos o desespero da mãe que tenta casar suas meninas. E um grande partido acaba de chegar na vizinhança. A mulher fica toda empolgada e implora ao marido que vá se apresentar, já com o intuito de transformá-lo em genro. Este trecho é hilário. Depois de lê-lo você não vai resistir. O rapaz, Mr. Bingley, chega com duas irmãs e um amigo, Mr. Darcy. A partir daí, tudo gira em torno de dias ociosos das moças, bailes e diálogos sobre relacionamentos amorosos. Divagações sobre o interesse ou não dos rapazes nelas. Enfim, algo atemporal se pensarmos bem. A diferença é que naquela época a comunicação era mais difícil. Levava alguns dias até terem a resposta para suas dúvidas por meio de cartas ou mensageiros. Jane nos apresenta a uma sociedade burguesa que só pensa em casar. Este é o objetivo de todas as diversões que as pessoas têm: bailes, viagens, passeios, apresentações à corte. O engraçado (ou não considerando que isso acontecia naquela época) é que bastavam algumas horas para se decidir quem seria o cônjuge. Claro que cabia à mulher o papel de esperar o pedido. Grande angústia que a autora, ironicamente, faz questão de ressaltar. Até Elizabeth, que tende a não concordar com os arranjos matrimoniais, tem lá suas expectativas com Mr. Darcy, relacionamento que vai da intolerância ao inesperado amor. Por causa de tanto papo fútil em torno de ‘ele me ama ou não’, a leitura torna-se maçante em alguns momentos. Mas superamos e encontramos até uma rebelde, a Kitty, irmã mais nova de Elizabeth. A única que não esperou por um pedido para ir atrás de quem desejava. Se acertou ou não, esse é o risco de ousar. Bem melhor que ficar em casa esperando um convite que pode nunca aparecer. Quero mais Jane Austen.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

para educar crianças feministas


Sou fã de Chimamanda. Este livro é a adaptação da carta que ela escreveu para uma amiga que lhe pediu sugestões para educar sua filha seguindo as premissas feministas. Bem, como ela mesma pode comprovar, é muito mais fácil dar sugestões para filhos dos outros do que aplicar as mesmas recomendações em suas próprias crianças. Mas gostei de sua abordagem. E devo dizer que concordo com absolutamente tudo o que escreveu. Abaixo, brevemente, suas 15 dicas. Por favor, leiam e divulguem este excelente livro.

1) "Seja uma pessoa completa." Não devemos nos culpar por não abandonar nosso trabalho e as demais coisas que gostamos de fazer por conta da maternidade. Continue sendo você e tudo ficará bem.

2) "Façam junto." Esta é uma máxima que sempre acreditei. Nada de dizer que o pai ajuda com o bebê. Ele tem tanta responsabilidade quanto a mãe. O mesmo vale para a casa. Por que devemos elogiar os homens que fazem tarefas domésticas como se fosse um favor?

3) "Ensine que papéis de gênero são totalmente absurdos." Nada de dizer: seja boazinha como uma menina. Ou menino não chora. Também não limite as brincadeiras e brinquedos às divisões que as lojas e sociedades costumam fazer. Carrinhos para menino. Bonecas para menina. Tudo isso pode impedir que surjam grandes engenheiras, por exemplo.

4) "Cuidado com o Feminismo Leve". Aquela ideia de que os homens são levemente superiores e devem tratar bem as mulheres. E que, por exemplo, uma esposa só alcança o sucesso porque o marido deixou.

5) "Ensine a ler". Ensine o gosto pela leitura, pelos livros. E se o seu exemplo não adiantar, dê recompensas para que a criança leia. O retorno será sempre satisfatório.

6) "Ensine-a a questionar a linguagem." Não use expressões que ensinam que a mulher é frágil, como princesa (que tem que esperar por um príncipe). Ou que são os meninos que protegem as meninas. Elas não precisam de proteção, mas de tratamento igual.

7) "Nunca fale do casamento como uma realização." Por se preocupar tanto em arrumar um marido, muitas mulheres deixam de fazer coisas que poderiam ser bem mais prazerosas. Ela também questiona o fato de as mulheres terem que assumir o sobrenome do marido. Por que não manter sua própria identidade?


8) "Ensine-a a não se preocupar em agradar." As meninas são sempre ensinadas a serem boazinhas, agradáveis e fingidas. O que pode ser bem perigoso, principalmente no caso de um abuso. O importante é que elas sejam ensinadas a serem honestas e bondosas. E, principalmente, a defender o que é seu.

9) "Dê um senso de identidade." Aqui o conselho é para a filha da amiga crescer com o orgulho de ser uma Mulher Igbo. Ou seja, a abraçar o que sua cultura tem de mais bonito. A valorizar sua cor, seu cabelo, principalmente diante da mídia que sempre enfatiza as mulheres brancas.

10) "Esteja atenta às atividades e à aparência dela." A dica é: "incentive-a a praticar esportes. Ensine-lhe a ser ativa. Façam caminhadas juntas. Nadem. Corram. Joguem tênis. Futebol. Pingue-pongue. Todos os tipos de esporte." Também ressalta a importância de deixar que ela encontre seus próprios padrões de beleza e não permitir que ela associe beleza a dor e ao sacrifício.

11) "Ensine-a questionar o uso seletivo da biologia como "razão" para normas sociais em nossa cultura." Principalmente para que ela questione os ditos privilégios dos homens, como sua força física ou a promiscuidade.

12) "Converse com ela sobre sexo, e desde cedo." Pode ser constrangedor, mas é importante para que ela entende que o corpo é dela e que nunca deverá dizer sim para algo que não quer. Também é preciso dar abertura para que ela converse com você sobre o assunto.

13) "Romances irão acontecer, então dê apoio." Mostre que o amor é uma troca. Ela não deve apenas dar. Também tem que receber. Reforçe que ela deve ser independente, o que inclui a questão financeira, mesmo se for casada. "Ensine-lhe que NÃO é papel do homem prover."

14) "Ao lhe ensinar sobre opressão, tenha o cuidado de não converter os oprimidos em santos." O que ela quer dizer é que há nos discurso sobre gêneros a ideia de que as mulheres são moralmente melhores do que os homens. O que não é verdade. "Mulheres são tão humanas quanto os homens. A bondade feminina é tão normal quanto a maldade feminina." Da mesma forma, nem todos os homens são misóginos.

15) "Ensine-lhe sobre a diferença." Um dos ensinamentos mais importantes: "ensine-lhe sobre a diferença. Torne a diferença algo comum. Torne a diferença normal. Ensine-a a não atribuir valor à diferença. E isso não para ser justa ou boazinha, mas simplesmente para ser humana e prática. Porque a diferença é a realidade de nosso mundo. E, ao ensinar-lhe sobre a diferença, você a prepara para sobreviver num mundo diversificado. Ela precisa entender que as pessoas percorrem caminhos diferentes no mundo e que esses caminhos, desde que não prejudiquem as outras pessoas, são válidos e ela deve respeitá-los. Ensine-lhe que não sabemos - não podemos saber - tudo sobre a vida. A religião e a ciência têm espaços para as coisas que não sabemos, e isso basta para nos reconciliarmos com esse fato."

sábado, 18 de março de 2017

vidas secas




"... a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam."

Eu não consigo tirar a imagem da Baleia da minha cabeça. Personagem mais viva e expressiva de “Vidas secas”, de Graciliano Ramos. Não posso dizer quais eram as intenções do autor ao dar voz à cachorra, mas somente quem já prestou atenção ao olhar dos animais poderia ter escrito com tamanho realismo seus pensamentos. O capítulo destinado a ela é a passagem mais triste da literatura. Mais que refletir as angústias dos sertanejos diante da seca, ela traz o sofrimento de todos os animais sujeitos aos humores e necessidades dos humanos.

Baleia é a alma dessa obra, que retrata trechos da vida de Fabiano, de sinha Vitória e das duas crianças, o filho mais velho e o menor. Assim mesmo, sem nomes. Havia ainda um sexto membro, o papagaio, que foi sacrificado para aliviar a fome dos ‘donos’.

A história começa com os ‘seis viventes’ atravessando a caatinga a pé. O sol é escaldante. A terra é seca. A fome e a sede castigam a todos. Encontram uma casa vazia e se hospedam. Mas ela tem dono. Pertence ao fazendeiro. Para continuarem lá precisam trabalhar para ele. Automaticamente também adquirem uma dívida. O livro é composto por 13 capítulos mais ou menos interligados. São episódios vividos pela família. Ora sob o ponto de vista de Fabiano, ora de Sinha Vitória, dos meninos e de Baleia, que foi o primeiro a ser escrito. 

Eles não têm praticamente nada. Até as palavras lhe faltam quando tentam expressar algum sentimento. A convivência é silenciosa. Cortada apenas por algum resmungo ou tentativa frustrada de dizer algo. Restam-lhes apenas os sonhos. Sinha Vitória sonha com uma cama de verdade. O filho mais novo quer ser vaqueiro, como o pai. Baleia sonha com um osso grande. O mais velho começa a se interessar pelas palavras e seus significados. E Fabiano sonha com um futuro melhor para os filhos.

Escrito em 1938, “Vidas secas” faz parte do pós-modernismo brasileiro, que trazia denúncias sociais. Aqui vemos, por meio de Fabiano, a opressão exercida pelos patrões, pelo governo, pela polícia e a submissão de homens e mulheres como nossos personagens. Eles até tenta reagir, mas são sempre calados. E tudo é muito mais intensificado por conta da seca. Mas eu acrescento mais uma denúncia: o sofrimento dos animais. Quando a seca do nordeste brasileiro é retratada, sempre aparecem menções aos animais que morrem. Magros. Só pele e osso. Mas eles não aparecem como eles mesmos. Animais e viventes que são. Eles aparecem como a desgraça total do ser humano. Sem água, sem animais, sem comida. 

No livro de Graciliano Ramos há uma exceção: Baleia. Ela faz parte da família. É a mais sensível de todos. Recebe vários pontapés, mas está sempre junto de seus donos. De certa forma, eles também gostam muito dela. Em especial, o garoto mais velho. No entanto, ao menor sinal de perigo, ela é sacrificada. E justamente quando está magra, doente, indefesa. A narrativa mostra a dor do animal, dando a ela características humanas, pois somente assim conseguimos enxergar o quanto sofre. Tudo é tão real que eu não consigo perdoar Fabiano. O que me consola é saber que sua decisão o atormentará para sempre. A partir daí, qualquer coisa faz com que ele se lembre da cachorra, de seus lugares favoritos, de suas peripécias. 

Outros animais padecem na obra. O papagaio que serviu de alimento. As aves de arribação (que na fúria contra o mundo, surgem como o motivo da estiagem), o porco (morto e alvo de impostos), as preás (presas de Baleia e muitas vezes o único alimento do grupo), o bezerro (morto e salgado no momento da segunda fuga da família, que nunca vai deixar de ter esperança em uma real mudança). Mas é Baleia que fala por todos os bichos. O capítulo dedicado a ela, como eu já disse, é dramático. Em seus delírios finais ela pensa na família. E em nenhum momento pensa que fizeram algo ruim contra ela. Deveria ser leitura obrigatória para todos. E gosto, sobretudo, do estilo seco e cortante utilizado por Graciliano. Sem poupar o leitor, mostra o que tem que mostrar. Como a vida é. Como somos. E como os animais são. Interessante observar que enquanto Baleia ganha características humanas, Fabiano torna-se bicho. Quem é melhor, afinal?

“Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme.”

Baleia consola o menino mais velho na versão para o cinema (1963)

Trechos

“E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.”

“Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida. Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente.”

“Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família.”

“A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava essa certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderado. Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem dos ossos. Naquele dia a voz estridente de sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de turco, topou o camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegando, chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil. O pequeno sentou-se , acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morreu no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.”

sexta-feira, 10 de março de 2017

paris para um


Sabe quando você precisa de um livro para relaxar? Algo que não seja profundo, mas que lhe deixe com um sorriso nos lábios? Ou mesmo uma leitura rápida, uma distração durante uma viagem? “Paris para um”, de Jojo Moyes é uma boa pedida. Ele traz dez contos deliciosos. O primeiro, que dá título ao livro, é sobre uma jovem inglesa que combina uma viagem à Paris com o namorado. Só que ele não vai e ela acaba tendo que passar o fim de semana sozinha na capital francesa. O que parecia ser uma tragédia acabou sendo a melhor coisa que poderia ter lhe acontecido. Situação parecida acontece no último conto, também em Paris. Durante a lua de mel, a protagonista vaga sozinha pela cidade, pois o marido tem que resolver assuntos importantes do trabalho. Gostei, sobretudo, de “Entre os tuítes”. Nessa história, um apresentador de TV em decadência é alvo de vários insultos na rede social por parte de uma mulher que diz ser sua amante. O desfecho é hilário e mostra que todos têm lá sua culpa. “A lista de Natal” é bom para aqueles que pensam em largar tudo e começar uma nova vida. Sobrecarrega com as tarefas dadas pelo marido, a mulher surta e é ajudada por um motorista de táxi a tomar a decisão que vem adiando há tempos. “O casaco do ano passado” fala sobre a crise financeira e as aparências que precisam ser mantidas. “Treze dias com John C.” é o mais engraçado. Mulher acha um celular na rua e acaba respondendo as mensagens que chegam nele. Isso a leva a uma grande cilada. Os demais contos são mais fracos, mas mesmo assim sempre com alguma pegada divertida. Em comum, trazem mulheres insatisfeitas com o casamento, com o corpo ou com o estilo. Com exceção de “Assalto”, no qual a mocinha se apaixona pelo ladrão. Ai, ai, ai. Leiam sem medo de ser feliz. 

quinta-feira, 9 de março de 2017

história de quem foge e de quem fica



Mais um livro finalizado da série napolitana de Elena Ferrante. “História de quem foge e de quem fica” mostra a fase adulta de Lenu e Lila. É o que mais fala da primeira, com detalhes de sua vida fora do bairro em Nápoles. Lenu torna-se escritora, seu primeiro livro é um sucesso. Sua vida sentimental também está bem. Preste a se casar com Pietro, renomado professor, ela volta às origens para ajudar Lila, que não teve a mesma sorte e, após deixar o marido, trabalha em condições degradantes em uma fábrica. Paralelamente, acompanhamos o movimento em prol de melhores condições de trabalho e a luta de classes. Muitos personagens ganham força, como Pasquale, o comunista, e Nino, o grande amor de ambas. Amizade e inveja continuam fortes e misturadas.

A leitura é tensa. Mais que os dois anteriores. Mas eu não conseguia largar. Mexeu tanto comigo que incorporei as injustiças do livro e fiquei revoltada. Queria eu mesma sair às ruas e ajudá-las. Lá pelas tantas há uma reviravolta. Só que ela é contada de tal forma que mal percebemos como tudo aconteceu. É como se o tempo tivesse passado também para nós. Lila consegue se recuperar e Lenu cai. Ou seja, enfrenta uma crise no casamento. Não consegue mais escrever. A insegurança que sempre teve está cada vez maior. No fim resolve abandonar tudo e, mais uma vez, fugir. Não vejo a hora de ler o quarto e último volume para saber como esse duelo velado entre as duas amigas vai acabar.

sábado, 4 de março de 2017

a fórmula do amor



Einstein e suas teorias são o foco deste entediante livro de Francesc Miralles e Álex Rovira. Mas que fique claro: não é a física que o torna cansativo. 

Javier é jornalista em uma emissora de rádio. Certo dia, por falta de outra pessoa, é convocado a participar de um debate com o autor de um livro sobre Einstein. Após o confronto nada agradável, recebe uma misteriosa carta dizendo para ir até uma cidade vizinha. Sem ter programa melhor, vai e descobre que a casa pertenceu ao célebre cientista. Lá conhece outras cinco pessoas. Todas envolvidas com pesquisas sobre Einstein. Uma delas é o anfitrião, que logo após a inusitada reunião é assassinado. Logo na sequência, Javier recebe um e-mail com outro convite. Desta vez, para finalizar o projeto do cara que morreu, que tinha como objetivo trazer à tona a última descoberta do físico alemão. Não precisa ser gênio para descobrir qual ela é, já que a edição portuguesa do livro, a que eu li, já diz logo no título: "A fórmula do amor". O original, em espanhol, é “A última resposta”. Começa, então, a jornada, que inclui países da Europa e América do Norte, sempre seguindo os rastros de Mileva, primeira mulher de Einstein, e quem estava, segundo o romance, por trás das suas teorias. Tem mulher fatal. Tem flerte: Javier com sua parceira na pesquisa. Tem mais mortes. Tem enigmas a serem descobertos.

Tudo dividido em quatro partes: ar, terra, água e fogo. Cada uma delas com vários capítulos, sempre abertos com uma frase bonitinha. Caminho a ser percorrido até chegarmos à quintessência: o amor, que tudo cura e tudo pode. Balela sem fim. Nem mesmo as incursões na física e suas teorias salvaram o livro e sua fracassada tentativa de ser um suspense. No fim a resposta estava no quintal de casa, o que me lembrou o desfecho de “O Alquimista”, de Paulo Coelho.

Enfim, não vou dizer mais nada porque ainda estou com raiva. Principalmente, porque havia gostado muito de outros coisas que Miralles escreveu (“Queria que você estivesse aqui”, “O melhor lugar do mundo é aqui” e “Amor em minúscula”. E procurei outro livro seu justamente para descansar, ficar com aquele sorriso bobo depois de ler algo bonito. Mas que nada. Fiquei ainda mais triste porque a leitura anterior, outra promessa (“A livraria mágica de Paris”), também tinha sido ruim. Quem sabe, mais para frente, passado o meu mau-humor, eu não abrande minha crítica. #sóquenão.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

a livraria mágica de paris

Que livro chato! Antes de ler até achei que seria como o romance 'A senhora das especiarias', da indiana Chitra Divakaruni, ou o filme 'Chocolate', com Juliette Binoche e Johnny Depp. Um trazendo os temperos como cura dos males da alma e o outro o chocolate. Ambos irresistíveis. Vale a pena conferir.  'A livraria mágica de Paris', da alemã Nina George, até tenta ir por este caminho. Mas fora um trecho aqui outro acolá, o livro é bem, mas BEM cansativo. Jean Perdu tem uma livraria num barco em Paris. Costuma receitar livros para os clientes como se fossem remédios. Contudo, ele próprio não consegue se curar de suas dores. Há vinte e um anos sofre por amor. Tanto que evita dizer e pensar o nome da fulana que o abandonou para não aumentar o seu tormento. Até que conhece outra mulher depois de todos esses anos. Ela também foi abandonada pelo marido. E é justamente por meio dela que vai reencontrar a carta que a ex deixou e que nunca teve coragem de ler. Quando a abre, finalmente, descobre que ela partiu porque estava muito doente. Ah, ela era casada. Perdu era o amante. Desnorteado, sai com seu barco pelo rio Sena em busca de repostas e redenção. Quando está zarpando, um jovem escritor, que mora no mesmo prédio, se joga na embarcação. Max está em busca de inspiração para o segundo livro. E assim os dois conhecem o interior da França, fazem amizades, divagam. Mas o que realmente me irritou foram os trechos do diário de Manon, a tal mulher que deixou Perdu, que a autora teve a infelicidade de inserir aleatoriamente. Gente, como ela é mala. Nós, leitores, não temos culpa de sua doença e nem do seu egoísmo. Já pensou aturar alguém que fala assim:  "Eu sou meu corpo. Os lábios da minha vulva sorriem, suculentos, quando tenho desejo, meu peito transpira quando sou humilhada e em meus dedos fica o medo diante de própria coragem, tremem quando eu quero me proteger e defender." Ainda bem que Perdu consegue, mesmo que aos poucos, se libertar.

Mapa com o trajeto feito por Jean e Max

Uma coisa boa foi que fiquei morrendo de vontade de fazer o trajeto de Jean e Max. Gostei ainda das referências literárias. Só não entendi a indicação de Moby Dick para vegetarianos (eu poderia dizer o contrário). De todo modo, vou refletir mais sobre a relação. A autora colocou no final algumas receitas de pratos que aparecem no livro. Totalmente dispensável. Uma pena. Foi uma leitura que começou bem e prometia ser gostosa.

Trechos que (quase) salvam o livro

"Tudo ainda está lá. todo o tempo que passamos junto é eterno, imortal. E a vida nunca cessa."

"Queria tratar sensações que não são reconhecidas como doenças e que nunca são diagnosticadas por médicos. Todas aquelas pequenas emoções e todos os sentimentos pelos quais nenhum terapeuta se interessa, porque parecem pequenos demais e intangíveis."

"Obviamente, livros são mais que médicos. Alguns romances são amorosos, companheiros de uma vida inteira; alguns são um safanão; outros são amigos que o envolvem em toalhas aquecidas quando bate aquela melancolia outonal."

Cuisery: a cidade dos livros,
parte do percurso indicado no livro